Topo

'Caçadoras de retalhos' recolhem tecidos no Brás para fazer roupas novas

Grupo de mulheres vindas da periferia de São Paulo e de outras cidades visita Brás em busca de retalhos de tecido para confeccionar peças novas, panos de prato, cobertores, bolsas e bonecas - Camila Svenson/UOL
Grupo de mulheres vindas da periferia de São Paulo e de outras cidades visita Brás em busca de retalhos de tecido para confeccionar peças novas, panos de prato, cobertores, bolsas e bonecas
Imagem: Camila Svenson/UOL

Lucas Veloso

Colaboração para o TAB, de São Paulo

13/07/2022 04h01

Às 7h da manhã de uma segunda-feira, o relógio eletrônico da estação Brás marca 12ºC. Quem desembarca ali pode não imaginar que, na saída do Largo da Concórdia, um pequeno grupo de mulheres está à caça: vindas das periferias de São Paulo (do Grajaú a Guaianases) e outras cidades, como Campo Limpo Paulista e Carapicuíba, elas carregam carrinhos, mochilas e malas para recolher pedaços de tecido no bairro. Elas são as "caçadoras de retalhos".

Vestindo short cinza, regata de retalhos e um colete verde, a técnica de enfermagem Ivone Oliveira, 53, saca o celular e dá o play em uma música animada, organiza uma roda e avisa que é o momento do "estica velha", sequência de exercícios que elas fazem sempre que se reúnem.

Depois, Ivone faz uma chamada nome a nome. Outra mulher separa e confere crachás, enquanto é recolhida uma taxa de R$ 10, valor combinado para ajudar no transporte das líderes, as que orientam e ajudam o grupo durante as caçadas.

No dia, a costureira Letícia Ferreira de Assis, 26, era a mais nova caçadora. Pela segunda vez ali, estava em busca de tecidos para produzir peças autorais. A blusa que vestia foi feita com retalhos que recolheu na primeira caçada — também fez outras seis peças e conta que conseguiu cerca de R$ 150 com a venda delas nas redes sociais. "Valeu muito", diz.

'Caçadoras de Retalhos' no Brás - Camila Svenson/UOL - Camila Svenson/UOL
'Você pisa em montanhas de coisas. Hoje tá tranquilo até', conta uma das caçadoras
Imagem: Camila Svenson/UOL

Segue o fio

De repente, Ivone sai da roda e é seguida pelas 32 mulheres, a passos apressados, como se fosse uma excursão de escola. Nas movimentadas ruas do Brás, elas passam por ambulantes com café e pães, imigrantes, policiais militares, até chegar em uma via mais tranquila.

De longe dá para ver uma mesa do tipo que é usada nas barracas de feira. "De quem é?", questiona uma. "Não deve estar aqui. Vamos usar rapidinho", diz outra. Assim, elas rodeiam a mesa e rapidamente arrumam o café das caçadoras, com tapioca de leite condensado e coco, bolachas e bolos. "Antes, íamos num bar ali na frente, mas vimos que nem todas tomavam café da manhã, por falta de dinheiro", diz Ivone. "Na minha igreja, isso se chama comunhão", define uma das integrantes do grupo.

Ali perto, há retalhos aos montes, jogados nas ruas. Um dos principais polos da indústria têxtil na capital paulista, o Brás também produz muito lixo, entre peças descartadas, restos de tecidos e rolos inteiros de material deixado para trás por lojistas e empresários: a região descarta 45 toneladas de lixo todos os dias, diz o relatório "Fios da Moda", do Instituto Modefica e da Fundação Getúlio Vargas. Tudo junto ficaria tão pesado quanto dois iates de luxo do modelo Tecnomar Lamborghini 63.

"Você pisa em montanhas de coisas", diz uma das caçadoras. "Hoje tá tranquilo até."

'Caçadoras de Retalhos' no Brás - Camila Svenson/UOL - Camila Svenson/UOL
Alguns lojistas jogam retalhos nas ruas; outros fornecem material para as caçadoras
Imagem: Camila Svenson/UOL

'Tem tecido hoje?'

As líderes indicam um "kit caçadora" para as colegas, que inclui álcool em gel, um carrinho e luvas. "No começo, a gente pegou muito tecido misturado a lixo de banheiro, além de sujeiras", conta Ivone.

Ela observa e orienta as demais sobre os tipos de tecido e possíveis usos para eles. "Tem tecido hoje?", pergunta, nas lojas. "Tem descarte pra gente?"

Muitas vezes, tem: há lojistas que separam descartes e, reunidos os tecidos, elas formam filas, seguindo a numeração dos crachás para dividir o material entre as integrantes interessadas. "A blusa que estou vestindo achei aqui, nesta loja. Já fui até na missa com ela", relata Maria Aparecida da Silva, 59.

Na rua Rio Bonito, as caçadoras conseguem doações de Nirís de Oliveira, 66, um dos comerciantes que costuma separar o que não serve para ele em prol do grupo. Diz que já chegou a doar lotes de 400 kg e 500 kg. "Às vezes o caminhão tá no Rio e vem pra cá, e sei que tem gente com descarte, aí aproveito e mando trazer pra elas também."

Às vezes elas mandam fotos das produções feitas com os tecidos recolhidos para Nirís. "Uma coisa que não serve mais pra gente se torna outra tão boa, bonita, né?"

Do outro lado da rua, o comerciante William Wagner de Lima, 48, separa semanalmente tecidos para as caçadoras. "É um trabalho ótimo que fazem no bairro", diz. Antes de descobrir a iniciativa, o que sobrava de lá ia para uma igreja.

'Caçadoras de Retalhos' no Brás - Camila Svenson/UOL - Camila Svenson/UOL
Com os retalhos, as mulheres costuram roupas e acessórios para consumo próprio e para vender
Imagem: Camila Svenson/UOL

Tudo se transforma

De olho em outros cantos que costumam descartar, Ivone olha para um montinho de tecido e grita: "Não foram vocês que fizeram aquilo ali, não, né? Depois a gente fica com a fama de sujeira". Elas respondem que não.

De São Bernardo do Campo (SP), a costureira Janete Trindade, 60, usa descartes para produzir panos de prato e outras peças, mas seu maior orgulho é o trabalho que faz para a população de rua: confecciona cachecóis e toucas que são entregues nas ações de sua igreja.

Já Lucilene Gomes de Souza Silva, 49, usa o que recolhe para fazer patchwork (trabalho com retalhos, em tradução literal). Moradora de Guarapiranga, zona sul de São Paulo, ela também manda quantidades para Pernambuco, onde mora sua avó. A amiga de Lucilene, Mara Madeira, 60, faz bags e as vende por cerca de R$ 25.

Uma das caçadoras mais animadas é Suziclei Rodrigues, 58, de Mauá (SP), que faz bonecas de fuxico com os fragmentos que recolhe - ela conta que já chegou a vender uma delas por R$ 150.

Muitas mulheres dizem que as caçadas contribuem também para o bem-estar delas. "Pra mim, é terapia, ainda mais depois que perdi minha terapia no SUS", comenta uma das integrantes. "Eu me divirto, rimos juntas. A gente se ajuda", emenda outra.

'Caçadoras de Retalhos' no Brás - Camila Svenson/UOL - Camila Svenson/UOL
O 'kit caçadora' inclui álcool em gel, luvas e um carrinho para levar os materiais escolhidos embora
Imagem: Camila Svenson/UOL

'Seu Geraldo liberou o beco'

Entre uma loja e outra, Ivone avisa, animada: "Seu Geraldo liberou o beco". Ao redor, o clima contagia as demais. "É hoje! É hoje!", dizem.

Na loja de Geraldo Monteiro da Silva, 61, sempre há uma variedade de tecidos e, assim, elas conseguem encerrar a jornada mais cedo. Na rua sem saída foram despejados nove sacos cheios de tecidos para o grupo, que passou duas horas ali na divisão dos materiais.

Se há materiais mais raros, de tamanhos maiores, por exemplo, a disputa é resolvida mediante sorteios. "Ai, que felicidade. Vou fazer cobertor para minha neta", comemorou uma das sorteadas.

Por volta das 12h30, a saga chegou ao fim, todas as caçadoras tinham carrinhos cheios. "Vocês foram uns anjos", disse uma delas. "Até a próxima", despediu-se outra.