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Grupo de entregadores de app e artistas aproveita boca-livre de vernissages

"Bugam porque não entendem a gente aqui. Playboy que cola nisso aqui, sai daqui e tem grana pra continuar bebendo em outro lugar. A gente, não" - Lucas Veloso/UOL
'Bugam porque não entendem a gente aqui. Playboy que cola nisso aqui, sai daqui e tem grana pra continuar bebendo em outro lugar. A gente, não' Imagem: Lucas Veloso/UOL

Lucas Veloso

Colaboração para o TAB, de São Paulo

25/06/2022 04h01

"Salve dog. Eu vou colar na vernissa umas 14h30", dizia a mensagem. Naquele sábado frio em São Paulo teria mais um vernissage — ou, para os mais íntimos, a famosa boca-livre artística. A inauguração mais promissora era a "Partilha de Ilusões", primeira exposição individual de Tales Frey.

Em frente à Biblioteca Mário de Andrade fica o Edifício Louvre, um dos marcos da arquitetura da cidade. Com mais de 70 m na avenida São Luís, o azul e o rosa da fachada não escondem que ali é um espaço privilegiado, com centenas de lojas e, como o nome indica, galerias de arte, como a Verve, que abrigaria o vernissage naquele dia, das 12h às 17h.

Depois da apresentação na cabine de entrada do prédio, alguém sinaliza: "Oh, lá é coisa fina hoje, hein. Aproveita". Um lance de escada rolante e duas viradas à direita, a aglomeração de pessoas na frente de uma sala indica o evento.

'Conceitual demais'

O primeiro a dar as caras ali é Cássio Moreira, 25, jovem que se apresenta como artista. Com tatuagens no rosto, pescoço e mãos, vestido todo de preto, vende revistas de arte a R$ 5. "Vendo aqui porque tem gente interessada. Isso eu mesmo faço", comenta. Depois emenda outros assuntos, como trabalho ("tenho inveja de quem pega ônibus todo dia") e arte ("produzir algo a partir do nada é a habilidade artística").

Desde que chegou à cidade, há quatro meses, ele foi a todos os vernissages que pôde com o objetivo de vender revistas. Admite que a comida geralmente é boa, mas diz não se ligar muito nisso. "Só fui em duas com comida até agora. Uma na Galeria Sé, e outra recentemente que vi comida muito sem querer", comentou. O acaso foi trombar com vinho, queijo parmesão e esfirras de escarola.

Por volta das 15h15, entre uma frase e outra do artista, um garçom oferece cerveja. Ali o consumo é à vontade e de graça, mas em um dos bares de esquina do prédio, uma lata da mesma marca é vendida a R$ 10,99.

Dentro da galeria, quadros nas paredes mostram artistas apoiados em itens que parecem minipostes, painéis de luz em formato triangular trazem figuras que ao mesmo tempo lembram letras do alfabeto e genitálias masculinas. Uma tevê mostra duas pessoas manuseando freneticamente objetos em salas grafitadas enquanto o fone reproduz música clássica.

"Conceitual demais", comenta um. "Não entendi nada", responde o interlocutor. Riem baixo enquanto andam pelo espaço e lançam comentários sarcásticos às demais obras, segurando um livreto roxo distribuído ali com observações da exposição.

De tudo exposto ali, o que de fato atrai interesse e interação do público são dois balanços presos no teto, sem aviso de proibição. Um dos presentes se pendura ali, consegue sentar e é empurrado pelos outros. Nos próximos minutos, a atenção dos presentes se volta às risadas e brincadeiras.

Exposição na galeria Verve, no centro de São Paulo - Lucas Veloso/UOL - Lucas Veloso/UOL
Abertura de exposição na galeria Verve, no centro de São Paulo
Imagem: Lucas Veloso/UOL

Open bar

Num canto do corredor gigante do prédio havia um grupo de oito pessoas, a maioria homens. Conversam, trocam ideias e comentam as obras da sala em frente. Eles são amigos "vernisseiros". Em resumo, a galera que gosta de arte e particularmente das comidas e bebidas servidos nas aberturas de exposições e mostras.

"Pagar breja é tão 2012", resume o ilustrador Bernardo Nascimento, morador de Guaianases, extremo leste da capital paulista, e um dos mais assíduos frequentadores dos eventos de arte na cidade.

Na roda dos vernisseiros daquele sábado, o principal assunto foi uma festa do dia anterior. "Deu até polícia", disse um. Era para ser uma festa exclusiva, em uma mansão perto do estádio do Pacaembu, mas acabou reunindo mais gente do que o esperado depois que o DJ do evento soltou um convite em suas redes sociais.

"Uma galera enfurecida querendo colar em festa de playboy e foi barrada. Não ficou barato", disse rindo outra pessoa na roda. No fim, todos que estavam fora da festa entraram e beberam.

Nas horas seguintes na Verve, o grupo continuou conversando entre tragos de cigarro e bebidas. Perto das 16h10, o garçom responsável se despediu, mas deixou avisado que a bebida estaria em uma caixa branca no chão, com gelo. "Fiquem à vontade", disse. "Isso aqui é nosso open bar", alguém comentou na roda.

Vernisseiro na abertura da exposição na galeria Verve, no centro de São Paulo - Lucas Veloso/UOL - Lucas Veloso/UOL
'Certeza que vai rolar coisa na faixa e vai ter boquinha, ao menos de álcool'
Imagem: Lucas Veloso/UOL

Caviar, canapés e queijo brie

Com as redes sociais, o grupo fica atento à agenda de galerias e espaços de arte. Em aplicativos de mensagens, trocam ideias e até combinam em qual vernissage pretendem ir. Nem sempre concordam com a mesma, e às vezes se dividem. De maneira geral, preferem as mais vazias e menos "bombadas" por juntarem um público menor, e por consequência, menos disputa pelas comidas. Nas conversas com o TAB, alguns contaram que tinham ido de três a cinco eventos só naquela semana.

A ideia de comer e beber "bem", sem pagar, é um dos principais atrativos ao grupo, composto de diferentes perfis, entre eles moradores das periferias e que atuam no campo das artes ou em trabalhos informais no centro da cidade, como entregadores em aplicativos de comida.

"Mano, trampo o dia todo na rua nesse sol quente. Tem dia que nem tem o que comer. Aí colo numa dessas e descolo caviar", disse um dos vernisseiros.

Outro avisa que ver marca de cerveja patrocinando um evento é "bom sinal". "Certeza que vai rolar coisa na faixa e vai ter boquinha, ao menos de álcool", indica. Naquela semana chegou a ficar "louco" de tantos bons eventos que conseguiu participar.

Caviar, queijo brie, canapés e filé de salmão foram algumas das comidas encontradas pelos vernisseiros nos eventos que já foram. Cervejas caras são comuns, além de vinhos e espumantes. "Como e bebo aquilo que não tenho grana pra comprar, ainda mais com o preço dos alimentos", emenda um vernisseiro.

Exposição na galeria Verve, no centro de São Paulo - Lucas Veloso/UOL - Lucas Veloso/UOL
Há vernissages com caviar, queijo brie, filé de salmão, cervejas caras e espumante
Imagem: Lucas Veloso/UOL

Arte, cerveja e política

Chamariz gastronômico à parte, uma coisa citada por vários frequentadores ouvidos pelo TAB é que a presença deles incomoda, mas também é política. "Essa galera não queria que a gente estivesse aqui", diz um entregador do Capão Redondo, na zona sul. "A gente sabe como é a arte, e esse mercado é elitista. Não foi pensado para gente, que mora longe e se fode."

Ele conta que já chegou a ser barrado em alguns eventos por sua aparência. E, apesar de contabilizar mais entradas do que proibições, diz que o olhar de outros frequentadores é de estranhamento, na maior parte das vezes. "Bugam porque não entendem a gente aqui", afirma. "A gente só tem isso aqui. Playboy que cola nisso aqui, sai daqui e tem grana pra continuar bebendo em outro lugar. A gente, não."

No caso de Bernardo, os vernissages são sinônimos de conhecer gente, fazer amigos e também estreitar relações com pessoas que se interessam pelo seu trabalho. Suas presenças já renderam alguns retornos artísticos, algo que ficou mais urgente nos últimos meses, em que passou a viver somente de suas produções. "É bacana, sempre pode render".

"Uma coisa é real. Estudei a vida toda em escola pública e só via aquelas figuras pequenas nos livros. Foi nas vernissa que eu vi arte pela primeira vez", comenta um educador de escola pública e morador de Cidade Tiradentes, na zona leste, que preferiu não se identificar.

Para ele, quem mora longe dos centros urbanos em áreas pobres não tem tanto acesso a museus e outros espaços que ampliam o pensamento crítico e criativo. Entre críticas ao sistema, à educação e ao governo, goles de cerveja e olho atento à caixa com mais dezenas de latas.

Com o dia escurecendo, a temperatura caindo junto a uma chuva fina, as idas à caixa de cerveja se tornaram mais recorrentes. "Agora ninguém barra, né?", soltou alguém sobre o acesso às bebidas. Com pouco menos de cinco minutos para 17h, um rapaz de boné puxou a última lata, sob o olhar atento, mas disfarçado, do grupo que conversava a poucos centímetros da caixa.

"É, gente, já deu. Tá ficando frio", avisa alguém. "Festa do Boi?", emenda outro, chamando para um evento no Butantã, na zona oeste. Desta vez, iam pagando.