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A história do Brasil nas páginas do Diário Oficial, que completa 160 anos

O historiador Rubens Cavalcante Júnior, cuida do maquinário que imprimia o Diário Oficial da União, hoje guardado no Museu da Imprensa, em Brasília - Ana Lima/UOL
O historiador Rubens Cavalcante Júnior, cuida do maquinário que imprimia o Diário Oficial da União, hoje guardado no Museu da Imprensa, em Brasília
Imagem: Ana Lima/UOL

Ana Pompeu

Colaboração para o TAB, de Brasília

18/07/2022 04h01

Juscelino Kubitschek, ao chegar em Brasília, tinha uma preocupação que não fazia sentido a muitos que o rodeavam. A cidade ainda era um canteiro de obras, tinha de estar apresentável para a inauguração, em 21 de abril de 1960. A lista de tarefas a ser cumprida era imensa. Mas JK acrescentou uma exigência inusitada e tida por muitos como extravagante. Para o presidente, a cidade só poderia ser inaugurada como capital da República caso conseguisse imprimir uma edição do Diário Oficial da União com todos os atos assinados naquele dia.

Esse pedido mobilizou uma equipe para planejar a viagem da máquina responsável pelo trabalho, a impressora Marinoni. Foi preciso desmontar a rotativa — que passaria 45 dias na estrada, entre cinco caminhões, saindo do Rio de Janeiro e cruzando São Paulo e Goiânia até chegar em Brasília, já que a BR-040 ainda não existia — e montá-la no novo endereço: o SIG (Setor de Indústrias Gráficas), que também existe graças ao Diário Oficial. Ou melhor, ao diretor-geral à época, Britto Pereira, que foi ao presidente reclamar que o primeiro logradouro selecionado, Taguatinga, era longe demais da Praça dos Três Poderes.

Todos os decretos, leis e nomeações eram transportados de carro até o prédio onde a rotativa ficava (e ainda fica) para que o jornal fosse montado. JK pediu então a Lúcio Costa que repensasse a localização. O arquiteto então criou o SIG. Em endereço definido, máquina acomodada, a primeira impressão do diário foi um teste, assinado pelo próprio JK, 30 dias antes da inauguração da capital.

É um diário que já passou por muitas mãos: de trabalhadores que o imprimiram virando noites a presidentes que nele registraram decretos. Também passou pelas mãos daquele que é considerado por muitos o maior nome da literatura nacional, Machado de Assis. O escritor tanto trabalhou no Diário Oficial quanto teve um livro impresso pela mesma máquina: "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de 1881.

Foi o primeiro emprego formal do futuro fundador da ABL (Academia Brasileira de Letras). De 1867 a 1874, ele foi assessor do diretor do Diário Oficial, um cargo de confiança. Antes, dos 17 aos 19 anos, trabalhou como tipógrafo. Depois, pelas passagens que teve pela imprensa e o trabalho no Diário Oficial, tornou-se o patrono da imprensa, num decreto presidencial de 13 de janeiro de 1997 — também publicado no jornal. Hoje, Machado de Assis dá nome à biblioteca do complexo onde estão todas as edições do diário.

Diário Oficial, Museu da Imprensa - Ana Lima/UOL - Ana Lima/UOL
Imagem: Ana Lima/UOL
Diário Oficial, Museu da Imprensa - Ana Lima/UOL - Ana Lima/UOL
A primeira rotativa de grande porte é de 1904; hoje, virou peça de museu
Imagem: Ana Lima/UOL

De Dom João 6° a JK e Bolsonaro

O prelo em que o escritor trabalhava era totalmente manual. A primeira rotativa de grande porte é de 1904. Conseguia imprimir, cortar e dobrar os jornais, num sistema criado pelo francês Hipólito Marinoni, que dá nome às máquinas. Imprimia em torno de 15 mil jornais por hora.

Hoje, o maquinário é peça de museu e está sob os cuidados do historiador Rubens Cavalcante Júnior, 58, do Museu da Imprensa, aberto a visitantes. A Imprensa Nacional foi criada em 1808, por Dom João 6°, e era responsável pela impressão dos jornais oficiais. O primeiro deles foi a Gazeta do Rio de Janeiro, com notícias vindas da Europa. Onze periódicos se sucederam até a criação do Diário Oficial.

Por um período, o governo pagava para publicar atos e comunicados em jornais particulares, o que se tornou oneroso. Como a Imprensa Nacional já existia, novas máquinas foram compradas e adaptadas para o Diário Oficial.

"Visconde de Albuquerque, ministro da Fazenda, a quem a Imprensa [Nacional] era vinculada, alocou recursos para o Diário Oficial, que, a partir de 1° de outubro de 1862, passou a ser o Diário Oficial do Império do Brasil", conta o historiador. A data marca o aniversário do jornal que, portanto, neste ano completa 160 anos.

Foi ligado ao Ministério da Guerra, depois da Fazenda e da Justiça, até passar para a Presidência da República, primeiro ligado à Casa Civil e hoje à Secretaria Geral. Apesar das muitas mudanças, desde 1862 é um jornal impresso exclusivamente para a divulgação de atos públicos. Na República, o nome foi simplificado para Diário Oficial. Em 11 de setembro de 2001, tornou-se Diário Oficial da União, já que os estados também publicam seus próprios jornais.

Diário Oficial, Museu da Imprensa; na foto, José Emídio de Oliveira - ANA LIMA/ SANTALUZ - ANA LIMA/ SANTALUZ
José Emídio de Oliveira, da área de produção gráfica, trabalha no local há 26 anos
Imagem: ANA LIMA/ SANTALUZ

Da Lei Áurea a impeachments

"O Diário Oficial tem uma importância fantástica para a história do Brasil", diz Rubens. "Todos os atos do presidente e, antes, do imperador, estão publicados no Diário Oficial. A Lei Áurea está aqui, a Lei do Ventre Livre, a proclamação da República, os relatórios de campo de batalha da Guerra do Paraguai, a criação de empresas, como a Petrobras e a Vale do Rio Doce. O voto feminino está em edição de 1932. A CLT está nessas páginas. A Lei Maria da Penha, mais recente. E os impeachments", elenca.

José Emídio de Oliveira é o substituto do coordenador da área de produção gráfica e trabalha no local há 26 anos. Viu muito disso de perto. "A gente participava diretamente do processo de impressão do Diário Oficial e do Diário da Justiça. Era uma rotina iniciada à 1h da manhã e adentrava a madrugada. A gente tinha uma tiragem média de 32 mil exemplares de cada caderno impresso", conta.

"Era uma jornada exaustiva. Nós nos desdobrávamos. Nunca tivemos nenhuma interrupção, até hoje", diz. Também lembra que o Diário Oficial da União já foi reconhecido pelo Guinness Book pelo número de páginas produzidas, com exemplar de 21 de setembro de 2000 que passou de 5,2 mil páginas, em edição que tem cerca de 25 cm de altura e 10,4 kg. "Para nós, era gratificante terminar a jornada com a sensação de dever cumprido. Era imprevisível. Todo dia era uma dificuldade diferente. Havia dias que saímos daqui às 11h, ao meio-dia", conta.

José Emídio era o gerente da equipe que cuidava especificamente do Diário Oficial, com 12 pessoas sob seu comando. Até as 17h, eles recebiam os textos para publicação — hoje, com a migração para o formato eletrônico, o deadline foi estendido para as 19h. Depois, o material seguia para a paginação, dali para a fotomecânica, que fotografava as folhas de alumínio, que eram também gravadas.

O setor colocava então essas placas nas rotativas para começar a impressão. Quando o processo era concluído, era levado à expedição para que fosse, finalmente, distribuído. Antes de conhecer o processo, José Emídio já tinha certo vínculo com ele: trabalhava no aeroporto e via o Diário Oficial chegar todos os dias para ser distribuído às capitais brasileiras. "É apaixonante."

Biblioteca da Imprensa Nacional, onde estão arquivadas todas as edições impressas do Diário Oficial - Ana Lima/UOL - Ana Lima/UOL
Biblioteca da Imprensa Nacional, onde estão arquivadas todas as edições do Diário Oficial
Imagem: Ana Lima/UOL

Parando as máquinas

A partir de 2001, começou a transição para o eletrônico. Em 30 de novembro de 2017 saiu a última edição impressa do Diário Oficial da União. A capa vem com uma foto da rotativa e o título: "Uma notícia tão importante que até nossas máquinas vão parar", anunciando que, dali em diante, o papel ficaria para a história e o diário seguiria em versão digital, mais econômica, sustentável e de acesso facilitado.

Ainda assim, o Museu da Imprensa ainda imprime uma edição por dia para que o acervo seja completo. O exemplar físico, contudo, não é feito com o mesmo papel jornal que chegava em bobinas de 400 kg cada. A tiragem técnica também não é na mesma máquina: ela é feita para ser encadernada e arquivada na biblioteca.

Funcionários da geração de José Emídio, bem como ele próprio, estão perto da aposentadoria — ou já aposentados. O receio deles é que essa história se perca e não tenha a valorização que merece. "Máquina é paixão, minha filha", diz o impressor Gil Walter Carvalho Pinheiro, 57, que entrou na Imprensa Nacional como agente de análise documental, em 1988, e logo foi deslocado para a rotativa do Diário Oficial da União.

"Como não houve reposição da força de trabalho, toda essa gama de conhecimento de colegas que cuidavam de encadernação, restauração de livros antigos, a gente está perdendo", diz José Emídio. Em 1988, eram mais de 2 mil servidores no complexo. Hoje, são menos de 80. "A preocupação principal é com a nossa memória cultural."

Dário Oficial, Museu da Imprensa; na foto, Gil Walter - Ana Lima/UOL - Ana Lima/UOL
'Máquina é paixão, minha filha', diz Gil Walter, que entrou na Imprensa Nacional em 1988
Imagem: Ana Lima/UOL