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Estudar ou comer? Com crise e sem bolsa, jovens desistem de fazer faculdade

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Imagem: Arte UOL

Do TAB, em Guarulhos (SP)

03/08/2022 04h01

Moradora de Sapopemba, na periferia de São Paulo, Beatriz Zeballo, 20, foi a primeira de sua família a entrar na faculdade, em 2020. Escolheu estudar filosofia, curso citado por "professores fantásticos" que teve no ensino médio, em uma escola pública na Vila Prudente, na zona leste da capital paulista. "Com eles aprendi humanidade de um jeito lindo."

No terceiro semestre do curso na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), porém, ela precisou trancar a matrícula. "Não tive oportunidade de sonhar, de estudar. Não foi diferente para minha mãe, para meu pai, para minha avó. Por que seria diferente pra mim?", lamenta.

Durante dois anos, Beatriz conseguiu se manter nos estudos, apesar das dificuldades. Nos primeiros meses de aula, estagiou num museu como monitora, mas, com o início da pandemia, em março de 2020, precisou procurar outro emprego. Tinha de ajudar a mãe nas despesas de casa. Juntas, passaram a trabalhar em uma confecção no Bom Retiro, no centro de São Paulo.

Na época, o ensino foi para o formato online, mas sem plataforma adequada, relata. A situação se agravou com o retorno ao modelo presencial na universidade, em 2022: além de levar quase duas horas no caminho entre o trabalho e o campus de Guarulhos, sem auxílio para transporte, a estudante gastava cerca de R$ 240 por mês com passagens de ônibus.

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Imagem: André Porto/UOL

Beatriz divide com a mãe as contas da casa onde também vivem seus dois irmãos mais novos. "Tenho que ajudar no aluguel, que custa R$ 900. Tenho um irmão com deficiência, precisamos pagar psicólogo e pedagogo, não temos ajuda do governo."

Ela decidiu trancar o curso porque não estava mais conseguindo conciliar os estudos e o trabalho. "Sonhava que ia ser pesquisadora, uma menina preta, pobre, na filosofia, uma área com tanto homem branco", diz. Para ela, o sonho acabou. "Até hoje dá vontade de chorar."

Um dos irmãos mais novos de Beatriz brincava na sala de casa durante a conversa com o TAB. "Todo dia luto para que meus irmãos não precisem fazer essa escolha que eu fiz. Se eles tiverem de escolher entre trabalhar e estudar, que seja por opção, não por falta de opção."

Ladeira abaixo

Atropelados pela crise econômica e o bloqueio de verbas para as universidades públicas, Jovens como Beatriz estão desistindo do ensino superior, trancando matrícula e adiando a ideia de se graduar.

No fim de 2021, Helen Cardoso, 23, passou no vestibular de direito, um dos cursos mais concorridos na Unifesp. Mudou-se de São Paulo para Osasco, onde assistia às aulas em tempo integral. Poucos meses depois, trancou matrícula.

Sem bolsa para arcar com custos de moradia e alimentação, ela preferiu virar assistente de um banco privado e adiar o sonho de se tornar advogada. "Tranquei pela condição financeira e psicológica, já não estava mais dando conta de fazer tudo ao mesmo tempo. E, se sair do trabalho, não pago as contas", diz.

Helen precisaria de assistência para continuar na universidade, condição que para muitos estudantes vem sendo abalada pelas sucessivas restrições orçamentárias do governo federal.

Universidades federais têm orçamentos para dois tipos de despesas: obrigatórias, que incluem pagamento de salários e aposentadorias de docentes; e discricionárias, a verba para investir em infraestrutura e laboratórios, pagar luz, limpeza e segurança, bancar atividades de pesquisa e assistência a estudantes, entre outros.

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Imagem: Arte UOL

'Pior cenário possível'

O valor destinado pelo Ministério da Educação para as despesas discricionárias das universidades federais, que chegou a R$ 7,6 bilhões em 2015, atingiu seu patamar mais baixo em 2021, com R$ 4,7 bilhões. Em 2022, o orçamento subiu para R$ 5,1 bilhões — entretanto, em junho, o governo anunciou o bloqueio de R$ 1,6 bilhão.

"Esperávamos retornar ao montante de 2019. Tivemos uma pequena recuperação, mas não chegou nem ao nível de 2020", afirma o reitor Marcus Vinicius David, presidente da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior). "No ano passado, essa queda não teve tanto impacto por causa do ensino remoto, mas agora, com a inflação, é mais grave."

O maior impacto, diz o reitor, é na assistência estudantil, que inclui um auxílio financeiro conhecido como "permanência", que visa minimizar desigualdades e contribuir para a continuidade nos estudos e a diplomação dos estudantes. Ele está na média de R$ 400, a depender da análise que a própria universidade faz sobre o grau de vulnerabilidade social do estudante.

"Isso significa cortar bolsas, por exemplo. Um aluno que teve oportunidade de entrar na universidade, de repente perde o auxílio e precisa trancar a matrícula", explica David.

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Imagem: André Porto/UOL

O número de estudantes matriculados nas 69 universidades federais caiu de 1,3 milhão para 1,2 milhão entre 2019 e 2020, segundo o último Censo da Educação Superior, do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). Foi a primeira vez, desde 1990, que essa queda aconteceu nos cursos presenciais.

Ministro da Educação durante o governo Dilma Rousseff (PT) e professor titular de filosofia da USP (Universidade de São Paulo), Renato Janine Ribeiro atribui a queda à crise econômica, ao contingenciamento das verbas federais e, nas suas palavras, aos "ataques ininterruptos às universidades" do governo Jair Bolsonaro (PL).

Para Janine, é preciso rever o conceito de "verba discricionária": bolsas de estudo e assistência a estudantes, entre outros, não deveriam mais ser classificadas assim, pois são "serviços essenciais" para as instituições. "Os cortes estão sendo muito nefastos, não só para a expansão, mas para a própria manutenção do ensino superior público."

A UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), por exemplo, tem feito "das tripas coração", conta a professora Adriana Santana, coordenadora do curso de jornalismo. Além dos cortes de bolsas e auxílio, diz ela, tem faltado dinheiro para reparos estruturais urgentes. "As recentes chuvas em Pernambuco causaram prejuízo nos laboratórios e nas salas de aula. Com os recursos que deixaram de ser repassados, não conseguimos fazer a manutenção e esses espaços estão fechados."

Procurado desde 19 de julho, o Ministério da Educação, atualmente sob gestão de Victor Godoy Veiga, não retornou aos pedidos de entrevista da reportagem por e-mail e telefone. TAB também procurou o ex-ministro Abraham Weintraub, professor concursado da Unifesp, no curso de ciências contábeis do campus de Osasco, mas não obteve resposta.

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Imagem: André Porto/UOL

Campus branco

À noite, o campus da Unifesp, com um prédio moderno inaugurado em 2016, parece vazio. Pelo espaço de concreto, jovens andam de skate; outros conversam sentados nos bancos de cimento. Em um dos corredores, barraquinhas improvisadas vendem bolos, brigadeiros e bugigangas. "É o pessoal que vende coisas para ajudar na renda", comenta Rayssa Santiago, 19.

No final da tarde, ela, Kaiky Santos, 19, e Vitória Ribeiro, 20, se encontram no bandejão antes de mais uma noite de aula — no restaurante universitário, o jantar custa R$ 2,50 para estudantes da graduação, alternativa econômica para os três amigos.

Idealizado com a proposta de descentralizar os cursos oferecidos pela universidade, o campus da periferia de Guarulhos hoje recebe mais jovens brancos, de classe média e que fizeram o ensino médio em colégios particulares. É diferente do perfil dos primeiros estudantes do campus, que sempre foi de maioria negra e com dupla jornada de trabalho, assinala Lucília Siqueira, professora do departamento de história.

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Imagem: André Porto/UOL

"Por ano, entram 120 estudantes no curso de graduação. Uns cinco ou seis vinham do EJA [Educação de Jovens e Adultos]: senhoras, senhores, adultos que foram alfabetizados com mais de 18 anos. Agora, eles não chegam mais aqui", comenta a docente, que coordena o programa de acompanhamento aos ingressantes.

O campus, diz, está esvaziado: faltam benefícios que auxiliem na permanência na universidade e os alunos precisam procurar emprego, o que muitas vezes os obriga a optar entre o trabalho e as aulas. "Hoje é raro, por exemplo, o estudante que é trabalhador braçal. Antes, a gente tinha muito."

Guaraci Soares, 20, é um desses estudantes. Trabalhava de madrugada em um depósito de material de construção e entrou no curso de história, no período matutino, mas logo viu que não daria conta de emendar trabalho e estudo.

"Chegava muito cansado. Entrava em casa, me arrumava e vinha para a aula", lembra ele, que mora em Diadema. Precisou convencer os professores a passá-lo para o período noturno, ainda que extraoficialmente, para não precisar desistir do curso. Deu certo: ele não desistiu e depois mudou de trabalho.

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Imagem: André Porto/UOL

Há vagas

Não é só o campus de Guarulhos, na Grande São Paulo, que anda esvaziado. O sonho do diploma também foi interrompido em outros campi.

"No momento em que a situação aperta, entre estudar ou comer, obviamente, as pessoas vão optar por comer, que é o básico", argumenta Joana Angélica Luz, reitora da UFSB (Universidade Federal do Sul da Bahia). Inaugurada em 2013, a instituição tem campi em Itabuna, Porto Seguro e Teixeira de Freitas, e recebe estudantes predominantemente de baixa renda.

Segundo Luz, lá também é possível notar a redução da procura pelo ensino superior. "Hoje está na situação de ter vagas [sobrando], mas as pessoas não chegam", diz. É o caso de cursos como biologia e engenharia, que tiveram vagas ocupadas em segundas chamadas.

A reitora associa esse quadro à pandemia, à crise econômica e ao alto índice de desemprego. "Há pessoas que recebem diploma e isso não muda em nada para elas, porque a condição do país não ajuda. Não tem emprego, os mercados estão desaquecidos. Então as pessoas priorizam suas subsistências", ressalta. Para a reitora, esse quadro faz com que as universidades públicas voltem a ser reduto de uma classe mais abastada.

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Imagem: André Porto/UOL

Por muito pouco Lucas Teles, 20, não desistiu do curso de medicina na UnB (Universidade de Brasília). Em 2021, depois de a mãe ficar desempregada, a família dele não conseguia pagar o aluguel da casa, e o rapaz pensou em trancar a matrícula para poder trabalhar. "Estou no desespero, pensando em desistir de tudo. Posso trabalhar com qualquer coisa, e estamos aceitando todos os tipos de ajuda", escreveu nas redes sociais, à época.

Lucas foi aprovado em segundo lugar no vestibular. Estava no segundo período da graduação e havia tentado mais de uma vez o auxílio permanência na universidade, mas não foi selecionado. Com a repercussão na internet, o rapaz conseguiu um financiamento de estudo e ajuda de "padrinhos", que ele preferiu não identificar. "Agora consigo me manter na faculdade. Minha mãe também está empregada", conta.

O estudante recebeu mensagens de muitas outras pessoas passando por situações similares à sua nas universidades públicas. "Se houvesse mais incentivo, haveria mais oportunidade e reduziria pensamentos de desistência como os que eu tive."

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Imagem: André Porto/UOL

A crise econômica que tem levado jovens a desistir da faculdade também atinge universidades estaduais. No Paraná, seis instituições ofereceram juntas mais de 3.000 vagas de graduação que não foram preenchidas com os vestibulares.

"A sobra de vagas em instituições de educação superior públicas paranaenses estava aumentando mas não de forma tão acentuada como ocorreu depois da pandemia", comenta Alexandra Cousin, pró-reitora de ensino da UEM (Universidade Estadual de Maringá), onde há mais de 1.400 vagas remanescentes.

Cousin diz que "muitos jovens abandonaram os estudos por questões financeiras familiares e outros fatores que impediram seu aprendizado de forma significativa". Segundo ela, é urgente ampliar as políticas de permanência na instituição, o que requer recursos.

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Outros alunos deixaram a UEMG (Universidade do Estado de Minas Gerais) por dificuldades financeiras, problemas psicológicos e questões familiares, principalmente nos últimos dois anos.

"Tive alunos que trabalhavam, durante o dia, como atendentes de farmácia e vendedores em lojas de varejo, e à noite vinham para a aula", conta Plinio Volponi, professor do curso de jornalismo no campus de Frutal, a 600 km de Belo Horizonte. "Mas muitos têm dificuldade de conciliar emprego e estudo. A dupla jornada é cansativa e sobra pouco tempo, inclusive para estudar fora da sala de aula."

Segundo Volponi, estudantes têm atrasado a formatura como "alternativa" para levar as duas atividades paralelamente. "Um curso que em tese teria quatro anos, os alunos podem acabar decidindo se formar em cinco ou seis. Isso é possível porque agora as matrículas ocorrem por disciplinas e não mais por turmas, como era antigamente."

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Imagem: André Porto/UOL

O recente esvaziamento do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) ajuda a enxergar melhor o que tem acontecido com uma geração de jovens estudantes, que veem cada vez mais distante o diploma universitário. Desde 2009 a principal porta de entrada para as universidades públicas do país, o exame teve em 2014 seu maior número de inscritos até hoje: 8,7 milhões de candidatos. Em 2022, entretanto, apenas 3,4 milhões se cadastraram para a prova.

'Sempre me questiono se vale a pena'

De Carapicuíba, na Grande São Paulo, Rayssa Santiago percorre cerca de 50 km, duas vezes por semana, para ir às aulas no campus da Unifesp.

Primeira mulher da família a ingressar no ensino superior, ela diz que, se não tivesse passado em uma universidade pública, "não faria faculdade até trabalhar para poder pagar as mensalidades". Atualmente não está empregada, "por falta de oportunidade", acrescenta.

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Imagem: André Porto/UOL

Cada vez que vai às aulas, Rayssa gasta seis horas no transporte, entre ônibus, trem e metrô. Graças a um benefício da universidade, ela conta com um cartão de gratuidade para as passagens. "No início do ano, quando ainda não tinha [o cartão], precisei trabalhar aos finais de semana para conseguir o dinheiro para ir assistir às aulas."

Agora, espera o benefício de permanência estudantil, o que lhe permitiria mudar para mais perto do campus e, assim, aproveitar mais as aulas e aumentar o rendimento acadêmico. A expectativa, entretanto, não corresponde à realidade.

"Penso em trancar o curso sempre que me deparo com essas dificuldades, sempre que volto para casa à 1h da manhã, sempre que trabalho aos finais de semana com atividades atrasadas da faculdade, sempre que sinto que estou atrás da turma", relata. "Sempre me questiono se vale a pena."