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Promessa do Psol, Erica Malunguinho sai 'de fininho' das eleições de 2022

"Bem-vindas e bem-vindos ao contragolpe black trans paranauê", dizia Erica Malunguinho, primeira parlamentar trans eleita no Brasil, no evento de lançamento de sua pré-candidatura a deputada federal, no fim de março - Karime Xavier / Folhapress
'Bem-vindas e bem-vindos ao contragolpe black trans paranauê', dizia Erica Malunguinho, primeira parlamentar trans eleita no Brasil, no evento de lançamento de sua pré-candidatura a deputada federal, no fim de março
Imagem: Karime Xavier / Folhapress

Do TAB, em São Paulo

14/08/2022 04h01

Ialorixás, artistas, ativistas e lideranças do movimento negro se revezavam ao microfone no pré-lançamento da candidatura de Erica Malunguinho a deputada federal pelo Psol de São Paulo, na noite fria de 31 de março. A expressão "revolução do afeto", citada mais de uma vez ao longo de seu discurso, alvoroçava o público em clima de festa no Aparelha Luzia, "quilombo urbano" (como a parlamentar se refere ao centro cultural), no centro da capital paulista.

"Está nascendo uma nova líder... No morro do Pau da Aparelha", cantava a deputada estadual eleita em 2018, adaptando a letra do samba "Zé do Caroço". Foi uma noite "regada de afeto, política e tecnologia ancestral" — esta era a legenda na postagem de Instagram — para a construção de sua pré-candidatura. A expectativa, entretanto, naufragou na segunda-feira (8): Malunguinho anunciou que não é mais candidata a uma vaga no Congresso.

Disse que seguiria "novos caminhos", mas continuaria "na luta diária pelo meu povo e por todos que foram colocados em situação de exclusão", sem especificar o que isso significa. Entre os motivos, há uma questão de saúde familiar, mas, entre interlocutores do Psol, o que se conta é que havia uma disputa com a campanha de Douglas Belchior (PT), também candidato a deputado federal, com quem ela "dividiria" os votos do movimento negro. A equipe de articulação política da deputada nega.

Pela primeira vez desde sua fundação, em 2004, o Psol não lançou candidato próprio ao Planalto, optando por apoiar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), aliança considerada necessária para derrotar Jair Bolsonaro (PL) em 2022.

À época da pré-candidatura, ela integrava um projeto da legenda liderado por Guilherme Boulos, do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto). A ideia era eleger uma "chapa poderosa" da sigla, composta por Malunguinho e Erika Hilton, Sônia Guajajara, Ivan Valente, Luiza Erundina e Sâmia Bomfim.

Naquela noite de festa, no entanto, ela via com bons olhos a presença maciça dos psolistas na disputa. "Temos propósitos próximos e também diferenças. O Psol abriu mão de ter um candidato à Presidência, então, nada mais justo, não justo... É uma questão de organicidade, que a gente esteja no Congresso, aumentando a bancada", Malunguinho disse ao TAB na ocasião.

Malunguinho acena para uma despedida da política tradicional, pelo menos nesta eleição, o que é uma perda significativa no campo da diversidade, avalia o cientista político Marco Antonio Teixeira, professor do Departamento de Gestão Pública da FGV (Fundação Getulio Vargas).

Teixeira não descarta a hipótese de uma divisão nos movimentos minoritários entre as candidaturas de Malunguinho e Belchior. "São disputas distintas, apesar de serem no mesmo campo", diz. "Certamente, a hipótese mais plausível é de uma divisão do movimento, de ela ter calculado que a divisão podia enfraquecer as duas candidaturas e ambas morrerem abraçadas. Talvez sejam rivais no eleitorado, mas não no resultado."

"O movimento perde, a causa perde visibilidade. É uma perda porque era uma representação em construção e que tinha legitimidade no campo. Já chegou e causou incômodo na Assembleia", observa. Tão logo iniciou os trabalhos, Malunguinho ouviu do deputado Douglas Garcia (PSL), por exemplo, que ele tiraria a tapas uma pessoa transexual que encontrasse no banheiro.

A deputada estadual Erica Malunguinho (Psol) posa para retrato na Assembleia Legislativa de São Paulo - Bruno Santos/Folhapress - Bruno Santos/Folhapress
A deputada estadual Erica Malunguinho (Psol) posa para retrato na Assembleia Legislativa de São Paulo
Imagem: Bruno Santos/Folhapress

Expectativa

Erica Malunguinho foi a primeira mulher transexual eleita deputada na história do Brasil, com mais de 55 mil votos. Na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo), focou nas pautas relacionadas aos direitos de LGBTQIA+ e da população negra.

"Quando uma mulher negra se move, o mundo se move junto", ela disse no lançamento da pré-candidatura, também uma espécie de retrospectiva dos feitos da parlamentar, "mandata quilombo", como é conhecida sua atuação na assembleia paulista, aplaudida por militantes do movimento negro. "Como diria na internet: é sobre isso. E tá tudo bem."

"Nós somos gente que move gente. Ao final de quatro anos agora com o mandato entregue, a responsabilidade que me foi dada por vocês, [...] é hora sim de participar da nova redemocratização do Brasil!", bradou, festejada por amigos e ativistas. Entre eles a coordenadora do Movimento Negro Unificado (MNU) de São Paulo, Regina Lucia Santos, que fez um discurso forte destacando a importância de eleger um "número enorme de negros, negras e negres de esquerda".

"É preciso que as pessoas trans, que as LGBTs, que as pessoas pretas e indígenas participem desse processo da redemocratização", disse Malunguinho, referindo-se à vitória de Lula, dada como certa. "A gente precisa não ver isso apenas pela janela, precisa participar. E, pra isso, é estar presente na política institucional", concluiu. "Bem-vindas e bem-vindos ao contragolpe black trans paranauê."

Fernando Haddad (PT), então pré-candidato ao governo de São Paulo, era bastante esperado, mas não compareceu nem informou o motivo à equipe de Malunguinho. Boulos chegou atrasado, quando o evento já estava lá pelas tantas. Ao assumir o microfone, por volta das 21h, disse que era uma honra estar ali.

"Pra mim, vai ser uma satisfação enorme, além de todas as cachaças que a gente vai tomar em Brasília, ter Erica como companheira de bancada ano que vem", acrescentou, também tratando as vitórias dele e da candidata como garantidas, como é comum se fazer nos comícios. "Já passou da hora de fazer com que o povo brasileiro esteja representado em sua diversidade, e essa diversidade não estará completa se não tiver Erica."

Para Malunguinho, o cálculo era o seguinte: ao entregar "um mandato muito exitoso", o próximo passo seria levar sua experiência ao âmbito federal — na esfera estadual, por exemplo, destinou R$ 1,5 milhão a instituições focadas no apoio e acolhimento LGBTQIA+ e ajudou a derrubar o PL 504, que proibiria alusão a orientações sexuais e movimentos sobre diversidade em campanhas publicitárias. "Obviamente tem questões que a gente tenta movimentar que só são possíveis fazer em nível nacional, de mexer na Constituição."

Realidade

"A flecha foi lançada", Malunguinho escreveu na legenda de um álbum de fotos do evento no Aparelha Luzia, publicado em 4 de abril. Sete dias depois, fez o último post sobre sua pré-candidatura, repercutindo um trecho de uma entrevista que deu ao site Metrópoles.

Depois, passou dias com a família em Pernambuco. Desde então, só desconversa. Segundo informações de bastidores, ao menos desde junho já se imaginava que ela iria desistir — o que também se refletiu nos seus perfis no Twitter e no Instagram: a parlamentar parou de fazer qualquer referência à sua campanha.

Malunguinho foi aos EUA e participou de um evento da Universidade de Nova York. "Elaborando futuros afro atlânticos pelos caminhos das artes. Logo menos conto tudo", ela escreveu, em 4 de junho. Uma fonte diz que ela pode estar negociando um projeto artístico com a universidade.

Não ficou claro por que ela decidiu desistir da candidatura ao Congresso, anunciada com tanta expectativa, e o que pretende fazer na sequência: direcionar seus eleitores a Belchior, aproximar-se mais do PT, tentar a reeleição na Alesp, voltar ao Recife, ir a Nova York ou se viu-se alvo de violência política e decidiu desistir do Legislativo. Ao site Alma Preta, porém, afirmou que aceitaria um cargo no Executivo, como secretária de uma pasta ou gestora de uma autarquia.

Procurada pelo TAB, a assessoria da deputada afirmou que ela "explicou as razões da retirada de sua candidatura em carta aberta nas redes sociais" e recusou o pedido de entrevista. Nos últimos dias, até interlocutores mais próximos estão com dificuldade de conversar com ela. Em carta aberta, a deputada não deu pistas sobre o futuro, mas frisou que "a política institucional não é o único instrumento de luta".

O TAB procurou Belchior e Boulos, mas as assessorias dos candidatos não responderam aos pedidos de entrevista até a publicação da reportagem.

Regina Lucia Santos, do MNU, lamenta a desistência de Malunguinho, que considera "uma perda incomensurável" para a população pobre, preta e trans de São Paulo. Regina diz que tentou desde julho um encontro presencial com a parlamentar, para tentar dissuadi-la da desistência, mas não conseguiu.

Ela não vê concorrência entre as candidaturas de Malunguinho e Belchior — a quem a militante também apoia. "Douglas abrange um público ligado à educação, ensino superior e luta antirracistas. Erica abrange um público ligado à cultura negra, às mulheres e ao enfrentamento da cisnormatividade. Nós elegeríamos os dois."

Nos comentários ao post em que anunciou a desistência, a maioria manifestou apoio à deputada. "Acreditei que juntas poderíamos estar lá em Brasília fazendo uma bancada de luta pelas nossas pautas que são quase 100% iguais", escreveu Ariadna Arantes, ex-BBB, mulher trans candidata a deputada federal pelo PSB.

"Perde a política, perdemos nós. Você fará muita falta, mas certo de que seguimos juntes nessa luta. Você é luz e seguirá irradiando luta", um seguidor comentou. Outro chegou a perguntar se ela apoiará uma candidatura. A resposta foi lacônica: "Simmmm, sem dúvida". Lembra as palavras da própria parlamentar na noite de festa de 31 de março: "É sobre isso. E tá tudo bem".