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Shopping acolhe pessoas em situação de rua com jantar, TV e pebolim

Tiago dos Santos, 36, que se atualmente se encontra em situação de rua, é um dos acolhidos do NorteShopping, na zona norte do Rio de Janeiro - Bruna Prado/UOL
Tiago dos Santos, 36, que se atualmente se encontra em situação de rua, é um dos acolhidos do NorteShopping, na zona norte do Rio de Janeiro
Imagem: Bruna Prado/UOL

Yuri Eiras

Colaboração para o TAB, do Rio

18/08/2022 04h01

Enquanto fuma um cigarro na varanda de um escritório desativado, Tiago Carvalho, 36, lembra da juventude no subúrbio do Rio de Janeiro no início dos anos 2000: dançou em raves, praticou jiu-jítsu, serviu às Forças Armadas e frequentou uma antiga matinê do NorteShopping, um dos mais tradicionais centros comerciais da zona norte da cidade. "Não esperava dormir no shopping. É uma coincidência, ou destino", diz, enquanto olha para o horizonte e mais uma rajada de vento vem contra seu rosto, na noite em que o inverno carioca bateu a mínima de 13,9°C durante a madrugada.

Sexta-feira (12) foi o primeiro pernoite de Tiago na ação de acolhimento realizada pelo shopping em parceria com a Prefeitura do Rio devido ao frio. Nas noites de agosto, uma sala inutilizada abriga homens em situação de rua, levados pela SMAS (Secretaria Municipal de Assistência Social). Horas antes, Tiago estava deitado no banco de uma praça e pensava em qual marquise iria se recolher naquela noite fria. Foi quando servidores passaram de van e o convidaram para um abrigo.

"É um misto de sentimentos estar aqui. Fico triste e alegre, e pensando que eu preciso sair dessa", diz. "Na rua é difícil sobreviver: dormir embaixo de marquise, se cobrir com papelão. Depender de alguém passar com uma quentinha, ou ter que revirar lixo para comer."

Tiago vive entre idas e vindas da casa da mãe, no Cachambi, e a situação de rua, provocada pela dependência química. Segundo os dados mais recentes, de 2020, 7.272 pessoas vivem em situação de rua no Rio — 80% são homens.

Na pandemia, Thiago Pampurre, 40, coordenador de segurança do NorteShopping, notou o aumento das famílias dormindo ao relento, em praças, embaixo de marquises e em porta de lojas. "Estava saindo do expediente, em agosto do ano passado. Era uma noite de frio intenso no Rio, menos de 16°C. Falei com um amigo: 'Imagina a situação de quem está dormindo na rua?'", lembra.

Thiago foi para casa, mas ficou martelando mentalmente a pergunta. Até que teve uma ideia: "Decidi abrir as portas do trabalho. Falei com a prefeitura e no dia seguinte já estava tudo aprovado com as partes interessadas da empresa. Na segunda seguinte, estávamos com a estrutura recebendo as pessoas", conta.

Getúlio, que se encontra em situação de rua, organiza um kit para dormir durante o acolhimento no NorteShopping, no Rio - Bruna Prado/UOL - Bruna Prado/UOL
Getúlio, que se encontra em situação de rua, organiza um kit para dormir no shopping
Imagem: Bruna Prado/UOL

Jantar, TV e totó

No inverno de 2021, a ação NorteShopping Acolhedor ofereceu 501 pernoites durante 28 dias. Desta vez, a iniciativa acontece de 10 de agosto a 10 de setembro.

Na ação, os atendidos são escolhidos no Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social). São sempre homens — o critério é da equipe técnica da prefeitura; argumenta-se que, se homens e mulheres forem ao abrigo, é possível ter desavenças ou brigas de casais, uma situação que eles não conseguem lidar.

Eles chegam às 18h em vans da secretaria e são direcionados ao banho. Às 20h, a equipe do shopping serve o jantar, e depois há tempo livre para que os acolhidos possam ler, assistir à TV ou jogar pingue-pongue e totó (pebolim). Após o pernoite, voluntários distribuem o café da manhã. Os acolhidos podem sair e voltar na noite seguinte.

Marco Aurelio Fiuzza, 54, no canto inferior direito, e outros homens que se encontram em situação de rua jantam durante o acolhimento no NorteShopping, no Rio - Bruna Prado/UOL - Bruna Prado/UOL
Atendidos jantam durante o acolhimento no NorteShopping, no Rio
Imagem: Bruna Prado/UOL

A campanha também regulariza a documentação dos acolhidos e tenta encaminhá-los para vagas de trabalho. Na primeira edição, 11 pessoas saíram empregadas.

Rogério Valitch, 55, faliu durante a pandemia e foi parar nas ruas. Foi o primeiro acolhido a conseguir um emprego e hoje trabalha no setor de trânsito do próprio shopping. "O trabalho está me permitindo reestruturar a vida", conta. "Cheguei aqui e me senti em uma nova família. Já tenho minha casa e aos poucos estou comprando minhas ferramentas [de construção]. Hoje gosto muito mais da pessoa que eu sou e que me tornei", orgulha-se.

Anualmente, a SMAS faz uma ação especial de frio para acolher a população, com 184 vagas; no NorteShopping, há mais 30 vagas. Muitos trabalhadores foram parar na rua com a pandemia e é preciso "acolher, apontar caminhos e ajudar na reinserção deles no mercado", diz a secretária Maria Domingas Pucú.

Moradores de rua assistem TV durante o acolhimento no NorteShopping, no Rio - Bruna Prado/UOL - Bruna Prado/UOL
Acolhidos tomam banho, jantam e têm área para TV, pingue-pongue e totó
Imagem: Bruna Prado/UOL

'Luta pela esperança'

Marco Aurélio Fiúza, 54, se apaixonou por boxe com o longa "Luta pela esperança" (2005). No filme, Russell Crowe interpreta o pugilista norte-americano James J. Braddock, que acumulou vitórias, foi à extrema pobreza com a crise de 1929, mas reencontrou o rumo e virou campeão mundial. O arco narrativo de conquistas, fracasso e redenção se tornou um propósito para quem persegue a última parte — a da redenção.

Fiúza está em situação de rua há pouco mais de 20 dias, após problemas financeiros e mortes de familiares. A perspectiva de conseguir um emprego, avisada por um colega, foi o que o fez procurar o projeto. "Eu estava desanimado — é muito fácil encontrar alguém desanimado hoje em dia —, mas resolvi vir", diz.

Durante a semana, o ex-porteiro passa manhãs e tardes em um estacionamento de um posto de saúde, guardando carros. Quando a noite chega, ele procura abrigos públicos; se não consegue, reza para Santa Sara protegê-lo e dorme na rua. "Ela nunca falha comigo."

As frases de Fiúza são marcadas por pausas, como se deixasse passar pensamentos ressentidos para escolher uma resposta mais moderada. Ele acelera ao falar de boxe, esporte que treina em uma academia no Méier, na zona norte. É a parte boa do dia: a academia é onde encontra eventualmente, além de força, comida. Naquela semana, durante uma aula, alguém havia deixado um prato de sopa para ele.

Marco Aurelio Fiuzza,54, que se encontra em situação de rua, lê um livro durante o acolhimento no NorteShopping, no Rio - Bruna Prado/UOL - Bruna Prado/UOL
Marco Aurelio Fiuzza,54, lê um livro no acolhimento no NorteShopping, no Rio
Imagem: Bruna Prado/UOL

"Quando estou no treino, desligo. Desconto tudo no boxe. Se não fosse isso já tinha pirado há muito tempo. Eu era meio-pesado, tinha 81 kg. Agora estou bem mais magro, não sei mais minha categoria", admite Fiúza, que volta a pausar, antes de entrar em um tema mais difícil. "Na rua eu sinto a indiferença das pessoas. Mas tenho sofrido mesmo é com a fome."

Os acolhidos vieram principalmente da zona norte do Rio, mas o maior contingente da população de rua está no centro (32%, segundo o Censo de 2020). Aos finais de semana, quando as portas das lojas fecham e o fluxo no coração da cidade diminui, a realidade se revela.

"Durante a semana, quando estou pegando no sono, começam a chegar os trabalhadores abrindo as lojas, passando por quem está deitado. A gente se sente humilhado", diz um acolhido que não quis se identificar. "Domingo é o único dia que dá para descansar. A cidade parece fantasma."

Jorge Sales, 55, joga totó no acolhimento no NorteShopping, no Rio - Bruna Prado/UOL - Bruna Prado/UOL
Jorge Sales, 55, joga totó no acolhimento no NorteShopping, no Rio
Imagem: Bruna Prado/UOL