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Moradora derruba casa na costa de Atafona, onde tudo é engolido pelo mar

Casa de Sônia Ferreira antes da demolição, em Atafona (RJ) - Fabiana Batista/UOL
Casa de Sônia Ferreira antes da demolição, em Atafona (RJ) Imagem: Fabiana Batista/UOL

Fabiana Batista

Colaboração para o TAB, do Rio

28/08/2022 04h01

Em uma tarde de julho, uma escavadeira derrubou o que restou de uma casa. Enquanto fotografava a cena, a dona aparentava fortaleza; ao entrar na casa dos fundos, onde passou a morar, ela também desabou: chorou aos prantos.

Há 50 anos, Sônia Ferreira, 78, vê o mar engolir casas, prédios e comércios na costa de Atafona, distrito de São João da Barra, no interior do Rio. E, em 2019, sua casa foi mais uma vítima. Na varanda do segundo andar, enquanto filmava as ondas brigarem com a propriedade vizinha, distraída, levou um susto quando o mar invadiu sua propriedade pela primeira vez. "Meu coração gelou", lembra. Um pedaço do muro tinha desabado.

Nos dois anos seguintes, do quarto, viu o muro inteiro cair e precisou fechar a frente do quintal com tapume de alumínio. A cada lua nova ou cheia, quando o mar estava agitado, ela passava a noite melancólica assistindo o terreno desaguar no mar da varanda do segundo andar. Sempre se negou a mudar de endereço.

Decidida a permanecer no terreno até quanto fosse possível, a aposentada fez uma reforma na pequena casa dos fundos e agora mora lá. Ela se desfez de alguns móveis da casa antiga e transformou a garagem em depósito para os que ainda não queriam vender.

Construída em 1980, a casa de Sônia Ferreira, em Atafona (RJ), ficava e duas quadras da praia e hoje vê o mar se aproximar a cada ano - Mariana Costa/UOL - Mariana Costa/UOL
Em 2021, a duas quadras da praia, a casa de Sônia já via o mar se aproximar
Imagem: Mariana Costa/UOL
Casa de Sônia Ferreira em ruínas, em Atafona (RJ) - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
Em 2022, a aposentada decidiu demolir o que estou da casa em ruínas
Imagem: Fabiana Batista/UOL

'Será que agora cai tudo?'

Os primeiros registros de desastres causados pelo mar nesta região são do início de 1950. Casas de pescadores alagavam nas noites de mar revolto na Ilha da Convivência. No entanto, foi na década de 1970 que famílias inteiras começaram a ficar desabrigadas. Estima-se que ao menos 300 famílias foram realocadas da ilha para outros locais.

A destruição começa pelo lençol freático. O mar umedece e corrói as estruturas mais frágeis. Para piorar, no período de lua nova e cheia, o mar agitado forma ondas gigantescas que se chocam em terrenos e colunas de concreto ou ferro até caírem e serem levados mar adentro.

Casa de Sônia Ferreira antes de ficar em ruínas, em Atafona (RJ) - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
Foto antiga da casa antes do processo de erosão
Imagem: Fabiana Batista/UOL

Sônia passa noites em claro ansiosa nessa época. "No início, ao ver minha propriedade ser levada, pensava: 'Será que agora cai tudo?'".

Os motivos são diversos e, de acordo com Fernando Codeço e Julia Naidin, idealizadores da Casa Duna — um espaço de pesquisa sobre o fenômeno —, além de a região ser vulnerável à erosão da costa, as mudanças climáticas têm acelerado esse processo.

Fernando Codeço e Julia Naidin, idealizadores da Casa Duna - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
Fernando Codeço e Julia Naidin, idealizadores da Casa Duna
Imagem: Fabiana Batista/UOL

Fernando e Julia publicam sobre o tema desde 2017 e, com um viés artístico, em um lugar alugado em Atafona para receber artistas e pesquisadores, criaram a Casa Duna com o objetivo de estimular o estudo sobre o assunto. "Pesquisamos a erosão para entendermos como as pessoas ressignificam suas vidas aqui e aprendem a viver com o mar."

Em seus estudos, Julia encontrou pessoas, por exemplo, que são ex-moradores da Ilha da Convivência e, atualmente, passam os finais de semana acampados nos escombros que sobraram ali. Ou ainda, comerciantes que reutilizam móveis, pias e privadas abandonados.

Sônia é um exemplo. A pesquisadora compreende que ela não se tornou vítima de seu próprio desastre e criou um acervo de fotografias e vídeos das quedas das construções vizinhas, inclusive do tombamento da sua casa. Atualmente, crianças e adolescentes de São João da Barra e cidades vizinhas a visitam para trabalhos escolares.

Costa de Atafona (RJ) - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
'A beleza da cena e o barulho ensurdecedor do mar também hipnotizam', diz Sônia
Imagem: Fabiana Batista/UOL

Espectadora do desastre

Apesar de morar há apenas 27 anos em Atafona, Sônia cresceu nas ruas de areia da praia. Na infância, brincava com os primos quando viajava nas férias de Campos dos Goytacazes, onde morava, para a casa do avô. Em 1979, já casada, acompanhou de perto e coordenou a equipe durante os seis meses em que sua casa foi construída. Após se aposentar, ela se mudou de vez para a casa, em 1995.

Carismática, a atafonense de coração conta histórias das quais viveu na região. Como espectadora, em 1990, se reuniu com um grupo para assistir às ondas baterem desordenadamente na varanda de uma vizinha do quarteirão da frente de sua casa. "Ao mesmo tempo que causavam desespero, a beleza da cena e o barulho ensurdecedor do mar também hipnotizam." Com violência, o mar levou o portão naquela noite.

"Lembro que, antes da erosão, andávamos muito para encontrar o mar e, de repente, foi ele quem nos encontrou", diz. A queda de um prédio de quatro andares em frente à sua casa, em 2008, foi outra situação emblemática para ela.

"Foi doloroso acompanhar, porque o Julinho [dono do prédio] era nosso amigo e vi sua luta para construir aquele prédio", conta. No dia, mais uma vez, ela foi espectadora. Da varanda do seu quarto, viu o prédio desabar. Com o susto, Sônia encostou na parede e respirou fundo assustada. "Meu coração apertou."

Mesmo com a erosão da costa tão próxima, Sônia não imaginou que estaria viva para ver sua casa ir abaixo. Fez as contas. Se a casa do quarteirão da frente caiu no final da década de 1990 e o do amigo, um quarteirão depois, em 2008, calculou que já teria morrido quando chegasse a vez da sua propriedade.

Entretanto, não foi o que aconteceu e ela precisou reorganizar sua vida. Se recorda que após a última parte do tombamento da casa, ficou cabisbaixa por semanas. Mas afirma: "Tenho superado esta situação por entender que vou guardar na memória as lembranças que os cômodos me traziam".

Casa de Sônia Ferreira em ruínas, em Atafona (RJ) - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
'Antes da erosão, andávamos muito para encontrar o mar e, de repente, foi ele quem nos encontrou'
Imagem: Fabiana Batista/UOL
Casa de Sônia Ferreira em ruínas, em Atafona (RJ) - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
'No dia em que tive que sair de vez da minha casa, as pessoas nem diziam nada, apenas me abraçavam'
Imagem: Fabiana Batista/UOL

Até o fim

Apesar dos desastres, o distrito continua em pé. Basta caminhar pelas ruas de paralelepípedo e ver casas sendo reformadas e bares e restaurantes funcionando.

São João da Barra é conhecida como cidade do pescado. E, tranquila e pacata, a economia é baseada no que os pescadores trazem para a costa. "Se a pesca estiver boa, os comerciantes estão felizes e a economia gira com tranquilidade", explica Fernando.

Além das famílias da pesca, veranistas da vizinha Campos dos Goytacazes como Sônia, comerciantes e professores universitários também escolheram Atafona para morar.

Se uma casa está sob risco de ser levada pelo mar, a relação entre a vizinhança é de solidariedade. "No dia em que tive que sair de vez da minha casa, as pessoas chegavam e, muitas vezes, nem diziam nada, apenas me abraçavam", relembra Sônia, mãe de três filhos, uma delas moradora de Atafona.

Na época em que o prédio de Julinho caiu, os filhos insistiam para que a mãe se mudasse imediatamente. Entretanto, ela decidiu permanecer até que se sentisse realmente ameaçada.

Há um ano, Sônia mora na casa que sobrou na sua propriedade e está construindo um muro para separar o terreno da casa antiga em ruínas e a parte da propriedade que permanecesse em pé. Além da casinha, o terreno ainda tem uma piscina, uma churrasqueira e uma área de gramado.

Questionada sobre a possibilidade da atual moradia desaguar no mar, a aposentada vive na expectativa de não passar por isso novamente. Se perder a segunda construção, Sônia pretende se mudar para a casa da filha no distrito, pois se recusa a sair de Atafona.

"Já vou estar mais velha e quero morrer aqui", diz a mulher de cabelos brancos, sentada em uma poltrona florida. "Peço forças a Deus para passar por tudo isso com saúde."

Casa atual de Sônia Ferreira, em Atafona (RJ) - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
Se perder a segunda construção, Sônia iria morar com a filha no distrito, pois se recusa a sair de Atafona
Imagem: Fabiana Batista/UOL