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Restaurante Amazónia em Portugal tem decoração de girafas e serve sushi

Restaurante Amazónia, em Viseu: nem clima, nem comida brasileira, quanto mais amazônica - Luciana Alvarez/UOL
Restaurante Amazónia, em Viseu: nem clima, nem comida brasileira, quanto mais amazônica
Imagem: Luciana Alvarez/UOL

Luciana Alvarez

Colaboração para o TAB, de Viseu (Portugal)

24/08/2022 04h00Atualizada em 24/08/2022 12h00

O recém-inaugurado restaurante Amazónia Viseu, no norte de Portugal, promete em seu site oficial uma "verdadeira viagem até o outro lado do Atlântico". Parece, contudo, que mais essa caravela se perdeu pelo mundo sem chegar ao destino prometido.

A reportagem do TAB foi conferir o local e o que descobriu foi um estabelecimento com decoração inspirada na natureza das savanas africanas e um cardápio que mistura pratos típicos de vários locais de fora da Europa.

As referências à Amazônia começam e acabam no nome do restaurante — há ainda um animal que se assemelha a uma onça-pintada na decoração e logotipo, mas para por aí. Nem mesmo um açaí ou um refrigerante de guaraná, já tão comuns em bares e restaurantes de Portugal, graças à crescente comunidade brasileira no país, foram contemplados no cardápio.

Basta mesmo um nome. Ignorando a falta de conexão com a realidade, a mídia portuguesa reproduziu os clichês esperados. No jornal Diário de Notícias, a reportagem sobre o novo local teve o título "A Amazónia chegou a Viseu". A revista Magg seguiu na mesma linha, com um "A Amazónia fica em Viseu".

O restaurante, a 290 km de Lisboa, abre apenas à noite, de quinta a sábado. É recomendável fazer reserva antecipadamente. Logo à entrada, os clientes que chegam para jantar esperam por suas mesas em uma espécie de "lounge selvagem", um ambiente amplo decorado de um lado com uma família de girafas; do outro, com dois elefantes — todos em tamanho real. Nenhuma das espécies é encontrada na fauna amazônica.

'Picanha gaúcha' do Amazónia, restaurante em Viseu - Luciana Alvarez/UOL - Luciana Alvarez/UOL
'Picanha gaúcha' do Amazónia
Imagem: Luciana Alvarez/UOL

Guioza e bacalhau

Os portugueses foram os primeiros europeus a desembarcar nas terras que hoje são conhecidas como Brasil, onde está a maior parte da floresta amazônica. O restaurante pertence ao Visabeira, um grande grupo empresarial que nasceu em Viseu mas atualmente faz negócios por quase todo o globo, incluindo Brasil e Colômbia.

O grupo divulgou ter alcançado só no primeiro semestre de 2022 um faturamento de 68 milhões de euros (cerca de R$ 345 milhões). A atividade principal é prestação de serviços de engenharia de redes de telecomunicações e energia, mas o braço de hotelaria e restauração do grupo há 29 estabelecimentos em funcionamento.

Era de se esperar que, com tanta história e recursos, a viagem proposta pelo novo restaurante pudesse se aproximar um pouco mais da Amazônia, ainda que metaforicamente.

Na noite em que a reportagem visitou o restaurante, os cenários da selva não-amazônica, apesar de grandes e bastante chamativos, não pareceram despertar atenção dos visitantes. Durante todo o tempo, ninguém parou para tirar fotos com os bichos de resina. Os grupos de portugueses e franceses se mostraram mais entretidos com o que de fato importa em um restaurante: a comida.

Elefante de resina no restaurante Amazónia, em Viseu (Portugal) - Luciana Alvarez/UOL - Luciana Alvarez/UOL
Elefante de resina no restaurante Amazónia, em Viseu (Portugal)
Imagem: Luciana Alvarez/UOL

No cardápio, vê-se uma lista de pratos "exóticos" para europeus: sushis japoneses e guiozas chineses, ceviche peruano, pokes hawaianos, curry indiano. No meio deles, para agradar também aos mais tradicionais, há uma opção de bacalhau.

A garçonete informou, porém, que os itens mais pedidos são as carnes vermelhas, feitas como no Brasil: acém (23 euros ou R$ 117), a "picanha gaúcha" (por 22,50 euros, ou R$ 114) e o "rodízio à brasileira" (27,50 euros, ou R$ 140). Questionada sobre as opções do cardápio, a atendente se mostrou surpresa com a pergunta e confirmou que não tem sequer um prato que seja típico da Amazônia.

O restaurante Amazónia Viseu nasceu da reabilitação de uma discoteca, um dos empreendimentos mais antigos do Visabeira nesse ramo, que funcionou por 30 anos, de 1986 a 2006. De certa forma, o lugar ainda guarda muito da antiga identidade: é uma enorme caixa fechada sem janelas, decorada de forma extravagante, com música alta comandada por um DJ. E mantém um enorme globo espelhado rodando no teto.

Amazónia tem clima de discoteca, globo de pista de dança e decoração extravagante - Luciana Alvarez/UOL - Luciana Alvarez/UOL
Amazónia tem clima de discoteca, globo de pista de dança e decoração extravagante
Imagem: Luciana Alvarez/UOL

"Eat, drink & get wild" (coma, beba e aventure-se, em tradução livre), frase que acompanha o nome do restaurante, torna-se assim uma boa tradução do que a palavra "Amazônia" representa. Sem compromisso com a realidade amazônica, o nome do restaurante indica apenas como os europeus enxergam a maior floresta brasileira.

"Amazónia remete-nos para um espírito de evasão e comunhão com a natureza", afirma Paulo Faustino, diretor do mestrado em comunicação e gestão de indústrias criativas da Universidade do Porto. São elementos positivos e, portanto, o professor não estranha que marcas queriam se associar à Amazônia e às "dimensões cognitivas que potencia".

Embora nem sempre os brasileiros se sintam plenamente acolhidos em Portugal, há um imaginário sobre o Brasil que atrai e vende. "A cultura brasileira, na sua grande diversidade, tem sido objeto de grande interesse e receptividade nestes últimos 50 anos. As telenovelas e a música popular brasileira foram talvez os elementos mais significativos que catalisaram esse interesse, já para não falar de outros programas como os de humor (os de Jô Soares, entre outros)", cita Faustino.

De fato, os portugueses consomem muita música e cultura produzidas por brasileiros. Mas a carne eles consomem de uma forma muito diferente a dos brasileiros. A picanha, com pouca gordura, foi cortada muito fina e passou do ponto. Não houve viagem nem à Amazónia, nem mesmo ao Rio Grande do Sul.

Errata: este conteúdo foi atualizado
A primeira versão deste texto afirmava que a distância entre Lisboa e Viseu era de 390 km. Na verdade, a distância é de 290 km. O trecho foi corrigido.