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11 obras de arte e um meme: os bastidores da Operação Sol Poente

O quadro que foi empurrado no camburão de uma viatura -- autoria ainda precisa ser verificada - Zô Guimarães/UOL
O quadro que foi empurrado no camburão de uma viatura -- autoria ainda precisa ser verificada Imagem: Zô Guimarães/UOL

Cláudia Castelo Branco

Colaboração para o TAB, do Rio

20/08/2022 04h01

Um taxista do Rio estava perplexo com o caso das obras de arte encontradas na Operação Sol Poente, nome de uma das telas de Tarsila do Amaral. "É muito dinheiro", disse, de modo óbvio, sobre um dos mais impressionantes escândalos da arte nacional. Nas redes sociais, o vídeo de uma tela empurrada dentro do porta-malas de uma viatura chamou a atenção. "Os caras com um quadro da Tarsila que valia 200 milhões, parecendo que era um pôster da Urban Arts", comentou um tuiteiro.

De Tarsila, diga-se, a obra não tinha nada. O que quase ninguém perguntou foi: que obra era aquela?

O quadro sombrio com tons de verde sequer pertencia ao acervo de Geneviève Boghici, 83, e não estava sendo procurado. Pintada num compensado, a obra pode ter sido comprada em qualquer feira de quinquilharia, opinou Gilberto da Cruz Ribeiro, titular da Deapti (Delegacia Especial de Atendimento à Pessoa da Terceira Idade), enquanto exibia o quadro ao TAB. "Não vale nada."

É a única tela disponível na delegacia. Um outro vídeo, onde policiais retiram 11 obras de arte embaladas em plástico-bolha, não teve a mesma repercussão. "Fiquei 'pê da vida'. Virou meme, né."

Foto antiga do casal Jean e Geneviève Boghici, na notícia-crime do golpe das videntes - Reprodução - Reprodução
Foto antiga do casal Jean e Geneviève Boghici, na notícia-crime do golpe das videntes
Imagem: Reprodução

Uma operação de milhões

Nilton Taumaturgo, do Instituto de Criminalística Carlos Éboli, lembra que chegou às 5h da manhã na Delegacia do Idoso, em Copacabana. Reuniu-se com as equipes policiais que cumpririam os mandados de segurança em 14 endereços no Rio. A ação tinha duas prioridades: prender os seis procurados e recuperar 11 obras de arte que estavam desaparecidas. O combinado: os policiais enviariam a um grupo de WhatsApp fotos e vídeos dos quadros encontrados em cada local — "fosse quadro solto ou pendurado na parede, para que identificássemos se tinha ali uma das procuradas". Era uma quantidade grande de informação chegando a cada minuto. Se os policiais encontrassem as obras, o estabelecido era que Nilton fosse ao local averiguar.

Uma das equipes encontrou todo o acervo na rua Maria Quitéria, 32, em Ipanema. A primeira encontrada foi "Sol Poente". Os peritos pediram que os policiais aguardassem no local.

"Ao chegar lá, as obras já estavam todas na sala do apartamento, bem embaladas com papel-manteiga, plástico-bolha, fita crepe. Quando abrimos e vimos que estavam ali, paramos de monitorar as comunicações e aquele local passou a ser tratado como a cena do crime."

O quadro cuja imagem passou a circular na internet como suposta obra de Tarsila do Amaral não estava sequer sendo procurado. "Já tínhamos encontrado todas as pinturas quando o policial achou esse quadro e não conseguiu contato conosco. Ele então levou a tela, que não fazia parte do inquérito, até a Maria Quitéria. Usaram isso de uma forma completamente equivocada", desabafou Nilton.

O tal quadro foi encontrado num apartamento no Engenho de Dentro, atrás de um armário, dentro de uma caixa de televisão. Segundo os peritos, a tela estava pintada sobre um compensado de tapume de obra — aqueles que têm uma coloração rosa no fundo. " A gente fez uma coisa que nunca foi feita no Brasil. E, de repente, por causa de um engano, prejudicam a imagem de uma operação tão bem sucedida."

Nilton Taumaturgo - Zô Guimarães/UOL - Zô Guimarães/UOL
Gilberto da Cruz Ribeiro, titular da Deapti (Delegacia Especial de Atendimento à Pessoa da Terceira Idade)
Imagem: Zô Guimarães/UOL

Um blefe da quadrilha? "Não dá pra saber. Eles não têm esse conhecimento. A especialista em obras de arte é Sabine", contou o delegado. Sabine, 49, é filha de Jean e Geneviève Boghici. Jean (1928-2015), romeno conhecido como marchand pioneiro no Rio de Janeiro, tratava as obras de arte como filhas. Geneviève, uma bailarina francesa, dava aulas do idioma no Rio. Jean encontrou nela sua melhor colaboradora e batizou a coleção da família de "Coleção Geneviève e Jean Boghici".

Ele começou a comprar obras nos anos 1960. No incêndio que atingiu a cobertura da família em Copacabana, há 10 anos, Sabine salvou duas cadelas e 14 gatos. Na ocasião, o fogo que começou no ar-condicionado do seu quarto consumiu obras célebres. Em 2015, com o falecimento de Jean, Geneviève passou a ser inventariante e administrar os bens do espólio da família.

Mãe e filha foram morar juntas, mas o convívio não era harmônico. Sabine impunha à mãe o convívio com diversos cachorros resgatados das ruas, muitos deles agressivos. Um amigo de Geneviève lembra de vê-la machucada, com braços e pernas mordidos pelos cachorros.

Convidada do programa "Sem Censura" em outubro de 2019, Sabine foi apresentada como fundadora do centro de reabilitação animal Sabine Boghici. Na época ela já namorava Rosa Stanesco Nicolau, 49, mulher com larga ficha corrida, acusada de vários golpes no Rio.

Três meses depois, em janeiro de 2020, o "plano das falsas videntes" foi implementado.

Sabine Coll Boghici, presa por golpe milionário contra a mãe - Facebook - Facebook
Sabine Coll Boghici, presa por golpe milionário contra a mãe
Imagem: Facebook

O golpe

Diana Rosa Aparecida Stanesco, 37, abordou Geneviève Boghici em janeiro de 2020 na saída de uma agência bancária em Copacabana, na zona sul do Rio. Não se conheciam.

Apresentando-se como vidente, a meia-irmã de Rosa afirmou que a filha de Geneviève morreria em breve. A fala comoveu a colecionadora de arte, definida na notícia-crime como uma pessoa mística. A francesa levou então a mulher para dentro de sua própria casa, na rua Barata Ribeiro. Ali, Diana jogou búzios e confirmou a iminente morte de Sabine.

Partiram para uma segunda suposta vidente em busca de confirmação, Jacqueline Stanesco (prima de Diana e Rosa), 38. Depois seguiram para Ipanema, onde uma terceira vidente aguardava — a tal Mãe Valéria de Oxossi, na realidade Rosa Stanesco Nicolau. A mulher também jogou búzios e ofereceu um trabalho espiritual para impedir a morte de Sabine.

A senhora, impressionada com o tanto de informação que Rosa/Valéria sabia sobre sua família, consultou a filha, que pediu para a mãe bancar o trabalho espiritual proposto por Mãe Valéria. Geneviève ainda não sabia que Sabine e Rosa viviam um relacionamento amoroso.

De 22 de janeiro a 5 de fevereiro daquele ano, foram feitas oito transferências para terceiros indicados por Rosa, que totalizaram quase R$ 5,1 milhões. Eram serviços espirituais. Nesse período, a quantidade de cachorros dentro de casa aumentou e a mãe teve que conviver com 20 animais.

Geneviève já não acreditava nas alegações de trabalho espiritual. Coagida e acuada, não conseguiu opor resistência e continuou fazendo as transferências após ameaças. No total, a marchand dispensou R$ 9.088.900 (nove milhões e oitenta e oito mil e novecentos reais) em dinheiro — fora os bens subtraídos da residência por sugestão das falsas videntes, que diziam que joias e obras de arte estavam amaldiçoadas. Ao todo, foram 16 pinturas foram levadas para ser "limpas".

Compra e venda

Ricardo Camargo, dono de uma galeria que leva seu nome em São Paulo, foi procurado por Sabine com cinco dessas pinturas subtraídas. Tempos mais tarde, Geneviève conseguiu reaver pessoalmente três delas: "O Menino", de Alberto Guignard (R$ 2 milhões); "Mascaradas", de Di Cavalcanti (R$ 1,5 milhão); e "O Sono", de Tarsila do Amaral — cujo valor deve ser o mais alto entre os quadros perdidos na farsa, embora possivelmente não valha R$ 300 milhões.

Outros dois quadros foram comprados em 2021 por Eduardo Costantini, fundador do Malba (Museu de Arte Latinoamericana de Buenos Aires), para a sua coleção privada. São elas "Elevador Social", de Rubens Gerchman, de 1966, e "Maquete para o Meu Espelho", de Antonio Dias, de 1964. Entre as joias estava um anel assinado por Roberto Burle Marx.

Com a apreensão da Sol Poente, Sabine e Rosa Stanesco foram presas no local onde estavam as obras. Sabine, que prefere chamar Rosa de Valéria, tinha um ar perdido quando chegou à delegacia.

Muriel, a outra filha do casal Boghici, é um mistério. Segundo fontes ouvidas pela reportagem do TAB, a irmã mais velha de Sabine mora em Paris, recebe uma mesada e só fala com a mãe por telefone. Ela teria legalmente direito a 25% da herança deixada pelo pai.

Todo o dinheiro do golpe era transferido para Gabriel Nicolau Traslaviña Hafliger, 21, filho de Rosa, também alvo da operação. Certa feita, com a faca no pescoço e já ciente da coação, Geneviève chegou a ouvir da falsa vidente: "Você vai morrer. Tudo vai ficar para mim e para Sabine. Seu fim está próximo".

Todas as ameaças estão descritas na notícia-crime. A idosa ficou presa em casa, impedida de sair e de receber amigos e parentes até 7 de abril de 2021, quando usou uma chave que mantinha escondida para fugir. A mãe só denunciou a filha em 26 de maio de 2022.

Geneviève, na sua primeira manifestação pública, sem mostrar o rosto, fez um breve comentário sobre os valores das obras recuperadas. "Só tenho a dizer que não é o que está sendo divulgado." Perguntada se valem mais ou menos, replicou: é menos e mais.

Essas talvez sejam as melhores pistas para entender — para além dos movimentos e evoluções artísticas — o olhar clínico de quem participou ativamente do mercado de arte no Brasil. O que uma obra dessas pode atingir num leilão, nunca será possível dizer.

Como funciona a perícia

Para validar a autoria de um quadro, são duas perícias diferentes. Primeiro é feita uma perícia de constatação no local. Em seguida, uma perícia de avaliação merceológica — essa ainda nem começou — para garantir que aquelas 11 telas são autênticas. Essa fase envolve uma série de estudos com seis técnicas multidisciplinares e peritos de várias formações, incluindo o acordo de colaboração científica do IFRJ (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio) com equipamentos que só existem no Rio.

"A metodologia que nós desenvolvemos não é usada por nenhuma polícia no Brasil. Nesse caso tem um diferencial: nós já temos várias telas da Tarsila analisadas como padrões. Esses exames serão utilizados pra confrontar os dados das telas que foram acauteladas agora."

Nilton disse que não sabe onde estão as telas encontradas no momento — garante apenas que estão em local seguro.

Sol Poente, por Tarsila

Arcos laranjas e amarelos se espalham por todo o céu de uma paisagem metafísica povoada por capivaras. "Falar com Deus era para mim esse quadro" — assim Tarsila do Amaral descreveu a obra que pertence ao período mais importante da produção da artista, que vai de 1923 a 1933, mesma fase em que pintou "Abaporu".

"Eu sentada, do terreiro, olhando esse tronco que tinha na fazenda, a cor do sol cobrindo tudo, e eu chorando, menina, pedindo perdão por meus pecados."

Além de pedir perdão, Sabine pode ter de cumprir 16 anos de prisão. "Ainda não é possível falar dos crimes a que elas serão indiciadas. Estelionato, extorsão e associação criminosa são os que justificam a prisão", explicou o advogado da idosa, Mauro Fernandes. Os advogados de Sabine foram procurados pela reportagem do TAB e mostraram-se solícitos, mas não responderam formalmente até o fechamento desta reportagem.