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Cílios postiços, peruca e protesto: como é a 'Gaymada', a queimada LGBT+

Aberto a "todas, todos e todes": desde 2015, o Campeonato Interdrag de Gaymada, intervenção urbana da companhia de teatro Toda Deseo, já reuniu mais de 50 mil participantes - Marcus Desimoni/UOL
Aberto a 'todas, todos e todes': desde 2015, o Campeonato Interdrag de Gaymada, intervenção urbana da companhia de teatro Toda Deseo, já reuniu mais de 50 mil participantes
Imagem: Marcus Desimoni/UOL

Nina Rocha

Colaboração para o TAB, de Belo Horizonte

07/09/2022 04h01

Pouco depois do meio-dia de domingo (4), o público começava a se aglomerar ao redor de uma delimitação recém-marcada de fita crepe no chão por Prima Ronny, persona do ator Ronny Stevens, na Praça da Estação, no centro de Belo Horizonte.

Minutos depois, a quadra improvisada tornou-se palco de uma modalidade em que é necessário somente uma bola e duas equipes sem um número definido de participantes. Uma modalidade que ora é vista como um jogo infantil, ora é tão levada a sério a ponto de ter torneios e competições: a queimada. Ou melhor, a "gaymada".

Parte da 7ª Virada Cultural de Belo Horizonte, que voltou a acontecer depois de dois anos sem eventos presenciais, o Campeonato Interdrag de Gaymada é uma intervenção urbana promovida pela companhia de teatro Toda Deseo. É aberto a "todas, todos e todes", como bem é anunciado pelo anfitrião e ator David Maurity, que do palco saudava o público da praça e comandava a trilha sonora da competição sob o título de DJ Prima.

Ao redor da "quadra" se reunia todo tipo de pessoa para a Gaymada: independentemente de gênero, idade, orientação sexual e CEP de residência fixa, a brincadeira é aberta para quem quiser, inclusive a população de rua que habita os arredores do hipercentro da cidade. Mesmo sendo uma proposta LGBTQIA+ até no nome, muitos que nem sequer se identificam com as causas do coletivo também querem participar — e, principalmente, se divertir.

Campeonato Interdrag de Gaymada, promovido pela Cia. Toda Deseo, na Virada Cultural de BH - Marcus Desimoni/UOL - Marcus Desimoni/UOL
Imagem: Marcus Desimoni/UOL

Corpos LGBTQIA+ à luz do dia

A companhia Toda Deseo surgiu a partir de um trabalho de conclusão de curso do ator, diretor e drag queen Rafael Barcellar, que sentia falta de iniciativas que tratassem sobre gênero, travestilidade e performances drag queens na cena teatral local. Diante da escassez, convocou amigos e criou a sua própria intervenção. O espetáculo "No Soy un Maricón" foi a primeira obra do coletivo, que hoje é composto por nove integrantes de Belo Horizonte e Contagem (MG).

Da primeira performance até os dias atuais, o coletivo já produziu sete trabalhos e um novo espetáculo, "Trilogia de Traumas", estreia esta semana no Teatro Espanca, na capital mineira.

Apesar da boa receptividade com as peças, a Gaymada é o "carro-chefe" do coletivo: a intervenção já levou o grupo para viajar para Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, e cidades históricas e interioranas mineiras como São João Del Rei e Ouro Preto.

Campeonato Interdrag de Gaymada, promovido pela Cia. Toda Deseo, na Virada Cultural de BH - Marcus Desimoni/UOL - Marcus Desimoni/UOL
Imagem: Marcus Desimoni/UOL

A praça Floriano Peixoto, na zona leste da capital, foi o cenário da primeira Gaymada, em 2015. A ideia veio da inquietação do coletivo em levar o público LGBTQIA+ para ocupar os espaços públicos à luz do dia. "Chega um momento em que a gente cansa e não quer mais só o espaço da noite nem pra gente nem pras pessoas com as quais a gente convive, principalmente para as travestis e as pessoas trans", comenta o ator e dramaturgo David Maurity.

Antes da Gaymada, os integrantes fizeram o Chá das Primas, convocado pelo Facebook. "Fizemos um convite para um encontro em uma praça pública para pensar e discutir sobre corpos LGBTQIA+ e sobre nossas histórias. Nesse encontro, acabamos falando sobre a escola, que é o talvez o primeiro momento de socialização e de encontro com o preconceito", relembra Barcellar.

Ali surgiu a lembrança da queimada, jogo que dentro da escola é voltado principalmente para "as mulheres e as bichinhas", diz. Surgiu também o desejo de retomar o jogo. Desde então, a Gaymada já reuniu cerca de 50 mil participantes que capricham sempre na blusa cropped, na maquiagem e nos meiões coloridos.

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Imagem: Marcus Desimoni/UOL

Regras do jogo

Desde que a primeira bola foi arremessada na Gaymada, 101 edições da intervenção artística e social foram realizadas em vários espaços da cidade. Algumas com o apoio de projetos de lei de incentivo ou instituições parceiras, mas muitos eventos também contam com a produção "na tora", como brinca o coletivo.

Com uma estrutura robusta ou com uma caixa de som ligada na bateria de um carro, a animação é a mesma. Do centro à Vila Dias, na periferia da zona leste belo-horizontina, o objetivo é sempre levantar a pauta do respeito — tanto entre os adversários quanto entre quem está assistindo à partida.

"Toda brincadeira diz muito da ordem social que a gente vive. A Gaymada só acontece porque as pessoas entendem que elas precisam respeitar uns aos outros, independente da disputa", explica Maurity.

Campeonato Interdrag de Gaymada, promovido pela Cia. Toda Deseo, na Virada Cultural de BH - Marcus Desimoni/UOL - Marcus Desimoni/UOL
Imagem: Marcus Desimoni/UOL

O clima nos jogos as vezes esquentam e é preciso criar regras repentinas para não prejudicar o campeonato, como proibir um jogador que está atirando a bola com muita força de usar a mão dominante, tudo mediado pela juíza performada pelo ator e dramaturgo Thalles Brenner.

As demais regras são as clássicas: a equipe que acertar todos os adversários primeiro vence e, no caso da Gaymada, a disputa fica bem mais animada com a trilha sonora de Britney Spears e outras divas do pop.

A simplicidade do jogo contrasta com o esforço que a Toda Deseo empenha em tornar a partida um momento de reflexão política e social. A companhia não economiza nas intervenções que trazem números sobre a falta de investimentos na cultura, o número de assassinatos de pessoas trans e dados sobre a fome no país.

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Imagem: Marcus Desimoni/UOL

Assim como nas cerimônias olímpicas oficiais, as bandeiras também são hasteadas, mas a bandeira verde e amarela dá lugar aos símbolos da comunidade LGBTQIA+, intersex e transfeminista, carregada pela atriz e drag queen do coletivo Nickary Aycker, enquanto o Hino Nacional é substituído por "Não Foi Cabral", da funkeira carioca MC Carol.

Antes e mesmo durante as partidas, os integrantes do coletivo — com seus uniformes esportivos, curtos e coloridos — brincam com o público e convidam a todos para alongamentos e para participar das coreografias criadas para a ocasião com muito vogue e espacates.

Nos intervalos, como no NFL, uma apresentação de Superbowl acontece com direito a papel laminado colorido saindo de um canhão e fumaça colorida. Para o pessoal da Gaymada, protesto, diversão, perucas e cílios postiços caminham juntos.

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Imagem: Marcus Desimoni/UOL