Cílios postiços, peruca e protesto: como é a 'Gaymada', a queimada LGBT+
Pouco depois do meio-dia de domingo (4), o público começava a se aglomerar ao redor de uma delimitação recém-marcada de fita crepe no chão por Prima Ronny, persona do ator Ronny Stevens, na Praça da Estação, no centro de Belo Horizonte.
Minutos depois, a quadra improvisada tornou-se palco de uma modalidade em que é necessário somente uma bola e duas equipes sem um número definido de participantes. Uma modalidade que ora é vista como um jogo infantil, ora é tão levada a sério a ponto de ter torneios e competições: a queimada. Ou melhor, a "gaymada".
Parte da 7ª Virada Cultural de Belo Horizonte, que voltou a acontecer depois de dois anos sem eventos presenciais, o Campeonato Interdrag de Gaymada é uma intervenção urbana promovida pela companhia de teatro Toda Deseo. É aberto a "todas, todos e todes", como bem é anunciado pelo anfitrião e ator David Maurity, que do palco saudava o público da praça e comandava a trilha sonora da competição sob o título de DJ Prima.
Ao redor da "quadra" se reunia todo tipo de pessoa para a Gaymada: independentemente de gênero, idade, orientação sexual e CEP de residência fixa, a brincadeira é aberta para quem quiser, inclusive a população de rua que habita os arredores do hipercentro da cidade. Mesmo sendo uma proposta LGBTQIA+ até no nome, muitos que nem sequer se identificam com as causas do coletivo também querem participar — e, principalmente, se divertir.
Corpos LGBTQIA+ à luz do dia
A companhia Toda Deseo surgiu a partir de um trabalho de conclusão de curso do ator, diretor e drag queen Rafael Barcellar, que sentia falta de iniciativas que tratassem sobre gênero, travestilidade e performances drag queens na cena teatral local. Diante da escassez, convocou amigos e criou a sua própria intervenção. O espetáculo "No Soy un Maricón" foi a primeira obra do coletivo, que hoje é composto por nove integrantes de Belo Horizonte e Contagem (MG).
Da primeira performance até os dias atuais, o coletivo já produziu sete trabalhos e um novo espetáculo, "Trilogia de Traumas", estreia esta semana no Teatro Espanca, na capital mineira.
Apesar da boa receptividade com as peças, a Gaymada é o "carro-chefe" do coletivo: a intervenção já levou o grupo para viajar para Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, e cidades históricas e interioranas mineiras como São João Del Rei e Ouro Preto.
A praça Floriano Peixoto, na zona leste da capital, foi o cenário da primeira Gaymada, em 2015. A ideia veio da inquietação do coletivo em levar o público LGBTQIA+ para ocupar os espaços públicos à luz do dia. "Chega um momento em que a gente cansa e não quer mais só o espaço da noite nem pra gente nem pras pessoas com as quais a gente convive, principalmente para as travestis e as pessoas trans", comenta o ator e dramaturgo David Maurity.
Antes da Gaymada, os integrantes fizeram o Chá das Primas, convocado pelo Facebook. "Fizemos um convite para um encontro em uma praça pública para pensar e discutir sobre corpos LGBTQIA+ e sobre nossas histórias. Nesse encontro, acabamos falando sobre a escola, que é o talvez o primeiro momento de socialização e de encontro com o preconceito", relembra Barcellar.
Ali surgiu a lembrança da queimada, jogo que dentro da escola é voltado principalmente para "as mulheres e as bichinhas", diz. Surgiu também o desejo de retomar o jogo. Desde então, a Gaymada já reuniu cerca de 50 mil participantes que capricham sempre na blusa cropped, na maquiagem e nos meiões coloridos.
Regras do jogo
Desde que a primeira bola foi arremessada na Gaymada, 101 edições da intervenção artística e social foram realizadas em vários espaços da cidade. Algumas com o apoio de projetos de lei de incentivo ou instituições parceiras, mas muitos eventos também contam com a produção "na tora", como brinca o coletivo.
Com uma estrutura robusta ou com uma caixa de som ligada na bateria de um carro, a animação é a mesma. Do centro à Vila Dias, na periferia da zona leste belo-horizontina, o objetivo é sempre levantar a pauta do respeito — tanto entre os adversários quanto entre quem está assistindo à partida.
"Toda brincadeira diz muito da ordem social que a gente vive. A Gaymada só acontece porque as pessoas entendem que elas precisam respeitar uns aos outros, independente da disputa", explica Maurity.
O clima nos jogos as vezes esquentam e é preciso criar regras repentinas para não prejudicar o campeonato, como proibir um jogador que está atirando a bola com muita força de usar a mão dominante, tudo mediado pela juíza performada pelo ator e dramaturgo Thalles Brenner.
As demais regras são as clássicas: a equipe que acertar todos os adversários primeiro vence e, no caso da Gaymada, a disputa fica bem mais animada com a trilha sonora de Britney Spears e outras divas do pop.
A simplicidade do jogo contrasta com o esforço que a Toda Deseo empenha em tornar a partida um momento de reflexão política e social. A companhia não economiza nas intervenções que trazem números sobre a falta de investimentos na cultura, o número de assassinatos de pessoas trans e dados sobre a fome no país.
Assim como nas cerimônias olímpicas oficiais, as bandeiras também são hasteadas, mas a bandeira verde e amarela dá lugar aos símbolos da comunidade LGBTQIA+, intersex e transfeminista, carregada pela atriz e drag queen do coletivo Nickary Aycker, enquanto o Hino Nacional é substituído por "Não Foi Cabral", da funkeira carioca MC Carol.
Antes e mesmo durante as partidas, os integrantes do coletivo — com seus uniformes esportivos, curtos e coloridos — brincam com o público e convidam a todos para alongamentos e para participar das coreografias criadas para a ocasião com muito vogue e espacates.
Nos intervalos, como no NFL, uma apresentação de Superbowl acontece com direito a papel laminado colorido saindo de um canhão e fumaça colorida. Para o pessoal da Gaymada, protesto, diversão, perucas e cílios postiços caminham juntos.
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