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Na Assembleia de Deus, intolerância está em 'livramentos' e nas entrelinhas

Carol Malavolta/UOL
Imagem: Carol Malavolta/UOL

Luciana Bugni

Colaboração para o TAB, de São Paulo

29/09/2022 04h01

Dava para ouvir um cover de "Total Eclipse of The Heart" nas ruas próximas à Assembleia de Deus do Jardim Umarizal, na zona sul de São Paulo, na noite de domingo. A 4 km da igreja, a banda inglesa Iron Maiden fazia um show para dezenas de milhares de pessoas no Estádio do Morumbi. A banda tem entre seus principais hits "The Number of the Beast", que leva roqueiros cabeludos de várias gerações a chacoalhar cabeças enquanto entoam o refrão "six, six, six", o suposto número da Besta.

Na igreja do Umarizal, entretanto, outro conjunto de bateria, baixo e guitarra animava os 30 presentes, mas durante as quase duas horas de culto, nenhum deles mencionou o diabo. Os louvores citavam o Senhor, as bênçãos que a fé pode alcançar e o poder de Jesus para operar milagres na vida dos fiéis.

Sobre Satanás e outras feitiçarias

O discurso foi diferente na quinta-feira anterior, na Assembleia de Deus Ministério Madureira de Piraporinha, região periférica de Diadema (SP). No culto vespertino, que começava às 14h30 e também durou duas horas, pregadora e rebanho falaram com frequência de Satanás.

Cheguei ao local quando o espaço ainda estava vazio. Uma criança de cerca de dois anos brincava de tocar a bateria que ficava no canto do palco, enquanto outra, um pouco mais velha, chupava um geladinho verde-neon. Ao notar minha presença, o casal de pais das crianças me saudou dizendo "A paz". Sem me apresentar como jornalista, perguntei se poderia assistir ao culto e eles indicaram as cadeiras brancas de plástico.

Na primeira meia hora, havia apenas outra pessoa além de mim na audiência. Com o microfone na mão, a pastora parecia bem diferente daquela mulher gentil com voz tímida que me recebeu. Estourava as caixas de som do local. Quando um dos microfones falhava, ela pegava outro — havia três disponíveis no púlpito. Nem seria necessário. Era possível ouvir os gritos da calçada do outro lado da rua.

Ajoelhada de costas para o altar, a outra pessoa que assistia à cerimônia religiosa também orava, mas seus clamores eram outros. Na Assembleia de Deus, cada um ora à sua maneira, entremeando os pedidos com expressões como "Oh, glória", "aleluia", "obrigada, meu Deus" no meio das frases.

Presença feminina e 'oportunidade'

O culto no meio da semana reúne basicamente mulheres. Pouco antes das 15h, 13 estavam no espaço, todas vestidas com saias abaixo dos joelhos — eu era a única mulher de calça no local. Algumas delas tinham vindo com os filhos e umas cuidavam das crianças das outras, com a naturalidade de quem se conhece há muito tempo. Dois homens ocupavam a última fileira de assentos, em silêncio. O marido da pastora ficou ajoelhado na porta da igreja durante grande parte da cerimônia.

Não se falou de política em nenhum dos dois cultos. Os discursos foram mais voltados à força de vontade individual dos fiéis — atrelados sempre à fé que pode aceitar "a vontade do Senhor". Naquele templo, entretanto, os pedidos da igreja distribuíam intolerância. A pastora pedia que Jesus libertasse as pessoas "da doença do homossexualismo". Sempre que passava ou recebia o microfone de alguém, ela esfregava uma flanela com álcool no aparelho.

Vários fiéis que deram seu testemunho leram passagens da Bíblia que citavam as tentações em que o diabo os coloca — histórias de Jesus passando por tais provações são usadas como exemplos. Em vários momentos, relatos pessoais de quem estava "entregue às drogas ou ao álcool" são usados como prova de que "a fé e a pregação salvam".

Por outro lado, é notável que mulheres que parecem tímidas, ao chegar ali, ficam poderosas quando têm "a oportunidade" — expressão usada pelos pastores quando vão dividir o tempo de pregação com alguém da igreja que queira ler um trecho da Bíblia ou contar uma história pessoal. "Sou muito quieta lá fora, não digo nada, mas quando chego aqui o Senhor me dá coragem para falar. Eu não me reconheço", disse uma mulher de outro ministério, que vinha frequentando aquele culto havia sete sessões, conforme "prometeu a Deus".

Além de chamar "homossexualismo" de doença, o culto não deixou de atacar religiões de matriz africana. "Feitiçaria", "macumba", "macumbeiros" e "magia negra" foram expressões usadas com frequência nas orações.

O público presente gritava para que Jesus livrasse aquelas pessoas e suas famílias de ter relações com qualquer um que acreditasse nessas manifestações religiosas. Os testemunhos falavam de uma casa que pegou fogo, falta de emprego e o "alcoolismo do marido". Em todos os relatos naquela tarde, o final era feliz, após a entrada de Jesus e da igreja em suas vidas.

A recepção da visitante

Doar dinheiro não era o tema central da pregação, mas estava implícito. "Quem dá recebe em dobro"; "se não der hoje, não vá pedir ao Senhor quando estiver precisando", diziam os pastores.

Nas duas situações, fui abordada por mulheres com uma prancheta nas mãos; elas anotaram meu nome e perguntaram se eu frequentava "algum ministério" — ou seja, se eu frequentava alguma igreja da denominação Assembleia de Deus. Diante da minha negativa, ambas disseram "bem-vinda" e "amém".

No Umarizal, o pastor falou meu nome no altar e convidou os presentes a cantarem um louvor de boas-vindas. A bateria, o baixo e a guitarra voltaram a contagiar o público, que batia palmas. O pastor ainda convidou alguém a "dar uma abraço na visitante, daqueles de quebrar a costela". Uma mulher me abraçou gentilmente e disse que era muito bom que eu estivesse ali. Acolhedor.

No fim do culto, duas mulheres me perguntaram onde eu morava e me convidaram para voltar com a família. Elas se ofereceram para fazer uma oração por mim e eu aceitei: ambas ficaram a uns 50 cm de distância, com as mãos para cima. Uma delas pedia que o Senhor me protegesse. Outra disse "amém" por cerca de um minuto. Quando acabou, ambas sorriram e agradeceram minha presença.

A abordagem foi um pouco diferente em Piraporinha. Uma missionária acabava de pregar para uma mulher que estava atrás de mim, falando sobre seu câncer no fígado. Ela dizia que o Senhor a estava livrando de algo muito pior e a blindaria de todas as doenças. O discurso inflamado demorou cerca de dez minutos, enquanto a mulher que supostamente recebia as bênçãos chorava e soluçava.

Permaneci em silêncio pelo culto todo. Quando faltavam cinco minutos para o fim, a pastora e a missionária desceram do altar e se posicionaram uma de cada lado da minha cadeira. Pediram que eu ficasse de pé e, aos berros, diziam que eu não sabia por que tinha entrado ali, mas elas iriam tirar a feitiçaria do meu corpo.

Uma delas colocou a mão sobre meu peito e dava pulsos fortes, que me chacoalhavam. A outra pedia livramento da magia negra e da macumba, que o diabo sairia de mim e eu seguiria limpa. "Blinda essa mulher", falaram por cerca de cinco minutos, enquanto me tocavam.

Não havia autorizado o que estava acontecendo, mas isso não parecia ser uma questão para elas. Esperei o ritual terminar sem dizer nada. Ao final, a pastora voltou a falar com a mesma voz gentil que me recebeu, dizendo que agora tudo iria melhorar. Na porta, o homem que passou o culto ajoelhado me pediu para voltar no fim de semana.

E a eleição?

A reportagem abordou diversos frequentadores de igrejas evangélicas para perguntar se as eleições são mencionadas durante os cultos. Todos responderam que o assunto não é abordado nessas ocasiões — alguns enfatizaram que isso não é coisa de igreja.

Nos grupos de WhatsApp oficiais das instituições, também não se fala sobre o tema — a comunicação é usada apenas para passar informações de horário de culto ou louvores. No entanto, há grupos menores, não oficiais, em que as orientações políticas fluem com naturalidade. A reportagem não foi aceita em nenhum desses grupos.