Ativistas pró-maconha fazem concurso de bongs e piteiras no interior de SP
Num sítio nos arredores de Campinas, quatro jovens analisam, concentrados, artefatos coloridos de vidro. Observam a cor e a complexidade das peças — o design lembra uma escultura (nos moldes de um cacto ou uma flor, por exemplo), mas, na verdade, são acessórios para redução de danos durante o consumo de maconha, como pipes, piteiras e bongs.
Eles então fumam para conferir se os itens cumprem o papel. Ossos do ofício: no sábado (8), eles foram os jurados do primeiro concurso de "sopro de vidro" do Brasil, o Glass Heads Festival.
Na varanda do sítio, nove competidores moldaram artefatos de vidro com maçaricos. Usavam óculos escuros para proteger os olhos durante as quatro horas de trabalho com fogo, a fim de transformar o tubo de borossilicato transparente: primeiro, cortaram o vidro nas dimensões certas para produzir a piteira pretendida; depois, utilizaram o maçarico para derreter o material, acoplaram um tubo menor e assopraram, girando o tubo maior para modelar a peça. Durante o processo, a peça foi e voltou de um forno especial, que serve para controlar a temperatura e fazer ajustes.
"O fogo não aceita desaforo, se você não tem foco, você se queima", diz Pink Wxxd, que no festival exibia suas primeiras peças no estande de sua marca, a Pink Weed Shop. "Aprendo a cada dia a lidar melhor com minhas emoções, porque se você exagera, estraga a peça, que é muito sensível."
'Tempo de vidro'
Ativistas pró-cannabis consideram que bongs e similares reduzem danos por diminuir a temperatura da fumaça antes de sua chegada aos pulmões. "As piteiras também devem ser utilizadas por cada indivíduo para evitar o compartilhamento de saliva no baseado coletivo dividido em rodinhas, o que evita transmissão de doenças", diz a psicóloga Maria Angélica Comis, especialista em medicina comportamental e coordenadora de advocacy do Centro de Convivência É de Lei. As peças são antigas — há registros milenares de cachimbos na Etiópia e na China, por exemplo.
Mas os bongs como conhecemos hoje foram inventados por Bob Snodgrass, um artista de vidro, no movimento hippie, na década de 1970. Na época, ele rodou os Estados Unidos, com a família, vendendo os primeiros bongs de borosilicato que mudavam de cor conforme os resíduos se acumulavam no recipiente. Snodgrass abriu a primeira escola da técnica, a Eugene Glass School, em 1999.
No Brasil, o Hippie Bong surgiu no Jardim Alvorada, zona oeste de São Paulo, como o primeiro ateliê e escola para sopradores de vidro, em 2015. Os sócios da casa — Arthur Trevizam, 24, Lucas Mendonça, 24, Bruno Carana, 29, e Nick Marinho, 40 — formaram o júri do festival. Entre os competidores estavam ex-alunos deles. "Como temos mais tempo de vidro, conseguimos ver como a galera evoluiu, é muito legal", conta Marinho.
Na disputa, a artista Júlia Tiemi, 21, era a única mulher. "Não tenho grana para materiais importados, mas sopro dá para fazer com tudo o que tenha fogo, então vou na raça", diz ela, que usa maçarico de solda nacional de R$ 100, forno emprestado e equipamentos improvisados no ateliê de sua marca, a Oroboro Glass, em São Paulo. Um bom maçarico pode custar cerca de R$ 5.000 e o forno, por volta de R$ 3.000.
No fim, o estudante de design Tarcio Vale, 21, conhecido como Tarcio Glass, levou o prêmio de R$ 750 do dia: ele fez os melhores bong, pingente e piteira, segundo a avaliação dos jurados, que destacaram técnicas como "wig-wag reverse", "fummiccelo", "teticcelo","implosion" e "spinning", que são complexas de executar.
Bong de R$ 10 mil
O artesão Victor Suniga, 29, foi quem idealizou o concurso. Estava triste no sábado, pois teve uma briga com os pais por causa do festival. "Eles não compreendem que o sopro é um trabalho lícito", diz. O mercado de acessórios, acrescenta, é promissor: atualmente, há peças que valem até R$ 10 mil.
Suniga também é marceneiro e, junto do amigo Thiago Gambeiro, 29, faz mostruários para venda de piteiras, além de móveis personalizados para lojas de tabacaria utilizando madeira sustentável. Fez o festival para tentar trazer ao Brasil um pouco da tendência que se consolidou nos Estados Unidos, onde há um mercado bastante aquecido de pipes e bongs — lá, também há acessórios expostos como peças de museu, por exemplo, no Liberty National Museum, na Filadélfia.
Entretanto, esse mundo de bongs milionários está longe da realidade dos pioneiros do vidro do Brasil. O custo dos equipamentos importados e insumos é alto e dificulta a popularização da técnica.
Outro impeditivo, segundo o organizador e diversos participantes do festival, é o preconceito diante dos itens associados à maconha, cujo uso só é permitido para fins medicinais no país. Se o uso e o cultivo fossem legalizados, o mercado medicinal, industrial e recreativo da erva poderia movimentar R$ 26 bilhões no país, indica a Kaya Mind, consultoria de inteligência de dados de cannabis.
"Minha família é católica cristã tradicional, meu irmão não quer nem ouvir quando falo do meu trabalho. Mas boto fé que estou no caminho certo", considera Levi Samuel Pereira, 22, o Leviglass.
Já Eric Sato, 22, teve ajuda da mãe e da avó para abrir a Sato Glass. Ele morou ao lado de um estúdio que fazia recipientes de vidro para laboratório, em Poá, na Grande São Paulo. Um dia, o vizinho foi sondar sua mãe sobre uma oportunidade de trabalhar com vidro e ele, à época desempregado, topou. A partir daí, migrou para o vidro funcional canábico.
"Não fumo, não sabia o que eram as peças que fazia, como piteiras e pipes. Então comecei a pesquisar as marcas que estavam nos decalques e comecei a entender do que se tratava."
Sato já fez 120 minibongs por dia, trabalhando das 7h às 17h. "Ninguém acorda e fala 'ai, quero soprar vidro'. Você se queima e se corta, trabalha sem camiseta, porque não dá para ficar no ar-condicionado, pode estragar a peça. Eu sempre aconselho: além de procurar um curso, veja como é o trabalho de perto."
Suniga, no fim do dia, ficou feliz com o festival e foi dançar na pista embalada por um DJ. A ideia agora é fazer uma edição maior, em São Paulo.
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