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Evangélicas que viraram ativistas da maconha medicinal: 'erva abençoada'

"Não busquei a maconha para recreação ou para destruir o corpo de ninguém. Fui ajudar meu filho, que é a benção do Senhor na minha vida", diz Ana Marta - Zô Guimarães/UOL
'Não busquei a maconha para recreação ou para destruir o corpo de ninguém. Fui ajudar meu filho, que é a benção do Senhor na minha vida', diz Ana Marta
Imagem: Zô Guimarães/UOL

Danila Moura

Colaboração para o TAB, de São Paulo

16/07/2022 04h01

Ana Marta Barbosa Nery, 49, cresceu ouvindo que "maconha é coisa do diabo e de gente que não presta". Integrante da Assembleia de Deus, onde irmãs não cortam cabelo, não usam brinco e uma mulher pastora não senta no púlpito com os pastores, ela já ouviu histórias de amigas evangélicas que ficaram traumatizadas com a presença da erva na família.

"Um dia, a polícia invadiu a casa de uma mãe evangélica na comunidade. Um dos filhos dela tinha enterrado maconha no quintal. Ela preferiu dizer que a droga era dela para poupar o filho, ficou dois anos presa no lugar dele", conta. "Como digo para essa mulher que maconha faz bem?", indaga ela, que atualmente está tratando o filho autista, Matheus, 8, com óleo canábico.

Ana Marta passava noites acordada junto ao garoto, entre tentativas de tratamentos que não deram certo e diversas idas ao hospital no Rio de Janeiro. Hoje, Matheus começou a se alimentar sozinho, ir ao banheiro, interagir. Também aprendeu a pegar a escada e procurar doces pelos armários da cozinha — "agora, ele entende até quando faço cara de brava e para com a bagunça", brinca.

"Maconha é remédio", diz a evangélica que se tornou uma ativista do uso medicinal da cannabis, ainda considerada uma "erva do demônio" por muitos religiosos, inclusive onde as discussões da legalização já avançaram mais: nos Estados Unidos, por exemplo, 76% dos pastores ouvidos em um estudo da Lifeway Research de 2020 disseram ser contra a legalização da maconha.

No Brasil, políticos evangélicos estão os principais opositores das discussões acerca da erva, por exemplo, no PL 399 que trata do uso medicinal da maconha — a fim de proporcionar "maior acesso à ferramenta terapêutica e ao tratamento, regulando associações de pacientes, pesquisas e farmácias de manipulação", define a advogada criminalista Marcela Sanches Goldschmidt, desde 2014 focada na Lei de Drogas.

Na periferia do Rio, onde Ana Marta já viu a violência que encarcera a população negra e é forte a atuação de igrejas evangélicas, não foi fácil passar a pregar a palavra verde por onde passa.

Marta é evangélica e trata o filho Matheus com oleo de canabidiol - Zô Guimarães/UOL - Zô Guimarães/UOL
'Maconha é remédio', diz Ana Marta, que se tornou uma ativista do uso medicinal da cannabis
Imagem: Zô Guimarães/UOL

Um tal 'curso de CBD'

Também foi assim para a paulista Andréia Rodrigues, 45. Quando iniciou o tratamento das filhas, ela levantou o vidro do óleo para o céu, orou e pediu para que Deus a abençoasse. Em 15 minutos, Isabela e Isadora estavam dormindo tranquilamente, algo inimaginável na rotina da família cristã. Atravessar madrugadas no hospital contendo as crises de epilepsia das gêmeas era a rotina padrão. "Elas tiveram paralisia cerebral por erro médico. A partir do óleo, a vida delas começou de verdade."

Andréia não deu ouvidos na primeira vez que a filha mais velha citou os benefícios da cannabis — conta que se arrepende de ter sido tão "cabeça dura" naquele momento.

Quatro anos depois, uma vizinha tentou introduzir a cannabis de outro jeito: comentou a existência de um tal "curso de CBD", na tentativa de dissipar possíveis preconceitos. Ao descobrir que se tratava de maconha, Andréia deu um piti. A amiga insistiu a ponto de buscá-la em casa, em Mogi das Cruzes, no interior de São Paulo, e levá-la à paróquia de Ermelino Matarazzo, na zona leste da capital paulista, onde é ministrado o Curso de Cannabis Medicinal da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Andréia foi. Assim que se viu ao lado de "maconheiros", um padre junto, deu ruim. Ela se sentiu tão mal que precisou se segurar nas paredes para manter o equilíbrio. Mas lembrou-se de um pedido especial que fizera a Deus após orar com o marido dentro do carro, em mais uma madrugada sem dormir à espera no estacionamento de um pronto-socorro.

"Pensamos: e agora? Foram cinco anos de suplício, as meninas com até cem crises diárias. Nada resolvia", relata. "Fizemos um firmamento e pedi que o Senhor desse discernimento para encontrar uma solução para tamanho sofrimento." Na primeira vez na paróquia da zona leste, sentiu que a prece estava sendo atendida.

Andréia fez uma série de cursos especializados e se formou como terapeuta canábica. Hoje, fala a respeito dos benefícios da cannabis medicinal para outras mães. Também "converteu" o pai, militar aposentado e membro conservador da Igreja Congregação do Brasil, ao óleo canábico. Com Parkinson, ele não tinha mais autonomia, estava mal todos os dias. Persistente, Andreia mostrou a transformação das filhas. Com o tempo, a cannabis deixou de ser um palavrão na casa dele. A única bronca que o ex-militar dá agora é quando "está terminando o óleozinho da alegria", que a filha ativista cultiva em casa.

'Semente do Amanhã'

Andréia é secretária da Semente do Amanhã, a primeira associação de pacientes canábicos fundada por evangélicas. Ao lado dela está a paulista Eunice Silva, 62. Elas também participaram da última Marcha da Maconha, no dia 12 de junho, em São Paulo.

Eunice e Ana Marta se conheceram num grupo de WhatsApp de mães. Certa vez, a paulista convidou a amiga carioca para conhecer sua neta, Estela, 18, cujas convulsões foram controladas com o óleo canábico. Antes, Estela só dormia com as pernas entrelaçadas de Eunice, uma tentativa de impedir que a menina se agredisse durante a noite.

Marta é evangélica e trata o filho Matheus com oleo de canabidiol - Zô Guimarães/UOL - Zô Guimarães/UOL
Mães estão organizando a primeira associação de pacientes canábicos fundada por evangélicas
Imagem: Zô Guimarães/UOL

"Minha neta tomava um calmante que a transformou num zumbi. Ficava atônita. O remédio acabou e ela começou a ter crises horríveis", diz. "Descobri a cannabis lá na paróquia do Padre Ticão [a Ermelino Matarazzo, na zona leste de São Paulo] e parei com todos os medicamentos. Ela virou uma nova criança."

Continuar frequentando os cultos é difícil para elas, que consideram a erva "abençoada", mas sabem que nem todo mundo vê a alternativa com bons olhos. Assim que iniciou o curso na paróquia católica, Eunice se afastou da Congregação Cristã do Brasil, diante de comentários sobre as idas da irmã à "igreja dos maconheiros". Andreia também é ex-Congregação Cristã e agora frequenta Bola de Neve e Leão de Davi.

Ana Marta considera que "um evangélico de verdade preza pelo amor". A primeira atitude dela foi relatar a novidade da cannabis ao pastor da Assembleia de Deus da qual participa — e ele não a censurou.

"Não busquei o uso da maconha para recreação ou para destruir o corpo de ninguém. Fui ajudar meu filho, que é a benção do Senhor na minha vida."