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Na cidade de maior IDH do Brasil, chefe e empregado não brigam por política

O bolsonarista Simon Calcin Neto, proprietário do restaurante Sete Mares: "Graças a Deus consegui montar meu negócio, prosperar e empregar mais gente" - Rogério Fernandes/UOL
O bolsonarista Simon Calcin Neto, proprietário do restaurante Sete Mares: 'Graças a Deus consegui montar meu negócio, prosperar e empregar mais gente' Imagem: Rogério Fernandes/UOL

Juliana Faddul

Colaboração para o TAB, de São Caetano do Sul (SP)

25/10/2022 04h01

Por três vezes consecutivas, o município paulista de São Caetano do Sul ficou em primeiro lugar no ranking da PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), que mede o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) em renda, educação e saúde das cidades brasileiras.

Embora o relatório de 2022 ainda não tenha sido divulgado por causa do atraso do Censo, o município do ABCD paulista (complexo de municípios na Grande São Paulo composto por Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul e Diadema) abriga uma interessante contraposição política: apesar de viver, na prática, com as bandeiras de esquerda (forte investimento em cultura e educação), o voto de verniz "conservador nos costumes" e "liberal na economia" predomina na cidade.

No primeiro turno da eleição presidencial, 50% dos eleitores (57.617 votos) escolheram Jair Bolsonaro (PL), contra 33% (38.172 votos) de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Na disputa estadual, Tarcísio de Freitas (Republicanos) recebeu o apoio de 44,27% dos eleitores (47.784 votos), seguido por Fernando Haddad (PT), com 28,43% (30.683 votos).

Um conservadorismo que se reflete também na esfera municipal: políticos costumam exercer dois, três e até quatro mandatos na prefeitura, em geral de partidos de direita ou centro-direita. A agremiação que mais administrou São Caetano foi o PTB, seguida pelo PSDB: o atual prefeito, José Auricchio Júnior, no terceiro mandato, é filiado ao PSDB, mas foi eleito na primeira vez pelo PTB.

Como votou São Caetano, maior IDH do Brasil - Rogério Fernandes/UOL - Rogério Fernandes/UOL
O economista Edgar Nóbrega, eleitor de Lula: 'Sou católico, sou romeiro e fã do padre Julio Lancellotti'
Imagem: Rogério Fernandes/UOL

Direita ou esquerda, se Deus quiser

"Está na Bíblia que Deus fez o homem e a mulher para ficarem juntos e montarem a família, que é nosso bem mais importante", diz o empresário Simon Calcin Neto, reconhecido apoiador de Jair Bolsonaro na cidade que percorre de carro adesivado e distribuindo camisetas de seu candidato. "Graças a Deus consegui montar meu negócio, prosperar e empregar mais gente."

"Deus não castiga ninguém, Deus ama as pessoas. Eu sou católico, sou romeiro e fã do padre Julio Lancellotti", diz o economista Edgar Nóbrega, também conhecido como apoiador de Luiz Inácio Lula da Silva ali.

"Não sei de onde saiu esse conservadorismo todo de São Caetano", diz Paula Fiorotti, jornalista e pesquisadora da Fundação Pró-Memória de São Caetano do Sul. "Meu palpite é de que por muito tempo aqui foi um subúrbio. Embora esteja perto da capital do estado, por conta das fábricas e das indústrias, as pessoas viviam em pequenas vilas e praticamente não saíam de lá."

A fé cristã é marca da cidade com população de 162.763 pessoas (estimada em 2021). No Censo de 2010, 98.979 sul-caetanenses se diziam católicos, enquanto 25.700 se declararam evangélicos.

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'Concordo com as cotas nas universidades', diz o presidente da Associação Comercial, Alessandro Leone
Imagem: Rogério Fernandes/UOL

'Piccola Itália'

As raízes italianas são motivo de orgulho para o cidadão de São Caetano. A exaltação é tamanha que o aniversário da cidade é comemorado em 28 de julho, data que marca a chegada da primeira leva de imigrantes italianos a São Paulo, em 1877. No entanto, a emancipação político-administrativa da cidade — que até 1948 fazia parte de Santo André — ocorreu no dia 24 de outubro.

"Um dos nossos principais trabalhos aqui na fundação é fazer as pessoas entenderem que antes da chegada dos italianos havia pessoas aqui: negros e indígenas que foram igualmente importantes para a construção da cidade. E quem diz isso é uma Fiorotti", brinca a pesquisadora.

"São Caetano é uma cidade que não tem medo de trabalho. Não teve medo quando seus antepassados italianos vieram para cá, não teve medo quando tentaram fechar o comércio na pandemia, nem de um futuro governo Lula", diz Alessandro Leone, presidente da Associação de Comerciantes de São Caetano do Sul, que possui cerca de mil empresas cadastradas.

Ao todo, são mais de 33 mil CNPJs cadastrados na prefeitura, de microempreendedores individuais até empresas de grande porte. "Só tem uma forma de manter o país em pé: ter uma classe média forte. E para isso é preciso manter o empresariado fortalecido", diagnostica Leone.

"Por exemplo, o Uber. Quantas vidas o Uber facilitou. Ele deu a oportunidade de milhões de pessoas trabalharem e diminuiu o custo para você pagar a corrida. Num esquema CLT, isso seria impossível", sustenta o empresário, que diz já ter sido adepto de "ideais comunistas, mas a vida ensinou que isso não leva a nada".

"Existem alguns temas da esquerda com que eu concordo até hoje, como a questão das cotas nas universidades. Mas, de forma geral, me considero uma pessoa de direita", enfatiza o presidente da associação.

"Para ser sincero, eu não acredito em direita e esquerda no Brasil", rebate Edgar Nóbrega. "Paulo Skaf, por exemplo, foi candidato do Partido Socialista Brasileiro e você não pode dizer que ele é socialista. Acredito em conservadores e progressistas."

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O garçom Charles Paulino da Silva vota Lula, enquanto seu patrão é Bolsonaro
Imagem: Rogério Fernandes/UOL

Onde está o IDH

São Caetano do Sul não tem praia, grandes áreas verdes, rios ou cachoeiras. Tampouco se veem crianças brincando ou senhoras conversando nas varandas. As ruas estreitas no centro da cidade mal comportam os caminhões de carga que cruzam o município, que praticamente se confunde com a caótica capital paulista.

A única diferença visível para o forasteiro que atravessa o limite dos dois municípios é a fonte das letras das placas de trânsito, bem maiores comparadas às da capital. Praticamente murada por fábricas e indústrias como a Moinho Santa Clara e a General Motors, São Caetano tampouco lembra as cidades do interior do estado, com igrejinhas, praças e coretos.

Boa parte do comércio e edifícios se concentram numa grande via, a Avenida Goiás, para que outros estabelecimentos e residências com ares mais modestos, se proliferem nas ruas perpendiculares. O que, afinal, faz de São Caetano tão boa para viver?

Como votou São Caetano, maior IDH do Brasil - Divulgação - Divulgação
Fábrica da GM em São Caetano do Sul: município tem média 7 no Ideb
Imagem: Divulgação

Educação e calmaria

O prefeito Hermógenes Walter Braido (1927-2008), que administrou a cidade entre 1965 a 1969, investiu tanto na educação que o slogan de sua primeira gestão era "São Caetano do Sul, onde escola não é problema".

Além da criação de escolas a distância, para onde todos os alunos pudessem se deslocar a pé, foram ofertadas bolsas de estudos para ensino médio, profissional e superior. Também foram criados o Departamento de Educação e Cultura da prefeitura e a Uscs (Universidade Municipal de São Caetano do Sul).

O município tem bons índices no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), indicador que reúne fluxo escolar e médias de desempenho: de 0 a 10, São Caetano mantém média 7. "Além do investimento público, há também o investimento privado de escolas de idiomas, de danças típicas, atividades extracurriculares", afirma Leone. "As duas coisas [poder público e iniciativa privada] caminham juntas."

Ao se falarem por telefone, Leone e Nóbrega costumam tirar sarro das diferenças políticas que têm entre si. "Vou te converter a Bolsonaro", brinca um. "Não voto em torturador", replica o outro. Nóbrega sugere comer salmão com molho de morango no restaurante de Simon — e este gaba-se de que um de seus melhores funcionários é Charles Paulino, um garçom petista, de quem tem orgulho de ter na equipe.

"Para falar a verdade, eu não acho que o pessoal que mora aqui seja 100% Lula ou 100% Bolsonaro", diz a estudante Taynara Oliveira, 16, que votou pela primeira vez este ano. "Até porque aqui é uma cidade pequena e todo mundo se conhece. Nunca vi ninguém sair na mão por causa de política, por exemplo."

"Eu gosto do Lula e gosto dos posicionamentos dele. Nada a ver o que o Bolsonaro fala sobre gays, trans e mulheres", completa seu colega Yuri Macedo, 17. "Eu me reconheço como não binário e votei justamente para me posicionar politicamente", explica.

Mas como é para um jovem viver na cidade com melhor IDH do Brasil, onde nem mesmo as diferenças políticas afetam a calmaria da cidade? "Um tédio", respondem os dois em uníssono, vestindo camiseta da banda coreana BTS, unhas pintadas de preto e cabelos descoloridos.