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OPINIÃO

Os 'cristãos' que falam em defesa de crianças, mas fazem um menino sangrar

Ricardo Alexandre*

Colaboração para o TAB, de Jundiaí (SP)

04/11/2022 14h25

Tenho um grupo caseiro de estudo bíblico e de oração na cidade onde moro, Jundiaí, interior de São Paulo. Ontem, no período de orações, minha filha de 15 anos pediu a palavra e sugeriu que nosso grupo orasse por um colega de escola que havia se ferido depois que uma pedra atirada por manifestantes bolsonaristas estilhaçou a janela do ônibus onde ele estava. Um vídeo do menino sangrando, e dos manifestantes cercando e invadindo o ônibus, já circulava pela internet àquela altura.

Pais, professores e colegas ficaram assustados — porque não é possível chegar à escola técnica onde ela estuda sem, de alguma forma, passar pela manifestação montada em frente ao 12º Grupo de Artilharia de Campanha da cidade. As aulas, que já estavam ocorrendo de forma caótica desde o resultado do segundo turno, foram suspensas. Minha filha pedia ao nosso pequeno grupo para que orássemos para que o problema se resolvesse e que ninguém mais se ferisse.

Perguntei a ela se essa situação chegou a ser discutida na escola, de alguma forma. Ela disse que não, porque os professores dizem que "falar sobre política pode trazer problemas". Dentro do carro, tentei explicar que tudo é político, inclusive não falar sobre política. Tentei conversar a respeito do paradoxo evidente entre uma manifestação democrática em defesa de uma intervenção antidemocrática. Mas havia outros paradoxos se avolumando: brasileiros "em defesa das nossas crianças" e "das nossas famílias" fazendo um menino sangrar e impedindo que minha filha e seus colegas pudessem estudar.

É muito difícil escrever esse texto. Porque falo de risco físico e emocional à minha filha, mas não só disso. Falo também de todos os pastores que usaram de sua autoridade reconhecida em comunidade, para convencer milhões de pessoas de que Jair Bolsonaro representava "os princípios cristãos" e que, sem votar 22, nossa sociedade se transformaria em "completo caos". Falo de outros líderes religiosos que se omitiram diante da fanatização evidente e da radicalização das pessoas que deveriam instruir e orientar.

Falo também de pais de amigos dos meus filhos, que os assediaram politicamente — ainda que eles nem sequer tenham idade para votar. Falo de gente que atrapalhou a educação espiritual deles, dizendo que ser cristão é igual a ser de direita, tentando silenciar todo o legado de William Wilberforce, Martin Luther King, John Trevor e Desmond Tutu que eu espero que viva dentro deles, em pé de igualdade com outros tantos homens e mulheres de Deus mais alinhados ao conservadorismo. Falo de todos os que se dizem cristãos e que se arvoraram como "verdadeiros" crentes apenas por serem adeptos da direita política, oraram, jejuaram e vigiaram para que a vontade de Deus se cumprisse nas eleições e agora protestam contra ela.

Achei que deveria ter uma palavra pastoral para meu grupo, que eu tenho muita alegria de dizer que é feito de gente mais à direita e de gente mais à esquerda, gente misturada unida pelo "vínculo da paz", exatamente como a Bíblia diz que deve ser. E lembrei da palavra que o profeta Jeremias recebeu de Deus — não quando seu candidato favorito perdeu as eleições, mas quando, muito pior, o rei Nabucodonosor deportou o povo de Jerusalém em direção à Babilônia. Em vez de queimar pneus, apedrejar ônibus, fechar rodovias, agredir jornalistas e querer tomar a vingança em suas próprias mãos, a orientação do "Senhor dos Exércitos" era a seguinte:

Construam casas e se estabeleçam ali. Plantem jardins e comam o que cresce na terra. Casem-se e tenham filhos. Incentivem seus filhos a se casar e ter filhos, para que vocês progridam e se multipliquem nessa terra e não desperdicem a vida. Estabeleçam-se aí e trabalhem para o bem-estar do país. Orem pela Babilônia. Se ela estiver bem, vocês também estarão. (Jeremias 29.4-7)

Porque espero que meus filhos jamais depositem sua esperança nas mãos de um político, seja de direita ou de esquerda, que jamais devotem sua fidelidade a homens e que desconfiem de todo líder que, em vez de ofertar amor, exija compromisso incondicional. Que estejam prontos a sinalizar o Reino de Deus seja em Jundiaí, seja num Brasil conservador ou progressista ou no cativeiro da Babilônia, se for o caso.

Que cresçam muito diferentes dos que se arvoram defensores da família e dos que votam inspirados em "princípios cristãos" estranhos à Bíblia — princípios que só estimulam o divisionismo, a chantagem, a raiva, a rebeldia e a violência.

* Ricardo Alexandre é jornalista e escritor, autor do livro "E a verdade os libertará: reflexões sobre religião, política e bolsonarismo" (Editora Mundo Cristão)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL