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Encontro evangélico pós-eleição: 'Pense como nossa fala pode ser opressora'

Ed René Kivitz, pastor da Igreja Batista Água Branca, na abertura do congresso Conversas Pastorais, em São Paulo - Arto Cavalcanti/Divulgação
Ed René Kivitz, pastor da Igreja Batista Água Branca, na abertura do congresso Conversas Pastorais, em São Paulo
Imagem: Arto Cavalcanti/Divulgação

Do TAB, em São Paulo

05/11/2022 04h01

Em cima do palco, o pastor Ed René Kivitz observa o auditório ficar mais cheio após o almoço. Organizado por ele, o congresso Conversas Pastorais havia começado às 9h de terça-feira (1º) com alguns buracos na plateia. Passados nem dois dias do segundo turno das eleições presidenciais, o motivo estava na manchete do UOL: insatisfeitos com o resultado da disputa, caminhoneiros e bolsonaristas faziam bloqueio de rodovias em todo o país.

Microfonado com um headset, o pastor perguntou como havia sido a via-crúcis até ali. Trânsito, ônibus parado na rodovia e voos atrasados guiavam as respostas. "É Satanás atrapalhando. É o inimigo", sentenciou, arrancando gargalhadas da plateia.

Vestido de preto, com tênis branco, Kivitz tem 58 anos e certa aura de intelectual, talvez reforçada pelos óculos de aro grosso. Uma liderança pastoril diferente, acumula no meio evangélico tanto seguidores quanto críticos.

Em 2021, ele chegou a ser expulso pela Ordem dos Pastores Batistas do Brasil por defender um novo entendimento da Bíblia. "A Bíblia precisa ser atualizada e é um livro insuficiente", disse, à época, o que hoje avalia como positivo. "Esse fundamentalismo me expurgou. Tenho hoje o privilégio de não ser identificado e estar no extremo oposto disso que chamo de 'centrão evangélico', esses pastores, bispos e apóstolos evangélicos que de maneira vergonhosa e inescrupulosa já se apressam em abandonar Bolsonaro e correr atrás do presidente Lula vitorioso nas últimas eleições."

Desde 2018, o pastor se posicionou contra o bolsonarismo e o fundamentalismo religioso. "Fui acusado de fazer política eleitoreira, quando em minha consciência eu estava me opondo a que fossem acolhidos impunemente pela sociedade, e especialmente no contexto das igrejas evangélicas, os atos inomináveis como o elogio da ditadura e a exaltação de um coronel condenado pelo ato covarde e sádico da tortura de prisioneiros políticos."

Se, por um lado, é apedrejado por suas "heresias" em suas redes sociais, por outro, tem tocado uma parcela de fiéis e pessoas fora da igreja, interessadas nos seus sermões, palestras e pensatas que geralmente bebem de outros conhecimentos, como a filosofia e a psicanálise.

Esse era o foco daquele congresso, sediado na Igreja Batista Água Branca, nos dias 1º e 2 de novembro: propor reflexões sobre a prática pastoral em tempos de polarização aflorada e pouco diálogo. "Como posso dialogar se vivo num gueto de donos da verdade?", questionou à plateia de pastores, ministros, lideranças religiosas, desigrejados, voluntários sociais vindos de várias partes do país.

Os trabalhos naquela terça foram abertos calcados na palavra não da Bíblia, mas do educador pernambucano Paulo Freire, patrono da educação brasileira e declarado inimigo da extrema direita. "Ele parece um pastor falando", notou no início. "Ele fala dessa transferência do saber, de uma educação libertadora, uma comunicação dialógica. Você que é pastor pense como nossa fala pode ser opressora. A fala contribui para a desumanização e para a humanização."

"Independentemente do resultado das eleições, queríamos oferecer um espaço acolhedor e seguro para aos pastores, pastoras e lideranças que vieram de um processo eleitoral desgastante e hostil em suas cidades e igrejas de origem", disse ao TAB, dias depois do encontro.

No congresso, defendeu que, se os evangélicos eram parte do problema, deveriam ser também parte da solução. "Nós, cristãos, somos as soluções dos conflitos globais e sociais de debates de modelos de sociedades possíveis." Na plateia, alguém responde: "Amém!"

Ed René Kivitz, pastor da Igreja Batista Água Branca, em São Paulo - Arto Cavalcanti/Divulgação - Arto Cavalcanti/Divulgação
Imagem: Arto Cavalcanti/Divulgação

Sem lacração

Teólogo e mestre em ciências da religião, Ed René Kivitz conta ter acessado obras de filósofos e poetas quando passou a escrever livros sobre espiritualidade — já são seis publicados. Desde 2015, além do trabalho pastoral, realiza rodas de conversas mensais, que deram origem ao congresso. Naquela primeira edição, Kivitz anunciou que fariam parte da conversa um ateu e um rabino. "Vamos até ter pastores evangélicos", brincou, no microfone.

"Jesus fez mais de 100 perguntas no Evangelho, falava por meio de parábolas e ninguém entendia. Ele não tinha o objetivo de lacrar", observou, durante a tarde no auditório moderno no galpão na Barra Funda onde a igreja opera. "Um Deus que conversa, um Deus que muda de ideia, é um Deus humilde. Se não for dialógico, é escravizante", disse. "Não ajam como dominadores".

No painel "Por uma pastoral dialógica", o pastor José Marcos Silva fazia reflexões sobre seu papel como liderança da Igreja Batista de Coqueiral, bairro periférico do Recife. "A gente já prepara a resposta antes da pergunta. A arte da conversa fica maculada. O mais sagrado numa conversa é a pergunta", disse. "Nossa formação teológica tem o erro de DNA. Nós temos a presunção de achar que temos a verdade final." Na plateia, muitos concordaram balançando a cabeça.

Kivitz voltou com uma provocação. "O que vocês querem? Porque o modelo hegemônico aqui no Brasil parece ser outro", disse. "Esse modelo não funciona, olha o tipo de igreja que a gente produz. Olha o adoecimento dessas pessoas, a gente não ouve", respondeu José Marcos. "A gente precisa se desarmar. E não é só com a arma que esse governo aí dá."

O público foi convidado a participar com "perguntas objetivas", mas o microfone aberto recebeu longos desabafos sobre o fardo e a dificuldade de levar a palavra. Uma pastora de Belo Horizonte relatava cansaço ao lidar com a comunidade durante as eleições. "Fui chamada de comunista. Vagabunda foi a última que eu ouvi", disse.

"Tem hora que a gente precisa dizer: 'Não dou conta disso'. Às vezes pega uma fraqueza nossa, por isso a importância da autoescuta. Minha terapia é a corrida", opinou José Marcos. Kivitz demorou um pouco para opinar, mas sugeriu terapia: "Pague alguém pra te ouvir".

Francisco Bosco no Conversas Pastorais - Arto Cavalcanti/Divulgação - Arto Cavalcanti/Divulgação
Francisco Bosco, filósofo, abordou 'nó entre tradicionalistas e progressistas' no congresso
Imagem: Arto Cavalcanti/Divulgação

'Pra quem eu tô falando?'

Após o auditório encher, a tarde seguiu com a participação do filósofo Francisco Bosco. Sua intenção ali era explicar o "nó entre tradicionalistas e progressistas". Foi o momento em que a parte política ficou mais patente. Chamou o mandato de Jair Bolsonaro de "quatro anos de desgoverno" e uma parte dos bolsonaristas de "facção".

Todos ouviam sem reagir — não havia nenhum sinal das posições políticas ou do voto dos presentes. Bosco confidenciou: "Não sei bem pra quem eu estou falando hoje. Tem lugares que eu sei melhor quando é para a direita ou para a esquerda. O Ed só me disse que era um povo amigo", disse. "Mas vou falar coisas que eu falaria pra esquerda: não existe campo democrático sem a direita."

Nas últimas fileiras, Filipe Cardoso, 34, ouvia atentamente. Era de Valinhos, interior de São Paulo, onde organiza uma célula religiosa com amigos e familiares, sem ligação com qualquer denominação. Gostava como Kivitz discutia as questões do mundo, em especial o vídeo que o pastor fez logo em seguida à eleição, lembrando da passagem bíblica "dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus": "Fui votar no meu César", disse.

"Minha idolatria é Cristo. Ficar preso a um totem ou tabu de um político, você perde seus valores. Claro que a gente precisa acompanhar o que está acontecendo, mas para aquilo virar seu Deus, não", observou Cardoso. Ele votou nulo.

Marina Silva, apoiadora de Lula, fala na primeira edição de Conversas Pastorais, na Igreja Batista da Àgua Branca - Arto Cavalcanti/UOL - Arto Cavalcanti/UOL
Marina Silva, deputada federal eleita, na Igreja Batista Água Branca, em São Paulo
Imagem: Arto Cavalcanti/UOL

Fogo estranho

Ainda que sem adoração declarada por nenhum político, a chegada de Marina Silva, deputada federal eleita pela Rede — e uma das apoiadoras do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) — causou momentos de ovação. Marina frequenta a Igreja Batista Água Branca há anos e chama Kivitz de "meu pastor". "Ovelha complicada precisa de muitos."

"Polarizaram entre Lula e Bolsonaro, mas a gente regrediu e foi para um lugar anterior a isso, polarizando entre as forças do céu e as forças do inferno, entre o messias e o antimessias", falou à plateia. "Produzimos fogo estranho. Quem é da igreja sabe o que isso significa, alguém ajuda o Bosco", brincou, olhando para o filósofo, um "ateu não militante".

Em seguida, chamou Bolsonaro de "frouxo" por não ter reconhecido a derrota e refletiu sobre o elo do presidente derrotado com o povo evangélico. "Jesus diz: Esses que conscientemente entram nos escândalos — para as pessoas acharem que evangélico defende arma, que ser cristão é ser contra preto, que ser cristão é ser homofóbico — devem ter uma pedra de moinho amarrada no pescoço e lançados no fundo do mar. Não sou eu que estou falando, está na Bíblia." "Glória a Deus", ouviu-se da plateia.

A conversa reuniu também o jornalista e escritor Ricardo Alexandre e o pesquisador e pastor batista Felippe dos Anjos para entender a fratura ideológica dentro da igreja. "A gente já se encontrou em tanto congresso de pastor bizarro", disse Dos Anjos. "Se a gente descapitalizar nossa experiência religiosa e voltar a praticar uma religião com maior identificação, menos discursiva, talvez a gente conseguisse enxergá-la de forma mais democrática. A gente não entregaria nossos rituais na mão de um fascista."

Seguiu-se uma discussão densa sobre como a esquerda abraçou pautas como identidade de gênero e não binaridade — e como isso causou reações violentas dos tradicionalistas. O horário estipulado para o término já havia passado e não havia sinal de uma conclusão. "Vocês arruinaram minha mediação", brincou Kivitz.

Sobrou para Marina sintetizar toda a discussão. Embaixo de um pano em que se destaca o trecho bíblico "as palavras matam e geram vida, pode ser veneno ou um doce de primeira — você é quem decide" (retirado de Provérbios 18.21), a ex-ministra disse que ninguém ali tinha votado para eleger pastor ou padre. "O ódio atua dizendo que todos nós que temos outros candidatos não somos crentes de verdade. Nesse momento só tem uma saída: beber da fonte", diz.

"Se eu quero uma igreja viva, preciso me reconectar à raiz. Na Bíblia está escrito: 'Olhai de tudo, e escolha o bem.'"

Dias depois, Kivitz avaliou que o congresso atingiu seu objetivo. "Está bem definido no Evangelho: respeitar a liberdade e a consciência de cada pessoa em seu direito inalienável de fazer escolhas e assumir o protagonismo de sua própria história, falar a verdade em amor, e jamais pactuar com a violência", afirmou.

"Lamento profundamente o distanciamento que pessoas do meu afeto impuseram a mim, e espero que ainda seja possível nos reencontrarmos num breve amanhã onde possamos respirar ares pacificados. Estou comprometido na direção das reconciliações."

Ricardo Alexandre, Francisco Bosco, Marina Silva, Ed René Kivitz e Fellipe dos Anjos discutem religião e política - Arto Cavalcanti/Divulgação - Arto Cavalcanti/Divulgação
Ricardo Alexandre, Francisco Bosco, Marina Silva, Ed René Kivitz e Fellipe dos Anjos discutem religião e política
Imagem: Arto Cavalcanti/Divulgação