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'Guerra das flores': pacientes defendem produtos de cannabis além do óleo

Tali e Drika Coelho, pacientes canábicas: desde 2021, a Anvisa autoriza a importação de flor de cannabis e outros itens para fins medicinais; o CFM, entretanto, autoriza apenas o óleo de canabidiol - Carine Wallauer/UOL
Tali e Drika Coelho, pacientes canábicas: desde 2021, a Anvisa autoriza a importação de flor de cannabis e outros itens para fins medicinais; o CFM, entretanto, autoriza apenas o óleo de canabidiol
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Danila Moura

Colaboração para o TAB, de São Paulo

11/11/2022 04h01

Aos nove anos, na terceira série, Tali Coelho sentiu uma dor abdominal inexplicável. A mãe mandou a menina tomar dipirona, o pai recomendava chá de camomila — nada resolvia. No colégio, menstruou pela primeira vez e, desde então, enfrenta cólicas tão fortes que muitas vezes a impediram de sair da cama. "Todo mês, urrando de dor", relata a hoje analista de dados de 31 anos, pesquisadora de dados do mercado da cannabis.

Tali passou décadas munida de analgésicos alopáticos até adicionar a maconha medicinal para aliviar a dor. Paciente canábica com prescrição médica, ela foi uma das ativistas indignadas com a resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina) que restringiu o uso do canabidiol para epilepsia refratária em crianças e adolescentes com síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut ou complexo de esclerose tuberosa. Publicada em 14 de outubro, a resolução foi derrubada dez dias depois. Para Tali, porém, a questão é um pouco mais delicada — delicada como uma flor.

Desde 2021, a Anvisa autoriza, mediante prescrição médica, a importação de flores de cannabis, supositórios, pomadas, lubrificantes, "gummies" e outros itens para fins medicinais da maconha. O CFM autoriza o óleo de canabidiol, mas veda a prescrição de flores, que é cannabis in natura, e outros produtos derivados. Em certos casos, pacientes precisam da flor para vaporizar ou fumar para obter efeitos mais imediatos — não é sempre que o óleo supre as necessidades do tratamento. Nesta quarta-feira (9), um paciente teve uma decisão favorável na Justiça de Belo Horizonte: na ação, que corre em segredo de justiça, foi decidido que o plano de saúde deveria bancar a importação de flores para seu tratamento.

Com habeas corpus para cultivo, Tali tentou a versão vaporizada e fumada, mas as dores persistiram. Ao descobrir os supositórios ovulares com canabidiol, ela vislumbrou mais uma possibilidade. Todavia, os custos de importação são muito altos (cerca de R$ 430 para quatro unidades). Tali, então, passou a fazer os próprios supositórios. A extração do óleo a partir da flor de maconha é feita com cuidado para vaporizar os solventes, uma técnica que ela aprendeu na Accura (Associação de Apoio e Pesquisa Cannabis Cura). Ativistas como ela se referem à defesa de outras formas farmacêuticas da maconha como "guerra das flores".

Tali Coelho, em São Paulo - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Tali faz os próprios supositórios com óleo extraído a partir da flor de maconha
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Além do óleo

O designer Gilberto Castro, 49, cultiva flores de maconha na sua casa em São Paulo. Portador de esclerose múltipla, ele é um dos precursores na obtenção de habeas corpus de cultivo no Brasil. A namorada dele, a publicitária Drika Coelho, 37, também se beneficia: depois de burnout, crises de ansiedade e três hérnias, atualmente ela lida com os sintomas da fibromialgia com as flores.

"O alívio acontece em questão de 20 a 25 segundos", relata ela, que compara o consumo da erva com um hábito como tomar chá de boldo quando está indisposta. Fumar, conta Drika, ajuda na fadiga típica da fibromialgia; o óleo melhora a dor que vai migrando no corpo; as balas de goma são para relaxar; a pomada infusionada com THC (tetrahidrocanabinol) é para rigidez muscular.

Chá de maconha medicinal - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Na hora de dormir, ela opta por um chá feito do "trimming", que são as folhas cortadas mais próximas das flores. As "trimadas" também são utilizadas para fazer pomadas cicatrizantes com óleo de coco, indicadas para tatuagens.

O skatista Italo Penarrubia, 30, medalhista do X Games, usa pomada canábica em lesões, e cápsulas e óleo para tratar ansiedade e TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade). Os itens foram adquiridos com prescrição e importação, conta. A média de entrega é de vinte dias, mas varia conforme questões burocráticas.

Segundo a biomédica Lih Vitória, especializada em cannabis medicinal, é preferível ter alternativas ao fumo, que produz monóxido de carbono e substâncias cancerígenas. "Todas as formas farmacêuticas da maconha são medicinais", define ela, doutoranda na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Drika Coelho e Gilberto Castro, em São Paulo - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Gilberto cultiva flores de maconha para tratar esclerose múltipla; Drika, para fibromialgia
Imagem: Carine Wallauer/UOL

Nem tudo são flores

Com a RDC 660/22 (consolidação das RDCs 335/20 e 570/21) da Anvisa, ocorreu um boom de importação de produtos canábicos, uma alta que não é vista com bons olhos pela farmacêutica Claudete Oliveira, da Apepi (Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal). Uma das razões é que os produtos vêm de países com regulações diversas e, consequentemente, padrões de qualidade com critérios diferentes, diz ela, doutoranda na Fiocruz, no Rio de Janeiro.

Além disso, cada produto é indicado para um tipo de tratamento — e cada organismo responde de modo singular ao ter o sistema endocanabinoide estimulado a depender da administração, acrescenta Oliveira. "É essencial ter outras formas farmacêuticas que estejam disponíveis além do óleo."

'Gummies' de maconha medicinal - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Imagem: Carine Wallauer/UOL

A RDC 570/21 não especifica as vias de administração dos produtos canábicos importados. De olho na lei, um advogado intermediou então a primeira compra de "buds" com prescrição no Brasil, em 2021. Ele também é paciente e recebeu em casa 42 gramas de flores canábicas para tratar tabagismo e ansiedade.

Ter maconha medicinal de alta qualidade entregue no conforto do lar, entretanto, ainda é uma realidade restrita, "um privilégio branco", nas palavras de Drika, Gilberto e Tali. "Se fôssemos pessoas pretas, duvido que teríamos acesso ao mundo canábico assim", dizem.

Drika cita um caso como exemplo: o de Lucas Morais, 28, que foi acordado e revistado por policiais em sua casa. "Na revista encontraram 10 gramas de prensado no bolso da calça, o suficiente para ele ser preso por tráfico e morrer de covid-19, em 2020. Ele simplesmente fumou um baseado para dormir."

Lih Vitória, uma pesquisadora preta, destaca que é preciso "discutir a legalização de forma justa para todos". "A criminalização [da cannabis] é uma violação às garantias dos direitos humanos, mas é como se esses humanos tivessem um CEP específico. Quando se trata da população preta e periférica, não é bem por aí", critica.

Flor de cannabis - Carine Wallauer/UOL - Carine Wallauer/UOL
Imagem: Carine Wallauer/UOL