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Em SP, ato vira feira com abraço a quartel e dança ao som do 'pai-nosso'

Bolsonaristas realizam atos antidemocráticos em frente ao quartel-general do Comando Militar do Sudeste do Exército, no Ibirapuera, em São Paulo - André Porto/UOL
Bolsonaristas realizam atos antidemocráticos em frente ao quartel-general do Comando Militar do Sudeste do Exército, no Ibirapuera, em São Paulo
Imagem: André Porto/UOL

Cláudia Castelo Branco

Colaboração para o TAB, de São Paulo

15/11/2022 18h28

Sem referências a Jair Bolsonaro, mas muitas a Neymar, manifestantes pró-golpe cantavam "Você sabe de onde eu venho?" nos arredores do Parque do Ibirapuera, em São Paulo. Vestidos com a camisa da Seleção ou enrolados em bandeiras, muitos fechavam a cara ao perceber a presença da reportagem.

Perguntado sobre o número de pessoas ali, Marcelo (não quis dar sobrenome), um dos mais calmos, reagiu: "No mínimo, 200 mil". Um outro homem, na faixa dos 50 anos, entrou na conversa. "Coloca aí que às 15h do dia 15, 2 milhões estarão fazendo um cordão de oração em torno do quartel por 15 minutos [o cordão realmente aconteceu, mas não com tanta gente assim]." Um terceiro, que chegou de bike e roupa de ciclista, ameaçou dizendo que queria "ver a verdade".

Levando em consideração o espaço por onde circulavam e a aglomeração, milhares de pessoas foram para a frente do quartel-general do Comando Militar do Sudeste pedir um golpe militar, mas o número não chegou nem perto da expectativa de Marcelo.

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Imagem: André Porto/UOL

Sem sinal do Exército

"Olha a bandeira!", anunciava Leonardo, 30. No dia 2 de novembro, calcula, faturou R$ 25 mil. "Ele chutou alto. Num dia como hoje, o lucro é de R$ 10 mil", disse Anderson, seu concorrente.

Sob 31°C, o corredor que leva à entrada do quartel estava sufocante. Nas laterais, vans de lanches e espetos misturavam-se a barracas, um quiosque de achados e perdidos, bandeiras, sombrinhas e uma imagem impressa de Jesus Cristo.

O público movimentou-se para a frente do QG do Exército gritando "For-ças Ar-Ma-Das S.O.S". Um espaço protegido por cones e cordas era respeitado — um homem invadiu o espaço para fazer uma live, mas foi retirado pelos colegas.

Não havia sinal do Exército. Quando uma faixa amarela com a frase "Forças Armadas, Salvem o Brasil" subiu, o grito foi trocado. Também não durou muito — faltou fôlego, o calor era demais.

Num dos quiosques, uma senhora segurava um papel A4. De um lado, a capa da Constituição de 1988. Do outro, o Art. 5º da Constituição impresso: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade". Ela contou que está ali para defender o Brasil. Define-se como patriota, como todos os outros ouvidos.

No meio da multidão, um homem branco pedia socorro a Duque de Caxias e colocou "colonialismo", "nazismo", "comunismo" e "petismo" no mesmo balaio. Havia poucos negros no local. Nos pés dos manifestantes, tênis Adidas, Nike ou Puma.

Um dos carros mais enfeitados misturava adesivos de Nossa Senhora Aparecida, uma caveira, propaganda de um canal de YouTube e a frase "Lutar sempre, vencer talvez. Desistir, jamais". Outro trazia no retrovisor uma roupinha de cachorro com a bandeira verde-amarela. Outro vendia plantas-ímãs de geladeira.

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Imagem: André Porto/UOL

Ao lado do carro "Jipeiros pelo Brasil", um tecido camuflado cobria sabe-se lá o quê. Foi quando alguém sugeriu que a reportagem comprasse uma bandeira do Brasil para ficar mais à vontade.

A imprensa, sempre que identificada, gerava desconforto e um longo papo se iniciava sobre o dever do jornalista de defender os princípios constitucionais e o estado democrático de Direito. Foram pelo menos seis vezes, uma delas num posto de saúde improvisado com esparadrapos, soro fisiológico e aparentemente medicações simples.

"Que você quer?", perguntou a responsável, fechando a cara e afirmando "aqui é só CPF. É todo mundo". Um homem vestido de bombeiro, posicionado ao lado, disse que integra a corporação, mas está lá por vontade própria. "As vezes é uma dor de cabeça, uma desidratação." Também não quis se identificar.

"Fica até as 15h que você vai ver 2 milhões, mas você é da imprensa esquerdista e não vai falar a verdade", comentou uma mulher loira segurando uma bolsa Louis Vuitton. Enquanto TAB conversava com uma senhora simpática de 77 anos, sentada numa cadeira de praia, a loira interferiu, fazendo um gesto de silêncio com o dedo sob os lábios. A senhora não ligou. "Coloca também que tem muito pernilongo aqui", brincou.

"Nós não somos hostis. É que infelizmente tem pessoas que não entendem que as pessoas trabalham em lugares que nem sempre são aquilo que as representam", afirmou uma mulher, do nada, sem esclarecer a que se referia.

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Imagem: André Porto/UOL

Com referências ao Hino Nacional, versos do poeta Gonçalves Dias e da obra de José de Alencar, "A Canção do Expedicionário", composta por Guilherme de Almeida e Spartaco Rossi, voltou a tocar. "Não permita Deus que eu morra / Sem que volte para lá / Sem que leve por divisa / Esse 'v' que simboliza / a vitória que virá / Nossa vitória final / que é a mira do meu fuzil (...)".

Duas horas depois, nada de Exército — apenas um soldado na guarita de cabeça erguida, observando. Outro militar também foi visto saindo do interior do quartel e voltando, tranquilo, sem se misturar.

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Imagem: André Porto/UOL

Trânsito e multa

A CET apareceu em torno do meio-dia, quando carros começaram a estacionar no gramado onde fica o Monumento às Bandeiras. Segundo funcionários que preferiram não se identificar, não estavam preparados para a quantidade de veículos e o trânsito na região.

Um deles, exausto, estava trocando de plantão. "Os carros serão multados", informou. Policiais militares observavam de longe, no lado oposto de onde aconteciam as manifestações.

Três homens vestidos com roupas militares — um deles trajava uma camiseta onde se lia 'Miami police" e "SWAT" — surgiram como se fossem organizar uma marcha. Questionados sobre os protocolos estabelecidos para ocasiões solenes, misturaram terminologia militar, algo no ano de 1962, elogiaram o ex-presidente Castelo Branco, mas não deram seus nomes. Foram logo cercados para selfies.

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Imagem: André Porto/UOL

Segundo o departamento de comunicação do Exército, consultado na segunda-feira (14), o Comando Militar do Sudeste "não está preparando nenhuma ação comemorativa especial para a data de 15 de novembro".

Sob o sol de rachar, um grupo acomodou-se na sombra. Ao lado, uma jovem dançava com a bandeira do Brasil ao som musicado da oração do pai-nosso.

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Imagem: André Porto/UOL