Sem celular e com 'fogo no bombril', geração Z curte seu primeiro Carnaval
Uma nuvem carregada encobre o fim de tarde no Largo do Machado, na zona sul do Rio. É sexta-feira de Carnaval e a noite começa com um bloco oficial que toma toda a praça, onde, em dias comuns, senhores jogam cartas e crianças correm em volta do chafariz, agora cercado por grades.
Diabinhas, anjinhos e "gatinhes" saem da estação de metrô, cujo acesso fica no Largo. Outros caminham vindos da vizinhança. Meninos vestem tutus; meninas, meias arrastão. São, de fato, meninos e meninas, jovens na categoria sub-20, que parecem não se importar com a originalidade de suas fantasias nem com a tempestade iminente.
Esse foi o público que o bloco "Senta que Eu Empurro" atraiu. Não se trata de uma agremiação tradicional: o que levou os jovens até lá foi a presença uns dos outros. Ou seja, a ideia de ir ao bloco correu de grupo em grupo das escolas da elite carioca, como o Santo Inácio e o Liceu Molière, dos calouros de universidades e da juventude menos abastada do Catete e adjacências.
A maioria ali é geração Z, aqueles que nasceram na primeira década do milênio e, portanto, são nativos digitais, usuários vorazes do Instagram e do TikTok. São também pessoas que tiveram parte de suas adolescências alijadas pela pandemia de covid-19.
"Na escola, os professores dizem: 'Isso vocês aprenderam no nono ano'. A gente se pergunta: 'Aprendemos mesmo?' Não estávamos lá, 2020 foi um ano que apagamos. Dizem que esses são os melhores anos da nossa vida e nós perdemos muito, não só conteúdo da escola", explica Gabriela Riva. Ao lado, a amiga Luisa Madureira lembra que elas não puderam, por exemplo, fazer nem participar de festas de 15 anos.
Enquanto a reportagem do TAB conversa com as garotas de 17 anos, uma dupla de amigos delas se aproxima. Eles também têm a mesma idade, usam chifrinhos de diabo, gravata borboleta vermelha e estão sem camisa. Um deles começa a se gabar dizendo que já pegou 16 meninas e marcou "mais de 200 pontos", referência a uma tabela que atribui pontuação a características das pessoas beijadas. As amigas torcem o nariz para a afirmação, consideram a fala machista, mas é Carnaval e todo mundo está a fim de viver a vida real.
Quem foi estava mesmo em busca de vida real, de festa e pegação. A festa da carne tá aí e só não cai quem não quer. O lema é: "olhou, olhou, sorriu, sorriu. Fogo no bombril", e há uma variação que termina com "mandioca no bombril". Apesar da figura de linguagem ser um tanto explícita, a verdade é que eles estão ali para beijar na boca.
Qual a diferença do Carnaval para as festas que eles frequentam no resto do ano? "É como aquele ditado sobre Las Vegas. O que acontece no Carnaval fica no Carnaval", compara Giovanna Martins, 17.
'Adolescência roubada'
Em outro grupo, antes que a reportagem conclua a pergunta sobre os anos de pandemia, a estudante de relações internacionais Íris Cesare, 20, interrompe: "Minha adolescência foi roubada. Sinto que ainda tenho 18. Deixamos de sair, de fazer as coisas, esse é praticamente meu primeiro Carnaval". A turma de amigos, na mesma faixa de idade e cursando os primeiros anos de faculdade, concordam e está ansiosos para a festa.
Há pouquíssimos celulares nas mãos das pessoas. Quando usado, o aparelho é só para se comunicar. Ninguém faz selfie, apesar do policiamento reforçado e zero sensação de insegurança.
A estudante de cinema Deborah Martini, com quem Iris divide apartamento, caprichou na maquiagem e no look de diabinha, mas fotos, só antes de sair de casa. "Nem trouxe o celular, estou aproveitando também a experiência de ficar sem", explica ela, que leva seu feed muito a sério. "Meu Instagram é todo pensado."
Será que vale qualquer coisa para conseguir seguidores? Essa turma de amigos afirma que não. Íris e Deborah contam que inclusive já viralizaram no TikTok com um vídeo que, sem querer, registrou a tentativa de roubo que sofreram em um bar. "O motoqueiro passou e tentou arrancar o celular da minha mão. Depois apaguei, porque chegou até no meu tio", relembra Íris. O vídeo, segundo ela, alcançou 200 mil visualizações.
Postar foto ou vídeo de pegação, dizem os jovens ouvidos pelo TAB, é pagar mico e só serve para ser julgado pelos outros. Um rapaz gay que teve vídeo postado por um crush diz ter se arrependido e que não pretende fazer isso de novo.
Há casais de namorados, que levam o relacionamento fechado, circulando pela festa. A estudante de enfermagem Sabrina Letícia, 19, e o militar Gabriel Ramos, 20, namorados há dois, usam fantasia de anjinho combinando, ela de branco e ele de preto. "Carnaval tem muita pegação, um casal sair separado é meio estranho", diz o rapaz, que está acompanhado também de um primo de 15 anos, este completamente focado em beijar.
Há ainda os não monogâmicos e os que têm relacionamentos abertos. Graciele Belo, 22, estudante de psicologia, explica que o fato de seu namoro de seis anos ser aberto não tem relação com o Carnaval. "Faz sete meses que decidimos abrir e não temos regras se devemos ou não contar [se ficam com alguém]. Se o outro perguntar, podemos falar o que rolou", conta. "A pandemia teve influência nessa decisão, descobri vontade de ficar com outras pessoas, mas é só para beijar."
"Sou não monogâmico e pretendo ser até o fim da vida", vaticina João Gabriel Valente, de 19. Em seu segundo relacionamento nesse modelo, ele afirma que está ainda em processo de entendimento com a atual namorada. Para ele, a diferença de abertos e não monogâmicos é que o segundo pode desenvolver outras relações. Sua ex, inclusive, namorou ele e mais uma pessoa ao mesmo tempo, mas ele nunca manteve mais de uma relação estável simultânea.
Em outro ponto do Largo do Machado, uma outra galera, na faixa dos 18 anos, beijava muito. Havia casais de namoradas e namorados, gays na pegação e feministas que explicavam como se dá a abordagem. De novo, o bordão do "olhou, olhou, sorriu, sorriu" surgiu.
"Se alguém chega e você diz que não, não rola. A pessoa sai. Ou se estamos com amigas que estão prestando atenção em todo mundo e alguém namora, damos um sinal, tocamos na pessoa, por exemplo, para mostrar que estamos acompanhadas", diz a estudante de economia Luisa Caldas, 18. "Se eu percebo que um cara está, por exemplo, encarando duas meninas se beijando, por exemplo, eu me coloco na frente", completou Manuela Medrado, estudante de administração, também de 18.
A temperatura do bloco foi subindo à medida que a noite avançava e o álcool subia à cabeça. A tempestade não veio, só uma chuva esparsa. Hits de outros carnavais como "Mila" e "Não Quero Dinheiro" incendiaram os jovens e só reforçaram a sensação de que pouco mudou nos hábitos e na cultura do Momo nas últimas décadas. Evoé!
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