Baile de Carnaval no interior embrulha chuva, suor e saudade na serpentina
Um desavisado que cruzasse a piscina do clube 22 de Agosto, no fim dos anos 1990, em Araraquara (SP), corria o risco de ser arremessado para cima sem saber por quê. Foi o que aconteceu com o seu Ernesto, um septuagenário que costumava passar por uma verdadeira zona de guerra formada por adolescentes que brincavam de arremessar os amigos, pelas pernas, debaixo d'água.
A cena do twist carpado involuntário ficou imortalizada na camiseta do primeiro bloco de Carnaval daquela turma. O ano era 1999 e o nome do bloco era uma homenagem quase em forma de desculpa: Bloco do Ernesto. Eu fui, eu vi.
O que era brincadeira virou tradição. Todos os anos, a turma de adolescentes colocava o bloco na rua antes de acessar os corredores do 22 de Agosto, clube fundado em 1941 que até os anos 2010 tinha duas sedes: a de campo e a social, com três ambientes.
A disputa para eleger o melhor bloco de Carnaval rolava no clube e era tão tradicional quanto as marchinhas — uma instituição que, naquela época, começava a perder o reinado para o Bonde do Tigrão.
'Esquenta' no zap
Na última semana, um grupo do WhatsApp tirou do baú e fez circular fotos e histórias do Bloco do Ernesto, que ao longo do tempo mudou de nome para Substância e Marmota 2. O que catalisou a maré saudosista foi o anúncio de que, depois de dois anos, a sede do campo, área remanescente do clube (parte foi a leilão em 2013), voltaria a festejar o Carnaval.
Às sextas-feiras, antes de vestir a camisa do bloco, a tradição era os meninos se vestirem de meninas, e as meninas, de meninos. Uma hora dessas, alguém lembrou na sexta-feira (17), as meninas já estariam emprestando os saltos e as maquiagens para os rapazes.
Bons tempos.
Um trenzinho era alugado por foliões calibrados na "caipibomba" que atravessavam a cidade, cantando e provocando os rivais do Clube Araraquarense. A festa, que seguia com destino ao prédio da avenida Brasil, onde ficava o salão, só terminava na manhã de quarta-feira no carrinho de lanche do Vardec.
Não tinha quem não se lembrasse dos tempos em que os seguidores do Ernesto botavam no bolso os blocos tradicionais e despontavam como favoritos para levar o título de grupo mais animado, num critério subjetivo de escolha no apito que muitas vezes provocava revolta.
"Outro dia perguntei para meu namorado, que é de São Paulo, e ele disse que não tinha memória de festas em clube como nós, do interior. Eu desde criança achava o máximo as festas na matinê. Minha mãe fazia uma fantasia diferente a cada ano e tinha desfile. Eu fui de Carmen Miranda uma vez e ganhei", relembrou, num áudio, a amiga Mariana da Rosa, 34. "Depois, na adolescência, veio a fase dos bloquinhos e era uma farra."
Mais de duas décadas depois do lançamento (sem trocadilho) da pedra fundamental daquele bloco, a idade e os boletos pautavam o (des)ânimo para a festa de sábado (18), à exceção de alguns amigos que ainda se reúnem em bares ou pub da cidade para uma bem-comportada cerveja.
Nada será como antes
Tudo parecia mudado no 22 de Agosto. Só as paredes e estruturas mantiveram intactas as cores azul e branco, agora decoradas com serpentinas e máscaras gigantes de acetato de vinil feitas à mão.
Não havia mais bloco. Nem marchinhas. Ninguém da antiga turma do Ernesto apareceu — a não ser este autor.
Quem não foi, perdeu.
O Carnaval de 2023 soou como um grito de resistência em um clube que sobreviveu aos solavancos, nos últimos anos, ao surgimento de condomínios fechados e o surgimento de outras áreas de lazer, como novos bares e o próprio Sesc.
Sobreviveu também à pandemia e às sucessivas crises econômicas que o transformaram em um enclave formado por cerca de 500 bravos associados - menos do que a capacidade do salão da velha sede nos tempos áureos.
Na virada dos anos 1990 para os anos 2000, muitos deixaram de frequentar o clube por uma contingência econômica; houve quem colocasse o título à venda para comprar um modem, novidade da época que começava a conectar (e desconectar) os antigos amigos a outro mundo.
Como em tantos lugares, o Carnaval no Clube 22 de Agosto deveria marcar um período de reencontro e retomada. Havia, porém, um último obstáculo. Não histórico nem econômico, mas meteorológico.
Enquanto o céu desabava, levando foliãs de certa idade a correr com as bolsas na cabeça até um abrigo, a festa que em décadas passadas juntava milhares de pessoas se resumia a algumas dezenas de mesas espalhadas em frente a um pequeno palco.
Perto dali, um buffet pouco disputado servia batata frita, porções de palmito e anéis de cebola.
Dois únicos bartenders suavam para preparar as caipirinhas, vendidas a R$ 12, em um balcão cujo arsenal alcoólico englobava garrafas de Corote, vinho Canção, Catuaba, Jurupinga e Velho Barreiro, além de leite de coco, doce de leite e pacotes de suco em pó, tipo Tang, para batidas de nomes sugestivos.
Quem era da cerveja poderia levar à mesa um balde com cinco latas por R$ 25, conforme anunciava um papel escrito à mão e afixado no velho guichê. As garrafas estavam proibidas - diferentemente dos tempos em que meu sogro deixava uísque ruim à vista de todos e escondia o Red Label sob a mesa "para a diretoria".
Enquanto a chuva não arredava, a playlist, que incluía hits antigos de Kaoma, Beto Barbosa e Sidney Magal, reunia alguns poucos foliões de fantasias preservadas da tempestade, entre eles um marinheiro, uma diabinha e uma Chapeuzinho Vermelho. Os fantasiados contavam-se nos dedos.
Vestido de rei egípcio, o professor de fit dance fazia o que podia para manter a empolgação de pé: dançava, pulava, tirava fotos e alimentava seu perfil no TikTok.
A outra atração era uma máquina-grua, localizada perto da mangueira de incêndio, repleta de pôneis e onças de pelúcia que podiam ser agarrados por R$ 2 a cada jogada.
A chuva deu uma trégua e animou até o Silvão, conhecido pipoqueiro da cidade que, por volta das 22h, cruzou a área do campo com seu carrinho e por lá ficou. Era uma espécie de prenúncio.
Os sons das calhas golpeadas pela tempestade deram lugar, assim, a um ensaio de bateria da divisão araraquarense da Mancha Verde, o destaque da noite.
Uma minivan estacionou atrás do palco. Sob olhares curiosos, a corte do Carnaval de Araraquara em 2023 desembarcou com seu Rei Momo, a Rainha do Carnaval, a Rainha do Samba, a Rainha Trans e as respectivas princesas. O céu, àquela altura, estava limpo.
Foi quando a festa explodiu, entre hits carnavalescos, sucessos de Tim Maia e Jorge Ben e celulares acionados. A festa do 22 era também uma festa instagramável.
Tradição e a desconstrução
Em um canto perto da pista, Maria Angélica Barros, 62, lembrava dos tempos em que saía em bloco em um pequeno grupo de amigos, nos anos 1970. "Hoje a festa migrou para a rua. Mudou muita coisa. A gente se preparava para as cinco noites e as duas matinês", contou a hoje proprietária de uma casa de repouso. "Era o tempo da novela 'Dancin' Days' e das marchinhas."
"A alegria do passado era um pouco mais evidente", diz o Rei Momo da festa, Maicon Lopes, 38. Em compensação, ele afirma, a festa hoje está mais diversa. "Sou LGBT e participo do Carnaval pelo quinto ano. Antes não se falava em diversidade. Se tinha, era uma coisa velada. E Carnaval é diversidade. Quem diz o contrário não sabe o que é Carnaval."
Até o fechamento desta reportagem, músicas hoje contestadas como "Cabeleira do Zezé" passavam longe daquele salão improvisado.
Ao menos em um ponto a tradição se manteve: na matinê de terça-feira (21), a programação previa a saída de um trenzinho pela cidade. Trenzinho, não: uma Carreta Avassaladora.
Saem de cena os blocos de adolescentes e entram as crianças, que vão zanzar por aí na companhia dos pais e adultos, estes sim, fantasiados de Fofão, Goku e Homem-Aranha.
Para quem chegou agora, será o começo da memória dos dias que virão. Quem te viu, quem te vê.
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