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'É uma paixão': bloco Cacique de Ramos desfila 62 anos de história no Rio

"São símbolos perfeitos: um índio e uma onça", filosofa Walter Júnior, responsável pela memória do bloco, sobre a rivalidade com o Bafo da Onça - Fabiana Batista/UOL
'São símbolos perfeitos: um índio e uma onça', filosofa Walter Júnior, responsável pela memória do bloco, sobre a rivalidade com o Bafo da Onça Imagem: Fabiana Batista/UOL

Yuri Eiras

Colaboração para o TAB, do Rio

25/02/2023 04h01

Em 2007, Walter Pereira Júnior havia acabado de entrar na faculdade de história quando foi interpelado pelo compositor Bira Presidente, um dos fundadores do tradicionalíssimo bloco de Carnaval do Rio de Janeiro Cacique de Ramos. Bira, que o conhecia desde criança, pôs a mão em seu ombro e lhe dedicou a missão: "Você ainda vai ser responsável por cuidar da nossa história".

A cena parece ritualística: um jovem recebendo ordens de um senhor esguio, altivo, líder de um dos grupos mais cultuados da música popular, celebrado como uma espécie de entidade em todo o país. "Só que aquilo não fez nenhum sentido para mim naquele momento. Eu só ia no Cacique uma vez ou outra para meu pai não ficar chateado", conta, rindo, o filho de um ex-vice-presidente da agremiação.

Walter Júnior, 33, ri pela ironia da vida: hoje, ele é diretor do Centro de Memória do Cacique de Ramos, cumprindo a função que Bira lhe confiou 15 anos antes. Depois de ter um estalo, em 2017 — "percebi que o Cacique é um negócio maravilhoso e estava deixando de conviver nesse espaço" —, Walter diz que conversou com Bira, entrou para o corpo diretivo do bloco e passou a reunir documentos, fotografias e acessórios para preservar a memória da instituição.

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'Você ainda vai ser responsável por cuidar da nossa história', profetizou o compositor Bira Presidente
Imagem: Fabiana Batista/UOL

'Uma dádiva'

Junto com outros colegas, Walter também produz entrevistas com antigos foliões, famosos ou anônimos, para registrar o que eles têm a contar. "O Bira tem muito isso: é uma espécie de Rei Arthur que reúne os cavaleiros da Távola Redonda. Ele te toca e lhe concede uma dádiva. Você tem de fazer jus àquela dádiva", afirma.

Com 62 anos de fundação, todos os anos — à exceção do período da pandemia — o Grêmio Recreativo Cacique de Ramos sai de Ramos, bairro do subúrbio carioca, para brincar o Carnaval no Centro do Rio.

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Para o diretor do Centro de Memória do Cacique de Ramos, Walter Júnior, 'você tem de fazer jus àquela dádiva'
Imagem: Fabiana Batista/UOL

O pai de Walter Júnior, Walter Pereira, 78, pulava o Carnaval na região central quando o viu passar pela primeira vez. "Assim que ele passou, combinei com um amigo que no ano seguinte íamos sair no Cacique. Mas quando o carnaval de 1964 chegou, estava de serviço no quartel. Então, pulei o muro pra desfilar", lembra, aos risos. Desde então, participou de todos os desfiles da história do bloco e foi vice-presidente da agremiação de 1990 a 2020.

O bloco se tornou não apenas uma das principais instituições culturais do país, como foi a força motriz para o movimento que revolucionou a forma de fazer samba, com os pagodes em sua sede (localizada em Olaria, não em Ramos) no fim da década de 1970.

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Imagem: Fabiana Batista/UOL

O Grupo Fundo de Quintal, formado por componentes do Cacique, introduziu novos instrumentos no ritmo, como o banjo, tantan e repique de mão. Foi também na quadra do bloco que Beth Carvalho se encantou com a turma de compositores que ali se reunia e passou a gravá-los incessantemente — emplacando nas rádios sucessos de Zeca Pagodinho, Luiz Carlos da Vila, Jorge Aragão, Dida, Noca da Portela, Almir Guineto e Arlindo Cruz.

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'Em 1964, estava de serviço no quartel. Então, pulei o muro pra desfilar', conta o vice-presidente Walter Pereira
Imagem: Fabiana Batista/UOL

Tradição familiar

A história oficial do bloco registra que três famílias tradicionais do Carnaval de Ramos se reuniram para fundar o Cacique, em 1961.

Da família Félix do Nascimento vieram os irmãos Ubirajara (o Bira Presidente), Ubirany e Ubiracy - os dois primeiros fundaram o Fundo de Quintal. Sereno, também músico do grupo, representava, junto com Chiquita, a família Oliveira. E havia ainda a família Aymoré do Espírito Santo.

Para os integrantes do Cacique, o encontro daqueles jovens com diferentes nomes de origem indígena não é coincidência, mas uma conjunção espiritual.

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Imagem: Fabiana Batista/UOL

Mitologia indígena

Também estão no campo espiritual as explicações dos foliões sobre a rivalidade com o bloco Bafo da Onça, surgida já no primeiro desfile do Cacique no Centro da cidade, em 1963. Quando o Cacique começou a entrar na avenida, foi engolido pelo Bafo da Onça. O bloco do Catumbi, zona central do Rio, era muito maior que o de Ramos e empurrou os componentes caciqueanos para os cantos da avenida.

"Parece uma coisa escrita pelo Superior. São símbolos perfeitos: um índio e uma onça. É o povo da mata. O índio tentando flechar a onça e a onça tentando comer o índio", compara Walter Júnior.

A briga por espaço perdurou ao longo da década de 1960, até o Cacique se tornar maior do que o Bafo. Reza a lenda que componentes do Bafo e do Cacique protagonizaram pancadarias terríveis ao longo dos anos. Mas um dos diretores de harmonia mais vitoriosos da história das escolas de samba (12 vezes campeão), Sidney Machado, 82, conhecido como Chopp, que participa do Cacique desde quando desfilava em Ramos, não se recorda de nada disso.

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'Os rapazes do Cacique queriam pegar as mulheres do Bafo e vice-versa', diz Sidney Machado, o Chopp
Imagem: Fabiana Batista/UOL

"O Cacique é uma paixão, cara. É uma família. Desfilo desde a fundação e nunca vi briga. O único problema era que os rapazes do Cacique queriam pegar as mulheres do Bafo e vice-versa. Pode ter rolado um desentendimento, mas briga, não", ameniza o diretor, cuja família também se engajou ao bloco.

Seu primo, o ator Eliezer Motta, o Batista da primeira versão da Escolinha do Professor Raimundo, é outro caciqueano convicto, famoso por levantar com as próprias mãos os componentes do bloco, como se fossem alçar voo.

Walter Pereira, que esteve em todos os desfiles do Cacique de Ramos desde 1964, é outro a refutar a lenda. "Nunca vi absolutamente nada disso no bloco. E na nossa quadra, em anos e anos de evento, nunca houve sequer uma ocorrência policial ", orgulha-se o ex-vice-presidente.

"É uma dessas narrativas interessantes que potencializa a própria identidade das agremiações. Público e imprensa fomentavam a rivalidade, mas a briga acontecia através de sambas de provocação", diz o filho, Walter Júnior.

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Imagem: Fabiana Batista/UOL

Nos pagodes da vida

Sejam de provocação ou de exaltação, as composições ao estilo Cacique tornaram-se uma fórmula de sucesso. "Vou Festejar", de Jorge Aragão, Dida e Neoci, clássico na voz de Beth Carvalho e cantada até hoje pelas torcidas no Maracanã, saiu de um concurso do Cacique. "Caciqueando", composição de Noca da Portela à moda Cacique, com gritos de guerra e refrões fáceis, surgiu fora do bloco e foi incorporada anos depois. Ambas são cantadas até hoje em blocos, pagodes e festas pelo Brasil.

Em 2012, o bloco de Ramos foi enredo da Mangueira. Nos desfiles do Grupo Especial deste ano, foi tema de um setor inteiro do Império Serrano, que contou a trajetória de Arlindo Cruz, ex-Fundo de Quintal. A Acadêmicos do Grande Rio, que teve Zeca Pagodinho como enredo, trouxe a bateria fantasiada metade de Cacique, metade de Bafo da Onça — e trouxe uma alegoria em referência à quadra, com direito a escultura da icônica tamarineira. A Imperatriz Leopoldinense, antes de iniciar seu desfile oficial, cantou 'Vou Festejar' e 'Caciqueando', levando o público ao delírio.

O Cacique também ganhou as telas. Está em cartaz o documentário "Andanças - Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho", de Pedro Bronz, que ao registrar a vida da madrinha de toda uma geração gloriosa de sambistas, retrata também um espírito de época do Cacique de Ramos, quando o pagode na quadra se tornou um movimento fundamental na música brasileira.

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Imagem: Fabiana Batista/UOL

Dança da chuva

Após dois anos de intervalo na pandemia, o Cacique de Ramos voltou às ruas em 2023. A previsão era de chuva forte, mas parte da população atribui a outro cacique o mérito sobre o tempo firme que se manteve no Rio quase o Carnaval inteiro.

A Fundação Cacique Cobra Coral afirma incorporar mediunicamente uma entidade da mata com poder de manipular o movimento das nuvens, espantando-as, quando convém, ou chamando chuva em época de crises hídricas. E a prefeitura do Rio aciona o "serviço" do Cacique Cobra — sem ônus para os cofres públicos, garante. O diálogo do além começou em 1988 com o então governador Moreira Franco, chegou a ser interrompido na gestão do ex-prefeito Marcelo Crivella, evangélico, mas voltou com o atual prefeito, Eduardo Paes.

A chuva prometida nos dias anteriores caiu sobre o centro da cidade no início da noite de terça-feira (21), logo no dia mais tradicional da passagem do Cacique. O temporal de verão pegou o bloco já concentrado, e o público que foi assisti-lo se dispersou por um momento. Mas os caciques se ajudaram.

Quando o bloco estava para entrar na avenida Chile, a chuva parou, a bateria começou a tocar e o público voltou para ver mais um ano em que o Cacique de Ramos canta para quem está no chão, no céu, ou na mata.