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'Minha Casa Minha Espera': como nasceu a vila 'fantasma' de Uberaba (MG)

Parado desde 2017, loteamento Alfredo Freire 4, na periferia de Uberaba (MG), virou vila abandonada, com 540 casas 90% prontas, mas nunca entregues à população - Gustavo Basso/UOL
Parado desde 2017, loteamento Alfredo Freire 4, na periferia de Uberaba (MG), virou vila abandonada, com 540 casas 90% prontas, mas nunca entregues à população
Imagem: Gustavo Basso/UOL

Gustavo Basso

Colaboração para o TAB, de Uberaba (MG)

28/02/2023 04h01

Era uma casa nada engraçada, já tinha teto, não faltava nada, mas ninguém podia morar nela, não.

Praticamente pronta, a casa é uma das 540 unidades espalhadas por 16 ruas no loteamento Alfredo Freire 4, em Uberaba, no Triângulo Mineiro. Com mais de 90% das obras concluídas, elas foram abandonadas por duas construtoras, deixando cerca de 2.000 moradores à espera da entrega da casa própria há dez anos.

Quem passa pela BR-050 observa ao longe uma cidade fantasma na periferia de Uberaba. As casas estão quase todas prontas, com pisos, esquadrias, aquecedor, portas e calçadas. Entretanto, hoje estão quase invisíveis sob a vegetação que avança e engole o que ainda não foi pilhado ou saqueado.

Mais de mil lotes da fazenda Tamboril, uma área de 633 mil metros², foram concedidos à construção do Alfredo Freire 4, dentro do programa Minha Casa Minha Vida, em 2012. Entretanto, as obras do "Alfredão", como ficou conhecido o conjunto, estão paradas desde 2017. "Somos motivo de chacota", conta a agente de endemia Daiana Barcelos, 37, uma das contempladas com uma das casas pela Cohagra (Companhia Habitacional do Vale do Rio Grande).

Daiana estava desempregada e cuidando de seus dois filhos gêmeos de um ano, quando viu seu nome na lista da Cohagra, em 2015. "Fiquei superanimada. Gastei um monte com cartório, correndo para entregar tudo, já que diziam que as obras estavam avançadas. Deviam ficar prontas em oito meses", lembra.

Os filhos, hoje com nove anos, continuam morando com ela num imóvel alugado por R$ 650 por mês. Se a casa ficasse pronta no prazo estipulado, em 2018 Daiana já teria quitado as 24 parcelas de R$ 120 que cabiam a ela. Não que o endereço fosse o ideal, pondera: "[É] longe de tudo, ao lado da BR e, para piorar, no final do terreno passa um trecho do rio Uberaba muito poluído, fedido. Para a população de baixa renda resta se adaptar ao que oferecem, né?"

Cidade fantasma dentro de Uberaba (MG) - Gustavo Basso/UOL - Gustavo Basso/UOL
Imagem: Gustavo Basso/UOL

Lugar errado?

"Desde a primeira vez que fui visitar o local, com as obras já paralisadas, percebi que daria errado", relata a estudante Lauriene Pires, 27, também contemplada com uma das casas do lote.

"Não tinha como ser habitável", conta ela, estagiária de pedagogia, referindo-se ao cheiro do córrego ao lado. Quem também questionou a localização foi o MPMG (Ministério Público de Minas Gerais), que recomendou evitar a construção ali, uma área de proteção permanente, devido ao declive elevado e à proximidade da área de várzea do rio Uberaba, diz o promotor Carlos Alberto Valera. Segundo a Cohagra, a escolha do terreno obedeceu a legislação ambienta da época.

No entanto, o projeto não parou: após licitação, a construção ficou a cargo da empreiteira El Global, de Uberlândia (MG), que abandonou a obra em 2017, após pedir aditivos de contrato para aumentar o preço além do valor contratado.

Cidade fantasma dentro de Uberaba (MG) - Gustavo Basso/UOL - Gustavo Basso/UOL
Imagem: Gustavo Basso/UOL

Depois de outra licitação, a construtora Resecom assumiu a obra paralisada, mas não a concluiu. "Apesar da nova licitação ter um valor mais alto que a inicial, a Resecom ganhou com um valor muito abaixo do viável a abandonou a construção, hoje em litígio com a Caixa", diz Valera. Com os abandonos, El Global e Resecom ficaram impedidas de operar novos projetos com a Caixa Econômica Federal, que ficou responsável pela área, onde mantém uma pequena equipe de seguranças, insuficiente para preservar as 540 casas já erguidas, mas nunca entregues.

Mulheres como Lauriene e Daiana são perfis prioritários do Minha Casa Minha Vida: chefes de família e em situação de vulnerabilidade social — na faixa 1, extinta por Jair Bolsonaro (PL) e recentemente retomada por Lula (PT), o financiamento é destinado a famílias cuja renda é de até R$ 2.640.

Lauriene tinha acabado de se divorciar à época e, com uma criança de colo, mal podia esperar pelas chaves da casa. "Ao menos ainda sou jovem. E como fica a situação das idosas, que também são grupo prioritário e morreram esperando a casa?", indaga. De acordo com a Prefeitura de Uberaba, 12 pessoas que estavam na lista de beneficiários para moradia morreram.

Cidade fantasma dentro de Uberaba (MG) - Gustavo Basso/UOL - Gustavo Basso/UOL
Imagem: Gustavo Basso/UOL

Lendas urbanas

Se pudesse escolher, Lauriene diz que preferiria pegar o valor da casa do Alfredão para comprar outra morada em qualquer outro bairro de Uberaba. Já Daiana conta que, embora se sinta lesada, se mudaria para o loteamento fantasma — as sucessivas prorrogações só aumentam as lendas urbanas na cidade.

"Dizem que somos loucos de nos mudar para lá, que vai cair tudo, que o esgoto vai invadir", relata. "Se me garantirem que nada disso vai acontecer, vou pra lá sem pensar duas vezes, mas apenas com essa certeza."

Desde 2020, o MPMG e o Ministério Público Federal vêm conversando com os envolvidos. Foi pedido um estudo para determinar se a conclusão das obras é viável ou se é melhor demolir tudo (com prejuízo de ao menos R$ 35 milhões, de acordo com as previsões em contrato). A Caixa abriu licitação até esta terça-feira (28) e, após a escolha, o estudo deve começar na segunda semana de março, com prazo de 90 dias para conclusão.

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Imagem: Gustavo Basso/UOL

Segundo a Cohagra, o déficit habitacional de Uberaba atualmente é de 1.800 famílias, sem contar aqueles já selecionados para o Alfredão. Caso as 540 famílias voltem para a fila, o aumento será de 30%.

Em 14 de fevereiro, o governo federal anunciou a retomada de obras paradas do Minha Casa Minha Vida. Nunca habitado, o Alfredão é uma delas, embora não conste na lista de obras de habitação paralisadas ou inacabadas da Caixa. Segundo o TCU (Tribunal de Contas da União), o banco possui 45 obras de unidades habitacionais sob sua responsabilidade atualmente; entre elas, 21 paradas, o que indica subnotificação.

Ao TAB, a Caixa não respondeu por que o loteamento Alfredo Freire 4 não consta na lista de obras paralisadas. Em nota, informa que está acompanhando "a contratação e [a] realização dos estudos, para retomar as tratativas". "O processo de retomada de obras, de acordo com as regras do programa, passa pelo levantamento dos serviços necessários, chamamento público de empresas interessadas, análises técnicas das empresas e das propostas, além da autorização do ministério gestor."