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'Vai ter legenda?': público faz imersão teatral em idioma inventado em SP

Proposta não é aquela dos improvisos vocais do gramelô, mas contar uma história a partir de um idioma inteiramente inventado pelo grupo -  Paula Halker/Divulgação
Proposta não é aquela dos improvisos vocais do gramelô, mas contar uma história a partir de um idioma inteiramente inventado pelo grupo Imagem: Paula Halker/Divulgação

Ingrid Fernandes Ruela

Colaboração para o TAB, de São Paulo

14/03/2023 04h01

Luzes apagadas, silêncio no teatro. É noite de quinta-feira (2) em São Paulo. Um pé inquieto balança a arquibancada toda. A tensão cessa apenas quando, por trás de uma cortina vermelha, dois bonecos de mão anunciam cantarolando o começo de um espetáculo.

Nesse prólogo, os bonecos de mão estabelecem um pacto com a plateia. A peça, que fica em cartaz no Galpão do Folias até dia 19 de março, poderia ser falada em grego, mas o que estava para ser encenado ali não seria uma trama clássica. A plateia é convidada a apreciar a textura, os sons, os gestos e, sobretudo, a visão de mundo contida em uma nova língua.

Peça com idioma inventado - Paula Halker/Divulgação - Paula Halker/Divulgação
O prólogo inicial: pacto de entendimento com o espectador
Imagem: Paula Halker/Divulgação

Sem 'gramelô'

Antes mesmo de a peça começar, no café do teatro, espectadores conversavam sobre o que seria assistir a uma peça em uma língua que ninguém domina. "Será que a gente vai conseguir entender?", perguntava uma jovem de cabelos longos para o amigo ao lado. "Relaxa, vai ter legenda", tranquilizou o rapaz.

Em "Blaihait! E outras perguntas para inventar um idioma", a proposta não é aquela dos improvisos vocais do "gramelô" — técnica usada no teatro para contar histórias a partir de entonações sonoras, com caretas e onomatopeias inventadas na hora. O Coletivo Kariênin se propõe a algo mais ambicioso: contar uma história a partir de regras gramaticais, fonemas, grafias, verbos e substantivos de um idioma inventado por eles mesmos.

A ideia é discutir a visão de mundo contida em uma língua.

Fluentes e estranhas, as falas ganham sentido com a legenda em português projetada no alto da cena. Ao redor, por entre os sorrisos, a plateia parecia embarcar na ideia: tá bom, essa é uma peça em um idioma inventado, eu aceito isso.

No enredo, uma criança chamada Blaihait ("Palavras") nomeia tudo o que vê no fundo do Lago do Caos, as águas que tudo contém — numa espécie de mito fundador do idioma. Então entram em cena as personagens Zoôbena, uma artesã de cadeiras interpretada por Sofia Maruci, e Kuliía, uma pessoa obcecada por escrever um sonho, vivida pela atriz e dramaturga Giu de Castro.

Peça em idioma inventado - Paula Halker/Divulgação - Paula Halker/Divulgação
A atriz Sofia Maruci: dez meses de pesquisa com a ajuda do linguista Guilherme Oliveira, da USP
Imagem: Paula Halker/Divulgação

De acidente à construção do mundo

A ideia surgiu de um incidente casual, conta Giu de Castro. "Um dia eu digitei uma coisa aleatória no teclado do computador, e saiu a palavra 'Sifuhodjib', que foi inclusive o primeiro nome do projeto. Eu olhei e falei Sifuhodjib. Falei, repeti, e pensei: nossa, essa palavra significa: faça silêncio", conta ela.

Elaboraram o projeto e, contemplados por um financiamento do ProAC (Programa de Ação Cultural) para obras inéditas, o Coletivo Kariênin, fundado por ela e alguns colegas em 2017, partiu para uma fase de pesquisa. Para ela, contou com a ajuda do linguista Guilherme Oliveira, da USP (Universidade de São Paulo). Ao longo de quase dez meses, o grupo mergulhou em repertórios do coreano, japonês, italiano e outras línguas para desenvolver o idioma próprio de "Blaihait!".

Conforme o repertório ganhava escala, o grupo assimilou a ideia de que as palavras não são apenas uma ferramenta para descrição do mundo, elas são parte integrante dele. "Ele [o professor Oliveira] falava muito que o idioma é um modo como você constrói e pensa o mundo também", diz o diretor e iluminador Marcus Garcia.

As palavras foram ganhando significado a partir dos sentidos. "Às vezes, brincando, falávamos uma palavra que remetia a alguma coisa do inglês, e a partir disso surgia um significado parecido", lembra a dramaturga e atriz.

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O Blaihait: quatro gêneros gramaticais distintos, para além da dualidade masculino e feminino
Imagem: Paula Halker/Divulgação

Gêneros gramaticais

O português tem dois gêneros gramaticais, divididos em seres masculinos e femininos. Este mecanismo binário tem sido alvo de acaloradas discussões sobre política pela sociedade nos últimos anos, é questionado na peça. Na língua nova criada pelo Coletivo Kariênin são quatro os gêneros gramaticais, divididos a partir de outros princípios.

"O primeiro é das coisas visíveis, que são as realidades concretas, uma montanha, uma pedra, o vento. Para essas usamos o artigo 'o'", explica Giu. "O segundo é o gênero das coisas invisíveis, abstratas, como os sentimentos, os pensamentos, uma lembrança. Para essas usamos 'a'."

"Então vem o gênero das coisas impermanentes, que são os seres vivos, as pessoas, os gatos, as árvores, que, por serem impermanentes são pronunciadas com um sopro de ar, que a gente escreve com dois colchetes ('[ ]'). Por fim, o último é o gênero das coisas trabalhadas, uma cadeira, que vem da madeira, tem um projeto de engenharia, um trabalho humano. Para identificar essas coisas, usamos o 'y'. Essa é uma forma de enxergarmos o trabalho contido nas coisas, o garfo vem da montanha, mas tem uma coisa que faz a montanha virar um garfo, que é o trabalho humano", conclui a autora do texto.

Peça em idioma inventado - Paula Halker/Divulgação - Paula Halker/Divulgação
Sofia Maruci e Giu de Castro em cena: estratégias para engajar o corpo na expressão das palavras
Imagem: Paula Halker/Divulgação

Outros tempos verbais

O passado, o presente e o futuro também ganharam uma forma nova, expressa por gestos e pela grafia. O tempo presente, sublinhado no texto, é marcado por uma palma ou um tapa no corpo. O passado aparece em itálico e é indicado com um arco da testa para frente com a mão, referência àquilo que já foi visto. E o futuro, por nunca ter sido visto, aparece grafado em negrito, e é mostrado pelas atrizes no ato de cobrir os olhos, como se os limpasse.

São gestos, explica a atriz Sofia Maruci, 28, que reiteram a função do corpo no idioma. "Eu não posso conjugar esse verbo de uma maneira inerte, eu tenho que mobilizar esse gesto. Então, de alguma forma, isso é uma tentativa de calcar esse idioma no nosso corpo o máximo possível", conta ela. "Essa foi uma das estratégias que a gente usou para engajar o corpo de alguma maneira."

Sem palavras defintivas

Ao fim do espetáculo, ecoam na plateia as palavras faladas e escritas aprendidas com Blaihait!: princípio, tudo, cada coisa, lago, criança, nomear, voz, terra das coisas visíveis, terra das coisas invisíveis, coisas impermanentes, cadeira, trabalho, matéria-prima, tempo, certeza.

Poucos parecem dispostos a partilhar suas impressões. "Preciso respirar primeiro", diz uma mulher alta, de franja e cabelos lisos. Outra espectadora, que também não quis ser nomeada, comentou sobre a dificuldade em escolher ler a legenda ou ver a atuação.

E a própria reportagem se debate com as chamadas Palavras Definitivas ("Blaiswh") que descreveriam essa experiência.