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Para locutor, cantoria evangélica em supermercado pedia paz em Jacarepaguá

Yuri Eiras

Colaboração para o TAB, do Rio

24/03/2023 08h02

Uma senhora apalpava laranjas-peras e cantava, a plenos pulmões, "tua bondade me seguirá, Senhor". Ao lado dela, um casal escolhia cebolas e fazia coro aos versos. Cantavam em frente ao expositor de maçã gala e também na gôndola de iogurtes, na seção de resfriados. Às dezenas, homens e mulheres entoavam alto o sucesso gospel "Bondade de Deus", enquanto tentavam dar tração às rodinhas malucas dos carrinhos de supermercado.

Aconteceu no último sábado (18), numa unidade do supermercado Mundial na Freguesia — sub-bairro cujo nome soa apropriado para comércios —, em Jacarepaguá, zona oeste do Rio. A cena de homens e mulheres cantando louvor no setor de hortifrútis foi registrada em vídeo pelo locutor do mercado, Vicente Santos, 45.

"Tinha acabado de chegar para trabalhar e de repente surgiram vozes muito altas atrás de uma gôndola de produtos. Percebemos que eles estavam cantando alto. Chegamos perto e quando paramos para prestar atenção, era um louvor. Foi tomando uma proporção muito grande", conta o locutor.

O vídeo, publicado originalmente no TikTok, viralizou no app e em outras redes. No perfil de Vicente no TikTok, foram mais de 26 mil curtidas e mais de 2 mil comentários. O conteúdo gerou elogios e muitas críticas: os outros clientes são obrigados a conviver com isso dentro do supermercado? Glauber Furtado, 53, gerente do Mundial da Freguesia, onde a cena aconteceu, garante que não são, não.

"Os supermercados Mundial são uma rede com 80 anos de tradição no Rio de Janeiro, respeitando todas as religiões. Nossas lojas não reproduzem qualquer tipo de manifestação religiosa, para que seja um ambiente confortável e democrático", afirma o gerente.

O episódio ocorreu por volta de 11h, horário de fim do culto matinal. A estrada de Jacarepaguá, onde o supermercado está localizado, possui igrejas evangélicas em sua extensão. Há, por exemplo, uma Universal do Reino de Deus do outro lado da calçada do supermercado, uma Internacional da Graça de Deus a menos de 300 metros e uma igreja batista um quarteirão à frente.

No momento da cena, Vicente conversava com o pastor da igreja de onde vieram os fiéis. Segundo ele, após o fim de um culto, o grupo resolveu ir ao supermercado, no clima de adoração. Alguém começou a cantar, outro reforçou o coro e, então, uma seção inteira do supermercado vibrava no mesmo tom, entre gritos de glória a Deus e aleluia. "Me senti bem porque era contagiante", diz Vicente, evangélico.

A música não tocou no sistema de som do supermercado, vale dizer. Foi cantada à capela pelos fregueses. "Tenho 22 anos de empresa foi a primeira vez que presenciei algo do tipo. Já tivemos outros acontecimentos inusitados, como pedido de casamento e festa de aniversário, mas um coro foi a primeira vez", conta Glauber, o gerente.

Louvor contra confronto de facções e milícias

No vídeo é possível perceber que um homem se dirige ao locutor, que está gravando, e afirma: "Só Deus para trazer paz para esse lugar, meu irmão". Uma mulher, bem ao lado, reforça. "Só ele". O pedido de intervenção divina no bairro tem explicação na segurança pública.

Desde o fim do ano passado, traficantes e milicianos disputam favelas das zonas norte e oeste do Rio. Jacarepaguá é mais dominada por milícias que qualquer outro lugar na cidade. O cenário principal do conflito é a Gardênia Azul, onde há quase três décadas o controle é miliciano.

Mas, em janeiro, a área foi invadida pelo Comando Vermelho, numa trama complexa: alguns milicianos teriam trocado de lado e entrado para o tráfico de drogas, tomando a favela por dentro, em uma espécie de "golpe". O conflito tem causado mortes, inclusive de moradores. Há denúncias de que a população fora até proibida de chamar o bairro pelo nome completo - o CV teria rebatizado apenas de Gardênia, sem o azul.

Perto dali, Rio das Pedras, considerado o berço da milícia, também foi atacado pelo CV no início do ano. A polícia investiga um caveirão, veículo blindado da Polícia Militar, que teria sido pichado com a inscrição "CV", em plena área onde Adriano da Nóbrega, morto em 2020, teria ingerência.

Na zona norte, o morro do Fubá, entre os bairros de Cascadura, Campinho e Piedade, também é disputado por traficantes e milicianos. A polícia tem indícios de que milicianos se juntaram a traficantes do Terceiro Comando Puro para barrar o Comando Vermelho.

Pois o bairro da Freguesia, onde ocorreu a adoração no supermercado, fica exatamente no meio do caminho entre a Gardênia Azul, Rio das Pedras e o Morro do Fubá, todos os lugares mais conflagrados atualmente na cidade. Não está fácil para quem mora por ali. Vicente, autor do vídeo dos fiéis no Mundial, entendeu a cena como um clamor por paz.

"Enquanto registrava o vídeo com meu celular, entendi na mesma hora que aquilo era sobre o que tem acontecido no bairro da Freguesia e nas localidades vizinhas. As pessoas que estavam ali confirmaram isso. Acho que elas apoiaram e louvaram não por serem todas elas cristãs, mas porque o bairro, neste momento, está precisando de paz", diz Vicente.

"Sou trabalhador, mas se eu for visitar um familiar numa comunidade e descobrirem que sou de uma área de facção diferente daquele lugar a que estou indo, posso ser morto. No Rio de Janeiro estamos divididos", completa.