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Da zona leste à 'cracolândia': a rota das novas drogas sintéticas K em SP

Claudia Castelo Branco

Colaboração para o TAB, de São Paulo

29/03/2023 04h01

Na manhã de 3 de março, após dias de campana investigando suspeitos, a delegada Vanessa Guimarães e cinco agentes da Polícia Civil bateram à porta de uma casa na zona leste de São Paulo. Ana*, 29, atendeu e autorizou a entrada dos policiais. Um deles viu alguém fugindo pela porta dos fundos, que dá para uma avenida movimentada.

Era uma "casa-bomba": um depósito tinha apenas uma mesa de plástico coberta por entorpecentes, 2.500 embalagens e cinco celulares. "É onde a droga é preparada e embalada; sai dali para ser vendida em pontos do tráfico", conta a delegada. Desde janeiro como titular do 32° DP de Itaquera, Vanessa passou 13 anos no 5° DP, no centro. Ela já viu de tudo, mas, até esse dia, nunca tinha apreendido as chamadas drogas "K".

K é uma droga sintética, uma mistura de substâncias químicas com solvente, feita em laboratórios improvisados. É conhecida como K2 (alusão à segunda montanha mais alta do mundo depois do Everest), K4, K9 e K12, além de referências a outros picos (Godwin-Austen, Chogori, Dapsang ou Qogir Feng). O PCC a chama de "spice". Como é líquida, pode ser borrifada em cigarros, ervas, papéis e até em outras drogas. Fontes da SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública de São Paulo) dizem que estão tratando o combate à K como prioridade.

Quatro dias mais tarde, Vanessa fez mais uma apreensão. Dessa vez em uma biqueira, também na zona leste, que vem sendo tratada como novo foco do tráfico na capital. Caio*, 21, carregava cigarros borrifados com K9. Caio e Ana foram autuados em flagrante — ele responde ao processo em liberdade; ela, ré primária e grávida, recebeu liberdade condicional no dia seguinte à prisão.

Droga K apreendida pela Polícia Civil de São Paulo - Reprodução - Reprodução
Droga K apreendida pela Polícia Civil de São Paulo
Imagem: Reprodução

Outra apreensão aconteceu no Campo Limpo, na zona sul: uma "casa-bomba" com um laboratório, equipamento de pesagem, lacres e mais de 16 mil invólucros de K2, crack e cocaína, entre outras substâncias.

Ao longo de 2022, agentes do Denarc (Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico) fizeram 20 ações e apreenderam 12 kg de drogas K na capital e na região metropolitana de São Paulo. Em 2023, só nas dez ações realizadas até fins de março, foram apreendidos 15 kg — é um número alto, considerando que uma folha de papel tamanho A4 (que pesa até 10 g) pode contar até 1.200 "selos" (doses da droga).

Especialistas ouvidos pelo TAB preferem não citar o preço da K nas ruas para não estimular o mercado. Em 2022, a droga rendeu mais de R$ 1 milhão por mês para organizações criminosas, segundo a estimativa do Ministério Público de São Paulo.

Cartaz no laboratório mostra os diferentes tipos de drogas mais encontrados nas apreensões na Grande São Paulo - Flávio Florido/UOL - Flávio Florido/UOL
Cartaz no laboratório mostra os diferentes tipos de drogas mais encontrados nas apreensões na Grande SP
Imagem: Flávio Florido/UOL

'Marketing'

"Os números estão aí", diz o diretor do Denarc, Ronaldo Sayeg, referindo-se ao tráfico de drogas "cozinhadas" em instalações "bastante incipientes". Nos bastidores, policiais contam que estão preocupados com certa "romantização" das drogas ilícitas produzidas em laboratório, citando séries como "Breaking Bad" como exemplo. Também criticam a expressão "maconha sintética" — tecnicamente incorreta, destaca Sayeg, pois o princípio ativo não é o THC (tetrahidrocanabinol, principal psicoativo da cannabis).

"É mais marketing para ampliar a aceitação e atrair novos usuários", avalia Vanessa. "Novidade aguça curiosidade", acrescenta outra fonte policial.

Sayeg diz que as nomenclaturas K2, K4, K9 e K12 não têm a ver com a concentração de THC: "É um mito". Ao analisar gotas das drogas apreendidas, a Polícia Científica identificou a K como "canabinoide sintético": uma combinação artificial que tenta imitar os efeitos de outras drogas, como maconha, LSD, heroína e cocaína.

Desde agosto de 2020, os peritos emitem laudos sobre drogas sintéticas traficadas no estado de São Paulo. Eles utilizam o equipamento FTIR para examinar as moléculas e determinar se a substância é entorpecente ou não. Antes disso, a polícia fazia apreensões, mas a Justiça não conseguia avançar no julgamento de casos pois não era possível provar que a mistura era, de fato, um entorpecente.

K4 apreendida nos presídios de São Paulo - Divulgação/SAP - Divulgação/SAP
K4 apreendida nos presídios de São Paulo
Imagem: Divulgação/SAP

A nova droga circulou primeiro dentro dos presídios. Como é borrifada em papel, o contrabando acontecia com certa facilidade, principalmente na pandemia de covid-19: com as visitas suspensas, muitos materiais foram entregues pelo Correios às penitenciárias. Isso fez com que a SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) proibisse a entrada de papel sulfite nas unidades prisionais paulistas no início de 2022.

Entretanto, ainda há tentativas de levar a droga para dentro: no dia 13 de fevereiro, por exemplo, o CDP de Diadema encontrou 1.369 fragmentos de K4 em duas folhas de papel escondidas na palmilha de uma chuteira encaminhada a um dos detentos.

Além dos presídios, a K foi ganhando as ruas. Na "cracolândia", uma adolescente, usuária de crack, experimentou e morreu, conta um guarda municipal que trabalha há 25 anos na região. "Nenhum traficante deve querer a K2 porque dá prejuízo", opina.

O efeito é chocante: o TAB teve acesso a um vídeo de uma criança após consumir a K, com braços "congelados", pés contraídos e rosto desfigurado, andando com dificuldade até cair nas ruas da "cracolândia".

No começo de fevereiro, foram presos dois suspeitos identificados num grampo telefônico — na conversa, foi citada uma ordem do PCC para suspender a venda de K na "cracolândia", na região central, pois os efeitos estariam chamando atenção da polícia e de órgãos de saúde, atrapalhando os negócios. "Não é interessante para o traficante que o usuário morra", observa uma fonte.

Além deles, foram presos 11 suspeitos de tráfico na "cracolândia", após longa investigação do Denarc com uma ação coordenada com o Ministério Público. No dia 17, outras folhas com selos da droga foram apreendidas no Cambuci, no centro. O delegado Jair Ortiz, titular da 1ª Delegacia Seccional, também está apreensivo com o que vê nas ruas. A droga K, diz ele, "cozinha o cérebro". "O usuário vira um zumbi."

*Nomes fictícios