Prédios de Campos do Jordão são 'assombrados' por almas e youtubers
Na entrada da cidade, um sanatório abandonado tem chão e paredes cheios de símbolos satânicos. No Alto do Capivari, em um hotel fechado há anos, quem se aventura escuta passos e vozes onde não há ninguém.
Campos do Jordão está cheia de atrações turísticas, principalmente para o inverno. Em nenhum guia, contudo, aparecem esses locais mal-assombrados da "Suíça brasileira". Mas os canais de suspense do YouTube são assíduos frequentadores deles.
Rondando o número de 1 milhão de inscritos, o grupo KBC Caçadores de Fantasmas, por exemplo, esteve nesses dois edifícios, mas só conseguiu entrar e filmar em um deles. "O segurança do hotel foi babaca e chamou a polícia", contou João Paulo dos Santos, o JP. "Quando os policiais chegaram, nos reconheceram, falaram que eram fãs, tiraram foto com a gente e contaram sobre um monte de lugares com fantasmas na cidade."
Já Luan Daniel, dono do canal Lolo Bolado, com mais de 420 mil inscritos, conseguiu entrar no hotel Mont Blanc porque foi lá meses antes. "O seguidor que passou a história pra mim avisou que tinha uma porta aberta. Só encontrei fenômenos estranhos lá. Nada de caseiro ou vigia."
Com uma pegada mais histórica e menos aterrorizante, David Mendes, do canal Histórias Perdidas, entrou também nas dependências do hotel fantasmagórico, em hospitais abandonados e numa mansão em ruínas de lá que foi frequentada por nazistas, incluindo Josef Mengele (1911-1979), conhecido como "Anjo da Morte" por fazer experimentos em humanos no campo de concentração de Auschwitz.
Passado doentio
"Vô matá vocês", "saiam enquanto é tempo", "mãe, vem me buscar" são algumas das pichações nas paredes do antigo hospital, que fica ao lado do Centro Municipal de Saúde. Isso sem falar nas inscrições com pentagramas e o número 666. O banco de concreto do lado de fora do hospital tem a inscrição "Nosso Clube Sanatorinhos". Pelo chão estão espalhados tubos para amostra de sangue e fichas de prontuário médico.
O curioso é que um passado de dor e sofrimento está escondido atrás das fachadas alpinas de lá. No final do século 19, a tuberculose era responsável por quase 70% das mortes por doenças infecciosas no Brasil, quando a chamada "climatoterapia" entrou em voga na Alemanha e Suíça.
Com a construção de sanatórios e da estrada de ferro, a partir de 1914, a localidade começou a se desenvolver pelas supostas propriedades curativas do ar frio, seco e limpo da região. A maioria das internações era voluntária, mas há registros de pessoas que foram levadas à força. O doente que não tinha como arcar com o tratamento muitas vezes ficava pelas pensões baratas ou ruas da cidade.
Tudo mudou com a popularização de antibióticos como a estreptomicina, a partir dos anos 1940, e os hospitais de montanha caíram em popularidade. Muitos dos sanatórios fecharam, e alguns foram convertidos em hotéis para a nova vocação local: o turismo de temporada.
Caixa de espíritos
Formado em Guaratinguetá (SP), o grupo KBC Caçadores de Fantasmas explorou vários locais do Vale do Paraíba, área cheia de fazendas históricas do Ciclo do Café, para depois expandir para a vizinha Campos do Jordão.
Eles visitam os lugares cheios de parafernálias para detectar presenças paranormais. Tem medidor de ondas eletromagnéticas, câmeras térmicas, bolinha de toque (que acende quando há vibrações) e um aparelho chamado "spirit box", classificado como um "detector de fantasmas".
"No hospital, entramos em contato com os espíritos dos pacientes e também com um enfermeiro, que falou muitos palavrões, e acabamos cortando do vídeo que postamos. Ele foi racista também, xingando o Josenir", conta JP — Josenir Américo é o único negro entre os quatro integrantes do grupo.
"A gente não tinha muita informação do lugar, mas deu para sentir o clima pesado, onde as pessoas sofreram", conta JP. Os caça-fantasmas usaram botas de borracha e luvas para evitar contato com material espalhado pelo piso.
Eles não precisaram de autorização para entrar lá, porque o acesso é fácil partindo de um estacionamento logo ao lado, mas iniciaram a exploração pedindo permissão para "as almas presentes por ali". "O seguidor que nos contou do local acompanhou a gente na gravação. Ele quase infartou quando uma porta do lado se fechou sozinha. E olha que não tinha vento nenhum."
'Necrofone'
Os caça-fantasmas têm mais medo dos vivos que das almas penadas. "No começo era mais loucão, fazia muita bosta", confessa JP. O caso mais assustador foi quando entraram na mansão do estilista, apresentador e deputado federal Clodovil Hernandes (1937-2009) em Ubatuba (SP). "A gente tinha a informação de que estava vazia. No meio da gravação, apareceu um cara com um facão, xingando e querendo briga. Saímos correndo. Tinha um maluco tomando conta de lá."
JP diz que hoje em dia eles fazem uma investigação prévia, não entram em casas em que há gente morando e buscam autorização dos proprietários (com a promessa de não dar localização nem detalhes que comprometam a futura venda do terreno).
Com o sucesso do canal, esses caça-fantasmas já vivem da monetização e tem orçamento de viagens para ir a localidades sombrias do interior de São Paulo e Minas Gerais.
Entre as bugigangas de que dispõem está um aplicativo chamado "necrophonic", com microfone para ouvir os mortos. JP argumenta que a prova final dos aparelhos paranormais foi quando ouviram a voz de Felipe Narciso, integrante do grupo caça-fantasma que morreu há três anos. "Ele perguntou da mãe, e todos reconheceram sua voz", conta.
Fora o entretenimento, JP argumenta que o canal ajuda a dar um futuro para os "espíritos materialistas" que, segundo ele, estão muito apegados ao plano que não é mais deles. "Eles foram muito ligados aos locais em que viveram, não gostam que ninguém entre e mexa lá. Mas, na verdade, eles querem atenção e um encaminhamento."
Nazistas e trapistas
David Mendes começou uma pesquisa em bibliotecas e arquivos para escrever um livro de ficção ambientado em Tremembé, cidade do Vale do Paraíba conhecida pelos presídios de criminosos famosos, entre eles Suzane von Richthofen, Roger Abdelmassih, Alexandre Nardoni e Elize Matsunaga.
E ele encontrou histórias que muita gente não queria que viessem à tona. Como os campos de concentração de prisioneiros alemães em Guaratinguetá e Pindamonhangaba, ou uma rede de túneis de mosteiro trapista em Tremembé.
"Me apelidaram 'o louco de Tremembé' por tudo que revelo da região. Esses locais teriam interesse turístico, mas os políticos locais são contra", diz Mendes. À reportagem do TAB, a prefeitura de Campos do Jordão respondeu que todos os estabelecimentos relatados na reportagem são particulares, estão fora de sua ingerência e que não tem nenhum plano de aproveitamento de seu potencial turístico.
Além de gravar no hotel Mont Blanc, Mendes esteve na antiga Santa Casa de Campos do Jordão, que também está em ruínas e onde há relatos dos vizinhos "ouvirem vozes".
Outro local horripilante é a Mansão Vanzoni, que teria sido frequentada por nazistas foragidos e simpatizantes. "É um local muito pesado. Como está abandonado, muitas pessoas entravam para se drogar."
Mesmo com um certo clima de suspense em seus vídeos, Mendes prefere um viés mais histórico. "As pessoas querem mais se assustar que se informar. Mesmo assim, gosto de trazer mais cultura do que sensações físicas para quem me assiste."
Explorar o esquecido
Luan Daniel conta que sua primeira "exploração" foi aos 13 anos. Ele atravessou o quintal e entrou na residência do fundo, após uma batida policial. "Cresci em uma comunidade pobre de Jundiaí e tinha muita criminalidade. Encontrei muitos vestígios de que ali era uma boca de fumo."
Mal sabia ele que, anos depois, iria viver disso, monetizando "investigações" em edificações em escombros. Ele começou seu canal do YouTube fazendo desafios bem ao gosto do público infanto-juvenil. Mas deu uma guinada nos conteúdos quando percebeu que o conteúdo com mais visualizações de 2018 foi a entrada em uma casa devastada. "Tomei um sustão quando descobrimos um morador de rua lá, e ele quis brigar."
As reações, as caras de medo e as brincadeiras com os cagaços durante os vídeos são uma das marcas do canal de Luan. "Gravo o tempo inteiro para pegar todos os momentos espontâneos. Só pauso quando acaba uma bateria ou o cartão de memória. Tenho pavor de rato e morcego, e eles sempre aparecem", revela. Como alguns locais são longe e no meio do mato, Luan leva até 25 baterias para garantir energia para seus equipamentos — incluindo também os apetrechos paranormais.
O momento mais assustador, porém, foi quando policiais chegaram com truculência dentro de uma casa em ruínas. Hoje em dia, ele diz que só entra em locais autorizados ou que estejam vazios há muito tempo, sem que precise pular muro ou forçar uma entrada. "Já fui ameaçado de processo, mas tirei o vídeo do ar para o proprietário se acalmar."
Em Campos do Jordão, entrou no hotel Mont Blanc ("parece que você está dentro de um filme de terror fora do Brasil; é o lugar mais incrível que gravei") e uma mansão desabilitada após um incêndio ("parecia que tinha parado no século passado, gravamos tudo, mas não tiramos nada do lugar nem brincamos com a situação para respeitar quem viveu por lá").
A estratégia de Luan é chegar com poucas informações sobre os locais para interagir com as pistas encontradas e imaginar o que aconteceu ali. "Já gravei em um hospital antigo. Quando minha mãe viu o vídeo, falou que eu tinha nascido ali", relata.
Técnico em TI (tecnologia da informação), Luan chegou a ter quatro empregos ao mesmo tempo para se sustentar. Há dois anos, vive da monetização de seu canal.
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