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Orquestra de Laptops de Brasília une o algoritmo ao ritmo do público

Formado em música, Eufrasio Prates, o euFraktus X, é o desenvolvedor do software e regente da BSBLOrk - Augusto Coelho/Divulgação SESI
Formado em música, Eufrasio Prates, o euFraktus X, é o desenvolvedor do software e regente da BSBLOrk Imagem: Augusto Coelho/Divulgação SESI

Maíra Valério

Colaboração para o TAB, de Brasília

15/04/2023 04h01

Em Taguatinga, região administrativa a 19 quilômetros de Brasília, conhecida pelo comércio e por ser um fervilhante polo cultural, farmácias, bares e estúdios de tatuagem dividem espaço na praça da CNF com a Galeria Olho de Águia — centro underground fundado pelo fotojornalista Ivaldo Cavalcante.

Num palco com luzes azuladas, rodeado de artistas munidos de laptops, está Eufrasio Prates, o euFraktus X, conduzindo os movimentos em frente à sua própria tela. O homem esguio, de cabelos longos e barba branca, visual que poderia ter saído de uma criação do escritor britânico Neil Gaiman, é o regente de uma orquestra peculiar: a BSBLOrk — Orquestra de Laptops de Brasília, um coletivo de música algorítmica interativa experimental.

"Os agentes inteligentes que vimos desenvolvendo e testando nos últimos anos são musicistas improvisadores virtuais, baseados em modelos relativamente simples de Inteligência Artificial [IA]", explica euFraktus X, desenvolvedor do que chama de "agente algorítmica" Marceline.Markov.unChained.

Marceline é uma IA treinada por músicas que vão de clássicos como Bach, Mozart e Beethoven a contemporâneos como Schoenberg, Webern e Alban Berg, passando por artistas populares como Jimi Hendrix, King Crimson e Pink Floyd.

A partir deste banco de dados, a agente improvisa livremente, com alta imprevisibilidade. "Em nossa abordagem, essas músicas originais são reduzidas a arquivos MIDI, que possibilitam a realização do treinamento em computadores pessoais, assim permitindo que invoquemos musicistas virtuais híbridos, tanto no sentido de mesclarem o estilo de compositores de épocas diversas, quanto no de integrarem o digital ao analógico", acrescenta o regente.

Na apresentação na galeria em Taguatinga, projeções de formas pontiagudas dançam na parede ao ritmo dos inquietantes sons produzidos pelo grupo. Numa mesa próxima ao palco, Renato Matos — músico, poeta e pai da rapper Flora Matos — toma uma cerveja com amigos e aponta com uma batata-frita as projeções, ao lado de letreiros antigos, pôsteres de bandas de rock e eletrodomésticos vintage.

Orquestra de Laptops de Brasília - Augusto Coelho/Divulgação SESI - Augusto Coelho/Divulgação SESI
A BSBLOrk convidou o público a conhecer o software desenvolvido pelo regente e tocar o 'instrumento virtual'
Imagem: Augusto Coelho/Divulgação SESI

O futuro logo aqui

Uma semana depois, a orquestra entra em ação novamente, no SESI Lab, novíssimo centro de arte, ciência e tecnologia na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. É a estreia de uma noite intitulada Night Lab, cuja programação conta com nomes como Juçara Marçal e Kiko Dinucci.

Em formato, desta vez, de performance interativa, a BSBLOrk convida o público a mexer nas máquinas e conhecer o software desenvolvido por euFraktus X. Ele conta que o software começou como Sistema Holofractal de Transdução de Música e Imagem (ou HTMI, sigla em inglês para Holofractal Transducer of Music and Image System) e evoluiu para Suíte de Transdução Interativa Holofractal (ou HITS, Holofractal Interactive Transducer Suite).

Atualmente em sua terceira geração, o HITS3 conta com aplicativos variados e sob a licença Creative Commons (cc), abertos para quem se interessar na internet. O sistema basicamente captura movimentos de quem está em frente à tela, por meio da câmera, e os transforma em música. "Descendo a mão aqui, está tocando. E sai ali", exibe Eufrasio, movendo-se em frente ao laptop e produzindo sons que saem dos alto-falantes conectados aos laptops.

A imersão estético-sonora primeiro assusta e depois empolga o público pela facilidade por trás da complexidade: qualquer pessoa, de fato, pode tocar esse instrumento virtual. "A maior vantagem das novas ferramentas tecnológicas é permitir que uma mente musical, versada ou não em teoria musical tradicional, consiga se expressar sem grandes amarras", entusiasma-se euFraktus X. "Só isso já nos faz felizes, a despeito do ódio despertado nos guardiões acadêmicos dessas tradições."

O resultado pode soar incômodo e um tanto quanto estranho para ouvidos mais tradicionais, mas o regente defende a experiência. "É frequente ouvirmos depoimentos de pessoas que diziam ter mudado ou ampliado seu conceito de música depois de nos ouvir", diz. "Somos um coletivo de artistas interessados em explorar a plasticidade dos sons."

Um banquinho, um violão e o PC

euFraktus X começou a estudar composição em meados dos anos 80, tendo como mestres o professor uruguaio Conrado Silva, pioneiro da música eletroacústica na América Latina, e o musicólogo e compositor alemão Hans-Joachim Koellreutter, ambos radicados no Brasil. "Sempre me fascinou a riqueza de possibilidades de criação de novos sons com o uso dos computadores", conta o regente.

Nascido na Bahia, foi durante a adolescência que o jovem Eufrasio começou a dar aulas de violão e a se interessar por tecnologia. Graduou-se em música, em São Paulo, na década de 1990, e entrou em contato com os primórdios da linguagem de programação multimídia MAX/MSP/Jitter.

Após uma trajetória acadêmica que incluiu ainda um mestrado em comunicação e um doutorado em artes na Universidade de Brasília, deu início à pesquisa que o levaria ao HITS3 e à orquestra de laptops, fundada por ele em 2012.

"Passei anos brincando com a estética do impreciso do Koellreutter e das técnicas eletroacústicas do Conrado, quando o crítico Sérgio Basbaum escreveu um artigo sobre meu CD Música Holofractal", conta euFraktus X. "Era uma crítica positiva, mas trazia um apontamento incômodo: minha produção ainda estava presa a armadilhas vanguardistas e tinha um baixo grau de diálogo com a audiência."

A partir dessa crítica, o envolvimento da audiência tornou-se cada vez mais essencial para ele. "Compus peças para ouvir comendo chocolates, a partir de sons de vídeos pornográficos, usando sons de rios e descargas de banheiro e pedindo para audiência deixar celulares ligados para incorporar suas campainhas à música que estava sendo tocada", diz.

A partir daí começou a sair do nicho restrito dos interessados por música experimental e tecnologia. "Improvisamos livremente sobre as infinitas possibilidades de manipulação desses sons ao vivo. Isso funciona sempre? Fica sempre lindo? É sempre interessante? Claro que não", admite o artista, com a sinceridade de quem se abre para o impreciso, sem esperar que a tecnologia domine o mundo.

* Colaborou Devana Babu