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Meu bisavô foi terrorista? Por que a Shindo Renmei causa mal-estar até hoje

Do TAB, em São Paulo

20/04/2023 04h00

Kamegoro Ogasawara viveu na Vila Mariana, zona sul de São Paulo, na década de 1940. De dia, seu negócio era tinta. À noite, era sangue.

Na Tinturaria Oriente, comandava tanques de tingimento de tecidos. No endereço, um sobradinho na rua Vergueiro, também organizava os "tokkotai", jovens japoneses que caçaram compatriotas por "desonrar" o imperador Hirohito ao admitir a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Entre 1946 e 1947, 23 imigrantes japoneses foram mortos e outros 147 ficaram feridos no Brasil.

Nos documentos históricos, seu nome às vezes é grafado "Kamegoro Ogassawaro" e "Tamegoro Ogasawara" (outras, com "Z" em vez de "S"). Um dos documentos é do serviço secreto do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), que diz que o tintureiro orientava os assassinos a, uma vez presos, alegar que foram movidos por "sentimentos patrióticos" e "ardor" da juventude, mas nunca confessar que eram da Shindo Renmei, a "Liga do Caminho dos Súditos" — também datilografada nos arquivos antigos como "Shindo Remmay". Um documento da liga dizia ainda que os autores dos assassinatos só fizeram o que fizeram pois "lhes ferveu o sangue jovem".

"O segredo é tentar todas as versões possíveis; às vezes, só se acerta na grafia errada", diz um dos funcionários do Arquivo Público do Estado de São Paulo que me ajudou na busca por informações de Kamegoro, um lavrador de Kumamoto que embarcou no porto de Kobe e desembarcou em Santos (SP), em 1934, aos 44 anos. Viajou junto de um filho de 19 anos e uma filha de 15, casada com um jovem de 26, segundo outro documento, do Museu da Imigração.

A busca tinha outro interesse além do jornalístico: assim como Kamegoro, também sou uma Ogassawara (desta vez, com dois "S"). No fim, não descobri se o articulador dos "tokkotai" era talvez um tio-bisavô distante. No entanto, isso não dissipou o mal-estar tantas vezes citado por nikkeis ao lembrar a história da Shindo Renmei. Um mal-estar que tem a ver com o fato de milhares de imigrantes japoneses terem se deixado levar por uma fake news na década de 1940.

Muitos nipodescendentes só descobriram que os antepassados participaram da famosa liga nacionalista ao ler "Corações Sujos", do jornalista Fernando Morais, publicado em 2000. Foi o caso, por exemplo, da cantora Fernanda Takai, cujo avô e bisavô são citados no fim do livro. Outros passaram a escavar a árvore genealógica em busca de pistas — muitas vezes, com tropeços nas grafias diferentes, fato comum para os imigrantes que vieram do outro lado do mundo, com documentos em kanji, e se instalaram no Brasil.

Kamegoro & Massateru

O jornalista Jorge Okubaro, 76, é filho de Massateru Hokubaru (1905-1966) — o "H" a mais também é fruto das transliterações distantes entre o japonês e o português.

Trecho do relatório de investigação do Dops sobre a Shindo Renmei - Arquivo Público do Estado de São Paulo - Arquivo Público do Estado de São Paulo
Trecho do relatório de investigação do Dops sobre a Shindo Renmei
Imagem: Arquivo Público do Estado de São Paulo

Filiado à Shindo Renmei, Massateru foi preso em abril de 1946. Dormiu no xadrez de Araraquara (SP), onde morava, depois foi levado de trem à capital, desembarcou na estação da Luz e foi levado escoltado ao Dops. Foi fichado como "Massatero Hokubara".

Na declaração ao Dops, Massateru disse que participava da Shindo Renmei, contribuindo financeiramente, e que o Japão venceu a guerra pois, desde pequeno, aprendeu que "o Japão nunca se rendeu". A informação é citada no livro "O Súdito", de Jorge Okubaro, lançado em 2006.

A história da Shindo Renmei foi um episódio coberto por um "manto de esquecimento", cuja lembrança predominante é a dos assassinatos, diz o autor. O pai de Jorge não matou ninguém, mas respondeu a um processo — à época, foi o maior da história jurídica do país, tanto pelo número de páginas quanto pelo número de réus. "Não consigo ver meu pai lavar a honra de sua pátria com o sangue de seus compatriotas", assinala o jornalista, na sua casa na Vila Mariana, zona sul de São Paulo.

O Dops investigou o caso entre abril e junho de 1946. Ao fim, pediu a expulsão de 80 japoneses e o indiciamento de outros quase 400. Kamegoro, acusado de ser mandante de assassinatos, foi um dos 80 — entretanto, ninguém foi de fato expulso; advogados entraram com recursos, adiando a ação ao longo da década de 1950, até que, no fim de 1956, quando muitos já tinham cumprido dez anos num presídio na Ilha Anchieta (SP), o então presidente Juscelino Kubitschek comutou as penas e os liberou.

Massateru, por sua vez, foi um dos réus. Em junho de 1949, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidira que os homicídios deveriam ser levados a júri, e as demais acusações à 1ª Vara Criminal de São Paulo.

Réu na 1ª Vara Criminal de São Paulo, Massateru deveria ter recebido uma intimação para depor em março de 1954, mas, como tinha ido morar em Santo André, não recebeu a correspondência — como muitos que trocaram de endereço à época. Massateru, prossegue o livro, só depôs no Palácio de Justiça em dezembro de 1954. Declarou que não participou de atos terroristas e que a Shindo Renmei só queria "estimular entre seus congregados amor à pátria natal". Em 1958, o caso foi encerrado e ele, junto dos outros acusados, foi liberado.

Yasunaga, Mizobe & Morais

Autor de "Corações Sujos", Morais conta que já ouviu reclamações de quem é citado e de quem não é citado no livro, por diversos motivos.

Família de Ikuta Mizobe, 1º assassinado pela Shindo Renmei - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Família de Ikuta Mizobe, 1º imigrante assassinado pela Shindo Renmei
Imagem: Arquivo pessoal

Entre os presos mandados para a Ilha Anchieta estavam Junji Shimizu, Noriyoshi Sakamoto, Kanesaku Maeda e Shiguematsu Miyazaki. "Eles eram de Promissão", diz o agricultor Kazunori Yasunaga, 76, que nasceu, cresceu e viveu a vida toda num sítio na cidade do interior paulista, "berço da colonização japonesa" no Brasil. "'Corações Sujos' não tem nenhum trecho sobre Promissão", lamenta.

A cidade, que hoje conta cerca de 41 mil habitantes, ficou dividida na década de 1940: de um lado estavam os "makegumi", que eram tratados como "derrotistas" por admitir a derrota do Japão; de outro, os "kachigumi", os "vitoristas" que diziam que o arquipélago venceu. Tal foi o racha que dois "kaikan" (associações de imigrantes) foram fundados, fato inusitado — a Associação Esportiva de Promissão era frequentada por derrotistas, e a Associação Recreativa Esportiva de Promissão, por vitoristas. "Makegumi", diz o agricultor, "é como corinthiano: vai no estádio e, se acontece de perder, queima a bandeira".

Aos Yasunaga não interessava se o Japão ganhou ou perdeu — o importante era preservar o "yamato damashii" (espírito japonês), diz Kazunori. Na década de 1970, a TV nipônica NHK visitou o sítio para entrevistar a família. Yasunaga "Shindo Renmei no shidousha" (os líderes da Shindo Renmei), lembra, com certo orgulho.

Filho de Kazunori, Ossamu Yasunaga, 47, soube da Shindo Renmei depois da NHK. Até então, pensava que as tensões eram uma rixa por uma praça: nessa narrativa, o lado makegumi "queria enterrar a história" japonesa na cidade; o kachigumi queria preservar a Praça Shuhei Uetsuka (1876-1935), homenagem a um dos imigrantes pioneiros, que viajou a bordo do Kasato Maru, em 1908. A praça existe até hoje.

Aiko Higuchi, 102, também não é citada no livro de Morais. Filha de Ikuta Mizobe, o primeiro imigrante morto pela Shindo Renmei, ela contou a história aos cinco filhos, cinco netos e seis bisnetas, diversas vezes ao longo dos anos, com dor e revolta.

Se confrontar o passado é difícil para descendentes de vitoristas, para descendentes das vítimas da Shindo Renmei é especialmente doloroso. "Tenho orgulho dele", diz Roberto Katsuo, 78, filho de Aiko e único neto que Ikuta pôde pegar no colo. "Na época tão difícil que ele viveu, ele preferiu dizer a verdade."