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Carrefour mantém empresa de segurança que agrediu casal negro em Salvador

Luísa Carvalho

Colaboração para o TAB, de Salvador

18/05/2023 04h01Atualizada em 26/08/2023 09h14

O estado das cicatrizes nos braços e pernas de Jeremias de Jesus Capistrano, 19, indicam as duas semanas que se passaram desde que ele e a esposa, Jamile Ramos de Lima, 27, ambos negros, foram espancados e ameaçados de morte por seguranças no estacionamento do Supermercado Big Bompreço — unidade da Rede Carrefour no bairro de São Cristóvão, em Salvador.

Do último dia 3, quando aconteceu o crime, até quarta-feira (17), a rede de supermercados francesa não havia avançado no desligamento da CZ Segurança Patrimonial, empresa terceirizada responsável pela segurança do grupo, nas outras 17 unidades do Bompreço na capital baiana.

Segundo o Carrefour, a terceirizada deixou de atuar no supermercado de São Cristóvão desde o dia 7. "O processo de retirada nas demais unidades será concluído nas próximas semanas", afirmou a rede, em nota ao TAB, sem especificar quando o contrato será encerrado por completo.

Histórico de violência

Em suas redes sociais, a CZ Segurança afirma ser "empresa certificada pela PF/MJ". As siglas se referem à Polícia Federal e ao Ministério da Justiça. Na cartela de parceiros constam o Grupo Carrefour e o Atakadão Atakarejo.

O Atakarejo foi cenário de outro caso violento envolvendo jovens negros. Em abril de 2021, Bruno Barros, 29, e Yan Barros, 19, tio e sobrinho, foram entregues a traficantes por seguranças do supermercado de Amaralina após serem flagrados roubando cinco quilos de carne. Os homens foram julgados e assassinados pelo tráfico. Seus corpos foram encontrados dias depois no porta-malas de um carro. Na época, a Justiça acatou a denúncia do MP e realizou a prisão dos envolvidos no caso.

Em publicação datada de agosto de 2020, o Atakadão Atakarejo já aparece como parceiro da CZ no Instagram. Procurado, o Ministério Público da Bahia não soube informar se há vínculos entre a empresa e o episódio de 2021 ou se há alguma associação entre o que aconteceu no início do mês no Bompreço e o caso de dois anos atrás. Os processos correm em sigilo.

Jamile Lima em Salvador - Reprodução/UOL - Reprodução/UOL
Vídeo registra momento em que Jamile Lima é agredida em supermercado
Imagem: Reprodução/UOL

Flagrantes de racismo

A CZ Segurança Patrimonial já trabalhava nos supermercados Big antes da aquisição da rede pelo Grupo Carrefour, em junho de 2022. Neste mesmo ano, em fevereiro, três garotos negros, com idades entre 14 e 19 anos, foram trancados em uma sala no Bompreço do Salvador Shopping, no bairro de Caminho das Árvores — publicações no Instagram mostram que a parceria foi firmada em agosto de 2020.

Além da agressão física aos adolescentes, os seguranças chamaram os jovens de "pretos favelados" e disseram: "Preto não pode ter sonho algum, tem que pegar arma para trocar tiro". Antes de liberá-los, os funcionários da terceirizada teriam dito que matariam o trio se o encontrasse na rua.

A CZ não atendeu aos pedidos de entrevista da reportagem. Por telefone, o advogado da empresária Maria Eduarda Mandelli De Almeida, sócia-administradora da CZ, informou apenas que sua cliente "não comenta sobre o assunto".

A defesa de Jeremias e Jamile suspeita que a mulher seja uma "laranja" e que a empresa pertença, na verdade, a um major da Polícia Militar, Bruno Von Czekus Soares, comandante da 33ª CIPM até dezembro de 2022.

Ainda que o nome de Maria Eduarda esteja vinculado à empresa desde sua abertura, em 2017, ela é uma empresária do ramo de decoração. À frente da Duda Mandelli Decor, e, antes, da Mood Home Decor, mantinha um perfil no Instagram voltado ao seu trabalho de designer de interiores. A página foi desativada nesta terça-feira (16).

No site da PM, o nome do major aparece como "coordenador administrativo da área de superintendência de telecomunicações". Questionada, a assessoria da Polícia Militar da Bahia não respondeu à reportagem — assim que o fizer, o texto será atualizado.

'Pagos pra matar quem furta'

A agressão recente no Bompreço de São Cristóvão segue modo similar aos casos ocorridos nas empresas do grupo BIG na cidade — com ameaças de morte às vítimas e referências à polícia.

Dos seis funcionários da CZ que participaram das agressões ao casal, quatro portavam armas de fogo. Jeremias e Jamile foram abordados quando saíam do Bompreço. O casal de desempregados levava consigo quatro pacotes de leite em pó furtados para alimentar a filha de Jamile, de 1 ano, de quem Jeremias se considera pai.

Durante a ação, Jeremias foi chamado de "viado", "preto" e "desgraça" enquanto os homens davam murros e chutes em sua cabeça e costela. Jamile também foi agredida. Jeremias relatou uma tentativa de enforcamento, comprovado por laudo do IML (Instituto Médico Legal).

A vítima afirma ter escutado dos seguranças que eles iriam tirar fotos dos dois e enviar aos policiais do bairro, para que os agentes os matassem quando os vissem. Ainda segundo Jeremias, os funcionários da CZ disseram que "são pagos pra matar quem furta em mercado" e que, se outras pessoas não tivessem visto as agressões, eles iriam "sumir [com] o casal".

No último dia 7, o Carrefour afirmou à imprensa que a denúncia do caso à Polícia Civil de Salvador partiu da empresa. No entanto, a instituição afirma que teve conhecimento do crime por meio dos vídeos que circularam na internet — e que não houve registro do caso da 12ª Delegacia Territorial de Itapuã, unidade mais próxima do local.

A rede expressou também desejo de prestar apoio de saúde e psicológico às vítimas. O advogado de Jeremias, Walisson Reis, afirma que nada foi feito nesse sentido.

Histórico do Carrefour

Os casos de ataques físicos a pessoas negras não são novidade em unidades do Grupo Carrefour. Em 2020, João Alberto Silveira Freitas, 40, foi assassinado pelo segurança de um supermercado da empresa no Rio Grande do Sul.

Também em Salvador, em outro hipermercado do grupo, o Atacadão, a mãe de um menino negro de 8 anos denunciou racismo em uma unidade do bairro de Cajazeiras. O menino teria sido abordado por uma funcionária do estabelecimento por segurar um pacote de macarrão instantâneo. Ao ver a criança com a mercadoria, a mulher o perguntou se ele iria pagar pelo produto ou roubá-lo.

Após a publicação desta reportagem, a assessoria de imprensa do Carrefour entrou em contato para informar que a CZ Segurança Patrimonial "já foi notificada da rescisão completa de todo o contrato de prestação de serviços" e que o processo deverá ser concluído "em curto prazo".

A empresa também afirmou ter registrado Boletim de Ocorrência, encaminhado à 12ª Delegacia Territorial - Itapuã no dia 7, eletronicamente — o que justificaria a demora para constar no sistema.