Topo

'Sem tempo pro Alzheimer': Adelço, pintor letrista, mantém ofício em SP

O pintor letrista e cartazista Adelço de Almeida Junior, 75, fez nome nas ruas de SP e agora entra nas melhores galerias da cidade - Matias Oliveira/UOL
O pintor letrista e cartazista Adelço de Almeida Junior, 75, fez nome nas ruas de SP e agora entra nas melhores galerias da cidade Imagem: Matias Oliveira/UOL

Carla Castellotti

Colaboração para o TAB, de São Paulo

02/06/2023 04h01Atualizada em 03/06/2023 16h01

Um cartaz anunciando um serviço, o para-brisa de um carro com seu valor de venda, um caminhão onde se lê "transportes e mudanças". Este é o trabalho de Adelço de Almeida Junior, 75, pintor letrista, cartazista, arte-finalista e — por que não? — designer.

Seu Adelço, como é conhecido, pinta letras há mais de cinco décadas — um trabalho que extrapolou o comércio paulista e coloriu também galerias de arte da cidade. Referência numa profissão em vias de desaparecer, depois do computador e da inteligência artificial, o traço de Adelço compôs a obra de artistas brasileiros como Regina Parra, Mayana Redin e Avaf.

Quando não existia a impressão gráfica ou a plotagem em grandes formatos, Seu Adelço já pintava e bordava com seus largos pincéis, riscando carros de Fórmula 1, fazendo cartazes anunciando promoções nos comércios e até peças gráficas para publicidade. Na tela do seu celular ele mostra as últimas encomendas que atendeu: entre elas, a fachada do Ça-Va, novo restaurante do chef e apresentador Érick Jacquin.

Seu Adelço letrista - Matias Oliveira/UOL - Matias Oliveira/UOL
Veterano em ação: Adelço pintou fachadas, letreiros e até o logo do carro de Fórmula 1 de Emerson Fittipaldi
Imagem: Matias Oliveira/UOL

'Pé Quente' na profissão

Nascido em Sorocaba, filho de outro Adelço — este, eletricista — Adelço Junior veio para São Paulo ainda bebê. O pai havia conseguido uma vaga na empresa Nitro Química, no bairro de São Miguel Paulista, e se tornaria um conhecido militante comunista, que presidiu o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria Química de São Paulo entre 1957 e 1964.

O filho, leitor voraz de gibis, conta que "no primário, quando as professoras me pediam para fazer bonecos de palitinhos, eu já fazia letras". Já moleque, desenhava os personagens Zorro, Batman, Superman." Mas o desenhista autodidata só ganhou uma profissão depois que conheceu um letrista argentino radicado em São Paulo.

Seu Adelço letrista - Reprodução - Reprodução
Letreiro do restaurante Ça-Va, do chef Jacquin: obra de Adelço
Imagem: Reprodução

"O Guilherme tinha uma oficina na Rua Dr. Zuquim, em Santana, e era chefe da manutenção dos 'carros' da Lusitana, aquela que tinha o logo 'O mundo gira, a Lusitana roda', sabe?" O colega lhe deu a primeira oportunidade. "Ele me ensinou umas manhas de letra, espacejamento, distribuição."

Adelço se lembra até hoje do primeiro job como pintor letrista: "Era o começo da loteria esportiva. Na rua São Caetano, no bairro da Luz, não me esqueço, pintei a Loteria Esportiva Pé Quente", lembra, aos risos.

Seu Adelço letrista - Matias Oliveira/UOL - Matias Oliveira/UOL
Caminhões de mudança: primeiro emprego foi na Lusitana, do slogan 'O mundo gira, a Lusitana roda'
Imagem: Matias Oliveira/UOL

'Trabalhar livre'

Adelço conta que depois disso aprendeu ainda mais com José Uehara, o Zé Japonês. "Ele era cenarista da Globo e daltônico, mas pintava muito bem. A primeira vinheta do Fantástico foi ele que fez", conta o letrista, que logo foi contratado por uma agência de publicidade. "Eu fazia o pestape [a montagem do trabalho gráfico em um anúncio, antes de ser fotografado e reproduzido]".

Depois, trabalhou na empresa Ver Comunicação Visual — "pintei o logo do carro de Fórmula 1 do [piloto Emerson] Fittipaldi" —, cartazista nas Lojas Pirani, importante varejista de eletrodomésticos em São Paulo nos anos 1950 e 1970, e no Centro de Convenções do Anhembi, onde desenhava os logos das empresas participantes de feiras e eventos por lá.

Só então resolveu trabalhar por conta própria. "Nunca fui de trabalhar de empregado, não. Sempre preferi trabalhar livre", ensina. "Tem que ter liberdade pro raciocínio, senão fica bitolado. Isso aqui [aponta para a própria cabeça] tem que estar sempre ativo. Assim, não dá tempo pro Alzheimer."

Seu Adelço letrista - Helder Ferreira/Sesc Avenida Paulista - Helder Ferreira/Sesc Avenida Paulista
O mural executado por Adelço de Almeida para o artista plástico Avaf, no Sesc Avenida Paulista
Imagem: Helder Ferreira/Sesc Avenida Paulista

Artes e reinvenções

Hoje, aos 75 anos, o senhor de boina e jaleco sujo de tinta leva seu carrinho onde se lê "Atelier de pinturas" por onde anda. Antes da pandemia, ele ainda mantinha seu ponto — uma portinha na rua Major Sertório onde sua oficina funcionou por uma década. "Toda a minha freguesia é aqui no Centro", diz.

Mesmo aposentado por idade, Seu Adelço mantém seu trabalho — "é um complemento, né?". E, para se atualizar, o veterano letrista aprendeu a usar a tecnologia. "Faço arte final no computador também, sei mexer no [programa de design gráfico] corelDraw. Aprendi depois de velho, fuçando no YouTube."

Nesse processo de reinvenção, Seu Adelço também descobriu clientes em busca do seu ofício analógico. Um deles, o artista plástico Eli Sudbrack, o Avaf, o contratou para a execução de uma obra-mural na retrospectiva "Alterações Vividas Absolutamente Fantasiosas", em cartaz até 30 de julho no Sesc Avenida Paulista.

Seu Adelço letrista - Matias Oliveira/UOL - Matias Oliveira/UOL
Realizado, Seu Adelço apenas lamenta: 'Essa minha profissão ninguém quer aprender mais'
Imagem: Matias Oliveira/UOL

"O principal trunfo do trabalho do Adelço é a perfeição na execução e na transposição para grandes formatos", elogia Avaf, para quem o letrista é "o último remanescente de sua linhagem de profissionais, uma tristeza."

Em sua casa no bairro do Itaim Paulista, Seu Adelço guarda uma coleção de telas com paisagens e figuras humanas de sua lavra. "Algumas eu faço a partir de ideias da minha cabeça, outras reproduzo imagens que vi", explica.

Casado com Elisabete, que conheceu aos 14 anos e virou companheira de vida, e pai de três filhos adultos, ele mostra na tela do celular o "bebê de casa": uma vira-latas de porte médio. A única frustração que o letrista deixa perceber é a de não ter encontrado um discípulo para o seu ofício.

"Essa minha profissão ninguém quer aprender mais", lamenta. "Veio o computador e a rapaziada nova não se interessou em aprender. Não tenho nenhum aprendiz."