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'O rio morreu': poluição de refinaria da Petrobras prejudica pesca no RJ

O pescador Gilciney Gomes, 64, com seu barco no canal Caetano Madeira: "Não tem mais nada lá para a gente" - Camille Lichotti/UOL
O pescador Gilciney Gomes, 64, com seu barco no canal Caetano Madeira: 'Não tem mais nada lá para a gente' Imagem: Camille Lichotti/UOL

05/06/2023 04h01

Depois de quase 40 anos em atividade, o pescador Gilciney Gomes, 64, praticamente desistiu de encontrar peixes no rio Iguaçu, em Duque de Caxias (RJ), na Baixada Fluminense. Hoje ele cata latinhas e plástico para sobreviver e complementa a renda fazendo bicos como ajudante de pedreiro. "O rio morreu, não tem mais nada lá para a gente", lamenta.

Gilciney, que é presidente de uma associação de pescadores em Caxias, continua navegando para denunciar a situação dos rios da região, poluídos por chorume, esgoto não-tratado e rejeitos industriais do polo petroquímico instalado no bairro de Campos Elíseos.

No entorno da Reduc (Refinaria Duque de Caxias), da Petrobras, o rio Iguaçu tem coloração avermelhada e exala um cheiro forte de química. Segundo os pescadores, a refinaria despeja diariamente óleo e substâncias químicas em quatro pontos diferentes do Iguaçu. Esses resíduos são descartados em canaletas com coloração amarelada e vermelha, e não são identificados pela refinaria. A Petrobras nega os despejos.

Quem navega perto da Reduc relata náuseas e tontura por causa do odor. Vários pescadores dizem ter passado mal nos barcos e tiveram que ser socorridos por colegas. Entre os que ainda tentam encontrar peixes nos rios Iguaçu e Sarapuí, é comum a ocorrência de problemas de pele "misteriosos", como irritações, feridas e manchas. A suspeita deles é de que isso esteja relacionado à poluição industrial.

"No rio Iguaçu já teve até boto, hoje só tem cheiro de produto químico", afirma o pescador Gilciney, que publica vídeos nas redes sociais mostrando a coloração estranha da água. Quando precisa entrar no rio, ele volta para casa com coceira e caroços na pele.

O pescador não procura ajuda médica para tratar essas irritações constantes. Argumenta que é difícil conseguir atendimento nos hospitais da região, e ele não pode perder dias de trabalho. "Eu só passo álcool para não infeccionar e volto a trabalhar de novo. A gente aqui vive por um milagre de Deus".

Crime sem justiça

Enquanto a Petrobras protagoniza um embate público com o Ministério do Meio Ambiente para extrair petróleo na foz do rio Amazonas, a empresa é ré num processo criminal por danos ao meio ambiente no entorno da Reduc. A ação, movida pelo Ministério Público Federal em 2011, se arrasta na Justiça há 12 anos e parte dos crimes de que a Petrobras é acusada já prescreveu. Agora, o processo corre risco de prescrever por inteiro.

Além da empresa, dois gerentes da Reduc foram acusados pelo MPF de poluição do Rio Iguaçu e por dificultar a ação fiscalizadora do poder público no trato de questões ambientais. Os dois crimes, somados, teriam pena de até quatro anos de prisão, além de multa.

O crime de dificultar a ação fiscalizadora prescreveu em 2020. Segundo a acusação do MPF, a empresa e seus dirigentes haviam criado obstáculos à fiscalização do Inea (Instituto Estadual do Ambiente) e não notificaram o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) sobre os vazamentos.

Tanto a Petrobras quanto os dois dirigentes da empresa ainda podem ser julgados pelos danos ambientais causados não só ao rio Iguaçu, mas à Baía de Guanabara e ao manguezal que margeia a região "mediante depósito irregular de efluentes líquidos contendo resíduos com óleos, graxas, fenóis, nitrogênio amoniacal e sólidos sedimentáveis" em nível superior ao permitido.

As audiências terminaram em julho de 2022, mas ainda não houve decisão.

Nos últimos 12 anos em que o processo correu na Justiça fluminense, a Reduc continuou causando danos ambientais à região, como comprovou um laudo pericial de 2019, anexado ao processo a que o TAB teve acesso.

O documento constatou que os efluentes da Reduc despejados no rio Iguaçu ainda continham óleos, graxas e amônia acima do nível permitido. Nos efluentes também havia benzeno, tolueno, naftaleno e várias outras substâncias que causam danos à saúde humana, incluindo alguns tipos de câncer e distúrbios na visão, audição e no controle dos músculos.

O outro lado

Em nota, a Petrobras nega os despejos de óleo e produtos químicos e afirma que todo o efluente é tratado dentro das normas da legislação ambiental: "São realizadas mensalmente cerca de 580 análises laboratoriais". A companhia afirma também que "para a Petrobras o respeito a vida e ao meio ambiente são valores fundamentais". A nota não menciona o processo do MPF.

O procurador da República Julio José de Araújo Junior, que acompanhou o processo contra a Petrobras entre 2018 e 2021, explica que em casos de crimes ambientais é difícil definir a responsabilidade das ações, o que atrasa os processos e pode levar à prescrição dos crimes.

"A situação é paradoxal porque existe uma atividade que gera muitos recursos, mas, ao mesmo tempo, uma realidade muito dura de acesso a direitos básicos na região. E existem poucos canais independentes de denúncia", acrescenta ele.

Além de ser processada, a Petrobras já assinou vários TACs (Termos de Ajustamento de Conduta) pela atuação da Reduc, incluindo um de 2011 que previa investimento de R$ 1,1 bilhão para reduzir a poluição do ar e dos rios por metais pesados.

A Reduc, refinaria da Petrobras, em Campos Elíseos: empresa é ré por crime ambiental - Marco Antônio Teixeira / UOL - Marco Antônio Teixeira / UOL
A Reduc, refinaria da Petrobras, em Campos Elíseos: empresa é ré por crime ambiental
Imagem: Marco Antônio Teixeira / UOL

'Questão de saúde pública'

Embora não seja a única, a Reduc é a maior poluidora industrial da Baía de Guanabara, segundo a ONG Baía Viva. Atualmente, é a refinaria da Petrobras que mais processa gás natural e produtos derivados do petróleo no país. Instalada em 1961 em Campos Elíseos, a Reduc atraiu outras empresas do ramo petroquímico para o local. No complexo industrial existem hoje cerca de 30 empresas petroquímicas, incluindo terminais da Petrobras, e unidades de gigantes privadas como a Braskem.

"A Reduc trouxe desenvolvimento econômico e dinheiro para a cidade, mas isso não se traduziu em condições adequadas de vida, especialmente para a população do entorno", afirma o biólogo Sebastião Raulino, que estudou a refinaria no doutorado.

De tão grande, o polo parece uma cidade desenvolvida dentro do bairro pobre de Duque de Caxias. O bairro em que está instalada sofre com a falta de saneamento básico, e os corpos hídricos recebem também chorume do lixão de Jardim Gramacho, que contribuem para a poluição local.

No caso dos rejeitos industriais, o que preocupa especialistas é o tipo de substância lançada nos rios e no ar pela queima de compostos químicos. Não há concentrações seguras de exposição ao benzeno para humanos, por exemplo. Em pequenas quantidades, a substância encontrada nos efluentes da Reduc causa tontura, dores de cabeça, tremores, entre outros sintomas. Em grandes quantidades, pode levar à morte.

O pescador Aulentério Pacheco, 76, atualmente trata uma psoríase nos joelhos. Ao se consultar num hospital público de Xerém, o médico lhe disse que o problema de pele estava relacionado à infecção pela atividade nos rios poluídos. "Aqui o que mais tem é pescador com essas coisas que a gente pega na água", diz ele.

Pescador Aulentério Pacheco, 76, mostra infecção no joelho - Camille Lichotti/UOL - Camille Lichotti/UOL
O pescador Aulentério Pacheco mostra feridas no joelho
Imagem: Camille Lichotti/UOL

Aulentério mora às margens do canal Caetano Madeira, por onde os pescadores acessam o rio Sarapuí e Iguaçu. Ele tem quatro barcos que hoje estão abandonados porque não há mais peixe e nem pescadores interessados em comprá-los. Aulentério só navega pelos rios da região quando precisa pescar para comer. Ele diz que não vale mais a pena tentar tirar o sustento dali.

As pequenas embarcações na beira do canal e as redes que já estão se desfazendo são o que restou da tradicional comunidade pesqueira da região do Sarapuí. Ele e seus colegas ainda lembram os nomes de antigos pescadores que morreram por doenças "misteriosas". "Eu tive amigos que morreram com umas infecções estranhas. Aqui a gente morre e ninguém fala nada, ninguém sabe o que é. É câncer, é infecção, ninguém explica", diz.

Em 2017, uma pesquisa realizada pela Fiocruz com 190 adultos residentes em Campos Elíseos, onde fica o polo petroquímico, mostrou que 33% deles tinha alterações hematológicas compatíveis com a contaminação por benzeno. Desses, a maioria morava no entorno das indústrias e todos declararam não ter acesso à água tratada nem a saneamento básico.

Ao comparar as taxas de leucemia de 19 municípios do estado do Rio, a pesquisa mostrou que Duque de Caxias apresentou uma das taxas mais elevadas, o que reforça a alta exposição da população residente a substâncias cancerígenas. A avaliação coincide com o relato dos moradores sobre casos de câncer e doenças de pele, inclusive em crianças — cenário que já é naturalizado pela população local.

Além do lixo e esgoto da região, os lençóis freáticos também são contaminados pela atividade petroquímica. Como parte da população do bairro não tem água encanada e se abastece em poços, toda a região está sujeita à contaminação por essa via.

Segundo o pesquisador Sebastião Raulino, é preciso realizar mais estudos epidemiológicos para medir a contribuição da Reduc em tais problemas. "Infelizmente temos poucas pesquisas nessa região, mas podemos afirmar que a presença dessa indústria petroquímica como um todo afeta diretamente a saúde da população", afirma. "A presença da Reduc se tornou uma questão de saúde pública."

Pescadores mostram redes guardadas em Duque de Caxias - Camille Lichotti/UOL - Camille Lichotti/UOL
Redes guardadas dos pescadores Aulentério Pacheco (à esq.) e Gilciney Gomes: 'Os peixes acabaram'
Imagem: Camille Lichotti/UOL

Baía ameaçada

A situação dos pescadores e comunidades tradicionais de Caxias pode piorar ainda mais com a etapa 4 do pré-sal, cujo objetivo é produzir e escoar petróleo e gás natural do pré-sal da Bacia de Santos.

O atual projeto da Petrobras prevê a construção de portos na Baía de Guanabara, o que pode afetar comunidades de pesca artesanal na região por causa do incremento do tráfego marítimo, como mostrou um relatório de impacto ambiental elaborado pela empresa CTA.

"A principal ameaça para a Baía de Guanabara hoje é a expansão da indústria petrolífera, da qual a Reduc é mãe", diz o ambientalista Sérgio Ricardo, co-fundador do movimento Baía Viva. Os ambientalistas avaliam que a nova investida da empresa transformaria a baía numa "planta industrial".

A última audiência pública relacionada ao pré-sal 4 no Rio foi realizada no início de maio. Os pescadores de Caxias dizem não ter sido consultados sobre o projeto. "Eles estão lidando com a gente como se estivéssemos mortos", protesta Gilciney Gomes, presidente da colônia de pescadores. "Parece que quanto mais a gente denuncia, pior fica nossa situação".

Barco abandonado no canal Caetano Madeira, em Duque de Caxias - Camille Lichotti/UOL - Camille Lichotti/UOL
Barco abandonado no canal Caetano Madeira, em Duque de Caxias
Imagem: Camille Lichotti/UOL

Ambientalistas e pescadores dizem que a comunidade local tem dificuldade de fazer novas denúncias de lançamentos irregulares e de acompanhar o andamento das ações em curso desde 2021, quando houve uma troca de procuradores no MPF da região.

Procurado, o órgão disse, em nota, que recebe denúncias de irregularidades por diversos meios, e que sua atuação se mantém ativa mesmo em casos de vacância de ofícios.

Com os peixes cada vez mais raros, alguns pescadores abandonaram de vez o ofício e sobrevivem de bicos e benefícios sociais do governo. Hoje, no mangue fétido cortado por listras de poluição, é quase impossível encontrar caranguejos, atividade que no passado sustentava quase 50 famílias da região. Muitas delas se mudaram para cidades vizinhas para refazer a vida.

Gilciney conta que recentemente teve dificuldade para garantir a alimentação da família. As latinhas que ele cata são vendidas a R$ 6 por quilo num ferro velho; em média, o pescador consegue R$ 50 por semana. Ele só não chegou a passar fome nos últimos meses porque recebeu ajuda de amigos da igreja. "Nem sempre foi assim, a gente tirava nosso sustento do rio Iguaçu, a gente nadava aqui. Isso era riqueza", lamenta.