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'É como um respiro': professor ensina em praças e botequins cariocas

O escritor, historiador e compositor Luiz Antônio Simas leciona em pleno coreto da Praça Jardim do Méier: "O olhar do guia turístico não me interessa" - Fabiana Batista/UOL
O escritor, historiador e compositor Luiz Antônio Simas leciona em pleno coreto da Praça Jardim do Méier: 'O olhar do guia turístico não me interessa' Imagem: Fabiana Batista/UOL

Fabiana Batista

Colaboração para o TAB, do Rio

11/06/2023 04h01

Recém-reformado, o coreto branco e azul da Praça Jardim do Méier, no Rio de Janeiro, tem hoje ares sala de aula. É domingo (4) e um aluno se levanta para oferecer um copo de cerveja ao professor, que agradece.

O tema escolhido para o dia são os clubes recreativos cariocas, e não é por acaso: a região é conhecida pela alta concentração desses clubes na cidade. O projeto "Coretos Cariocas: A história das ruas", incentivado pela subprefeitura da zona norte, parece bem recebido no local. Aquece o comércio: barracas vendem roupas e livros e os ambulantes, cerveja e refri.

O professor é Luiz Antônio Simas, 55, escritor, historiador e compositor, autor entre outras obras de "O Corpo Encantado das Ruas" e "História Social do Samba", este em parceria com Nei Lopes. É tratado como celebridade: antes e depois da conversa com os presentes, autografa livros e posa para fotos.

O público é majoritariamente da região. Vitória Ribeiro, 22, estudante de arquitetura, desenha enquanto acompanha a aula. Do bairro do Méier e assídua em feiras literárias, entusiasmou-se com a oportunidade de aprender de graça e ao ar livre.

Professor Simas - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
A estudante de arquitetura Vitória Ribeiro gosta de aprender (e desenhar) ao ar livre
Imagem: Fabiana Batista/UOL
Professor Simas - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
Imagem: Fabiana Batista/UOL

Dona Zezé Barreto, 82, do bairro do Grajaú, e seu neto Gustavo, 22, de Piedade, vieram depois de ficar sabendo do evento por uma parente. Capoeirista e interessado por História, o jovem esticou a canga no chão para conhecer o professor de que tanto ouvira falar. "Gosto de aprender e estar perto da natureza", diz Zezé.

Com as aulas, explica o professor, o que se pretende é levantar questões que envolvem a história da cidade na perspectiva da construção de uma sociabilidade da rua. "O olhar do guia turístico não me interessa", diz Simas.

Professor Simas - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
Dona Zezé Barreto e o neto Gustavo ficaram sabendo do evento por uma parente
Imagem: Fabiana Batista/UOL

Cavaquinho na escola

Docente há 30 anos, Simas transformou a rua em escola há cerca de uma década. Coretos, botequins, escolas de samba são suas salas de aula prediletas. Em 2014, por exemplo, propôs aula na Vila Mimosa, famoso ponto de prostituição carioca, para falar sobre "a reconfiguração urbana a partir da zona".

Nem sempre a interação é tranquila, conta ele. "Uma vez fui falar sobre Niterói e um sujeito me interrompeu: 'Sou de Niterói e tô armado, se falar mal te mato'". Simas contornou a situação cantando o samba "Eu não sou daqui (Sou de Niterói)", de Wilson Batista.

Em 2014, o também autor de "Ágora Carioca", sobre a importância de botequins na vida pública carioca, teve que transferir a aula que era para acontecer num bar para o Largo do Estácio, porque apareceu muita gente.

Ex-professor em escolas privadas do ensino médio em Ipanema, Botafogo e Campo Grande (hoje mantém-se apenas no colégio onde estuda seu filho adolescente, na Tijuca), Simas tem mestrado mas optou por não seguir carreira acadêmica. A interlocução com jovens é o que mais lhe interessa: "Devo a ele meu gosto pelo samba", conta um ex-aluno. "Se trabalho com arte é por causa dele", relata outro.

Simas nunca foi um professor convencional. Ainda no início da carreira, em 1990, ele decidiu levar um cavaquinho para a escola. O tema que seria abordado, a pecuária no Brasil colônia, ganhou uma toada de bumba meu boi, uma canção de Luiz Gonzaga e um samba-enredo. "Senti que aquela era uma forma interessante de dar aulas", recorda-se.

Professor Simas - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
O público, basicamente da zona norte da cidade, tem faixa etária variada
Imagem: Fabiana Batista/UOL

'Cronista do subúrbio'

De maneira intuitiva, o trabalho de Simas evoca a chamada História Pública, método de atuação de historiadores com pesquisas e modelos de ensino não-convencionais. Ou, nas palavras da historiadora Juniele Rabelo, "entendemos o público como espaço dialógico e de construção coletiva do conhecimento".

Juniele conheceu Simas em um evento acadêmico. "Procurávamos alguém com um trabalho que ultrapassasse a noção de escola e academia. Simas é um cronista do subúrbio carioca e falamos o quanto era exemplo da História Pública que queremos", elogia ela.

A acadêmica, que orientou a monografia de André Ranucci "História pública e comunidade: professores de história na Maré e nas Ágoras", conta que o texto define a atuação de Simas como "o ensino de história de maneira entrelaçada com o público que vivencia os espaços e guarda suas memórias coletivas".

"Simas não inverte as hierarquias da construção do conhecimento, busca acabar com elas", conclui Juniele.

No entender de Simas, estar na rua é disparar memórias dos bairros pelos moradores. Ele lembra que, durante outra aula, em Honório Gurgel, uma mulher pediu para contar sobre o Carnaval que brincou naquela mesma praça onde se encontravam. E a aula foi quase toda ministrada por ela.

Crítico do clichê segundo o qual a missão do professor é "levar conhecimento para os outros", Simas acredita que "as pessoas têm história e memória que são relevantes, inclusive, para a construção da historicidade do lugar".

Professor Simas - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
Antes e depois da aula, o autor de 'O Corpo Encantado das Ruas' autografa livros e posa para fotos
Imagem: Fabiana Batista/UOL

Universos distintos

Criado por avós nordestinos, Simas experimentou na pele as memórias de origens e culturas diversas. A avó alagoana, Dona Deda, era mãe de santo. Ao lado do marido pernambucano, Luiz Grosso, imigraram para o Rio e moraram primeiro em Olaria, depois compraram um terreno em Nova Iguaçu.

Lá, abriram um terreiro. O casal também tocava uma pensão em Laranjeiras. De modo que o menino Simas conviveu com universos bastante distintos.

Nos fins de semana, acompanhava Dona Deda nas tarefas do terreiro e comia caranguejos na feira de São Cristóvão. Nas andanças com o avô, chegou a ver o compositor de "Carcará", João do Vale, numa mesa do bar. "A vida estava acontecendo na minha frente", lembra o professor.

Simas diz que aprendeu mais sobre o Brasil ouvindo música do que na escola. "Aprendi sobre a guerra de Canudos no enredo de 1976, 'Os Sertões', da escola de samba 'Em Cima da Hora'", cita como exemplo.

No vestibular, escolheu história por um motivo peculiar: "Era fácil passar." Na UFRJ, pegou jeito para os estudos e, conforme conhecia os bares, a praça Tiradentes, o "fuzuê da Uruguaiana", e todo o centro da cidade e suas histórias, foi se encantando pelas aulas da universidade.

Hoje, tanto como professor quanto como compositor, Simas conta que seu maior entusiasmo é pelas "miudezas do cotidiano" do Rio de Janeiro. "É como um respiro", resume.