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'Querida, encolhi nosso lar': como é morar num microapê dos Jardins

O elevador recoberto com pelúcia rosa é um dos ambientes instagramáveis do Housi Bela Cintra - Arquivo pessoal
O elevador recoberto com pelúcia rosa é um dos ambientes instagramáveis do Housi Bela Cintra Imagem: Arquivo pessoal

Do TAB, em São Paulo (SP)

16/06/2023 04h00

Entrando pelo térreo decorado de néons com frases em inglês, o dia vira uma festa: a batida techno invade até os banheiros e o elevador revestido de pelúcia rosa. Aperto o botão do meu andar e sou alçado em uma espécie de nuvem de algodão doce até minha morada.

A proposta é adotar um novo lifestyle, com direito a coliving, coworking, lounge gourmet, fitness room, pet zone e vários ambientes instagramáveis. Por uma semana, deixo minha rotina de bairro em uma casa de 100 m² e tranco a vida em um "apertamento" de 25 m² próximo à avenida Paulista, para experimentar o tal smart living.

Passada mais de uma década, pouco sobrou das promessas da economia compartilhada. Além de aplicativos como Uber, iFood e Airbnb, a utopia criada pelo Vale do Silício formou em São Paulo um enclave imobiliário. Nele existem edifícios com micro-apartamentos e muitos serviços coletivos, como máquinas que alugam secador de cabelo, chapinha, ferro de passar e air fryer.

Mais barato que um quarto de hotel e menos burocrático que um flat, o modelo encontrou seu nicho principalmente em áreas centrais ou de escritórios. Os moradores são solteiros ou casais sem filhos, muitos deles "nômades digitais", a portátil e privilegiada classe que se libertou (vai saber até quando) das catracas, baias e expedientes.

"É pra quem leva uma vida urbana intensa, fica pouco tempo em casa e precisa de mobilidade. A localização precisa ser top, em áreas com muito valor agregado", define Ariel Lafer Frankel, membro do clã fundador das indústrias Klabin e atual CEO da Vitacon, construtora que há 13 anos se especializou nesse mercado.

Lives e litígios

Os moradores fixos do edifício Housi Bela Cintra convivem com uma população flutuante que inclui turistas peruanos, celebridades da internet (como o "repórter doidão" Diogo Defante), atores globais (Marcos Pasquim e Maurício Destri são frequentadores) e pelotões de ex-BBBs, que trocam o confinamento televisivo por esse outro, após a fama repentina.

O gramado e o deck que ficam no fundo do prédio servem de fumódromo, "espaço pet" e solarium. Mas também já virou cenário para lives dos ex-BBBs hospedados aí. "Sai pra lá. Você parece o Boninho: fica gritando comigo", disparou Flay (participante de 2020) durante a transmissão ao vivo que foi interrompida por um vizinho da rua de trás, incomodado com o volume no meio da noite.

apertamento - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Os 'studios' de 25 m² a duas quadras da avenida Paulista têm mobília padronizada
Imagem: Arquivo pessoal

Vivendo há três anos por lá, o empresário Diogo Barbosa encarou recentemente uma típica treta de vizinhança que acabou em boletim de ocorrência. Primeiro, o morador do andar de baixo reclamou do barulho vindo do apartamento de Barbosa e chamou a polícia, mesmo ele comprovando que o ruído não vinha dali. Não contente, o queixoso jogou pipoca engordurada no capacho do empresário. E, no dia seguinte, depositou um balde com urina e fezes humanas por lá. Aí foi a vez de Barbosa chamar a PM.

A administração do prédio prometeu colocar circuito de vídeo nos andares para coibir casos semelhantes. Durante minha estadia, o lugar com mais câmeras de segurança era a lojinha de conveniência — lá o morador pega, passa o produto no leitor de códigos de barras, paga no cartão de crédito e leva, sem ter funcionário por perto.

Em uma descida ao térreo para ir ao banheiro (a descarga do apê ficou sem água pela minha imperícia com os registros), também vi uma moradora de pijama e pantufa protestar por uma festinha do outro lado de sua parede, no terceiro andar. Por ali, o clima de balada só é permitido no térreo, mesmo.

O teste da janta

"Pai, não quero morar em uma cela", foi a primeira reação de minha filha ao saber da estadia. Dei uma googlada e vi que o xadrez em que Lula foi detido na Polícia Federal de Curitiba em 2018 tinha 15 m². Ufa, é um pouco maior.

A Vitacon, porém, já construiu e comercializou apartamentos de 10 m², espaço equivalente a uma vaga de estacionamento. Nele, os móveis precisam ser retráteis para dar conta de dormir, trabalhar, cozinhar e se alimentar.

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Na cozinha compacta, faço arroz e estrogonofe com fogão de indução eletromagnética e coifa embutida
Imagem: Arquivo pessoal

Meu primeiro desafio ali foi fazer o prato predileto da filhota: estrogonofe. Nos arredores só há minimercados, tipo Carrefour Express e Minuto Pão de Açúcar, onde a grande maioria dos produtos são ultraprocessados, bem ao estilo da vida enlatada que encarava. Açougue mesmo só a oito quarteirões: uma loja da marca Swift encravada justamente na rua das grifes, a Oscar Freire.

O passo seguinte foi entender a cozinha compacta do apê. Diante dos botões do fogão por indução eletromagnética e da coifa embutida, precisei consultar o "professor YouTube" e fazer uns testes antes, para não queimar a janta nem perfumar muito o cafofo com um aroma de alho.

Na hora de sentar para comer, novo teste de adaptação. Com a mesa posta (a mesma que usava para trabalhar), sentei no sofá; a namorada, na cama; e a filha, na única cadeira disponível. Talvez a opção mais prática seria o brasileiríssimo hábito de "fazer o prato" e cada um comer num canto. Rápido me dei conta de que, em um lar miniaturizado, é melhor comer fora ou pedir por aplicativo.

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Selfie de um jantar familiar no apê de 25 m², com sofá e cama servindo como assento para os comensais
Imagem: Arquivo pessoal

Só as máquinas ajudam

A reserva e o check-in são feitos por aplicativo de celular. Meu rosto é escaneado por um visor na entrada para ter acesso ao prédio. Já as comunicações com a recepção acontecem pelo WhatsApp — ou seja, mais um perrengue.

Na hora do banho, já sem roupa, não consigo regular a temperatura entre os quatro registros presentes no box. Mando um zap pro recepcionista: "Qual é a torneira da água quente?" Volto a abrir e fechar as válvulas. E nada. Minutos depois, olho o celular e não há resposta. Mexo, remexo e encontro a chuva fervente. Ajusto até o morno e me lavo. Já seco e vestido, confiro que a recepção finalmente respondeu: "Depende da unidade".

Por app também funciona a lavanderia. As máquinas de lavar e secar só abrem e fecham após comandos no celular. Ao lado está a academia de ginástica. Enquanto a roupa dá rodopios, você pode pedalar.

Cercado de tantos aparelhos, percebo que a anunciada interação humana é pequena. Cumprimento duas vizinhas e não há resposta. Depois vejo que as duas portam fones de ouvido. Uma obedece sua personal trainer que está na tela do smartphone. A outra corre na esteira enquanto se concentra no seriado oferecido por um serviço de streaming.

É um mundo de muita conexão (digital) e pouco vínculo (inter-humano e também com os imóveis). No coworking, lounge e térreo há pouco contato visual ou sonoro entre as pessoas. Até os moradores mais antigos não se frequentam nem mantêm o típico grupo de vizinhos pelo WhatsApp. No máximo, lembram do nome do outro (mas isso o sensor de reconhecimento facial da entrada faz muito melhor).

Vida por assinatura

Nada de fiador, depósito caução, seguro-fiança e todas aquelas regras da lei do inquilinato. O boleto não é de aluguel, é de assinatura. Além dos serviços de filmes ou notícias, hoje em dia existem assinantes de clubes de vinhos ou charutos e até de carro e casa.

Você pode assinar um apê por um dia, um mês, um ano ou mais — o que fiquei, por exemplo, custa por volta de R$ 2.000 a semana. O néon na fachada já dá a pista: "Sua Casa On Demand". Na vizinhança, casas e quarteirões inteiros estão sendo derrubados atrás de outdoors como este: "invista em apartamentos de 17 m²: alto rendimento". A própria Vitacon promete "valorização de 80%" para quem adquirir unidades nos Jardins.

Quanto menor o tamanho, maior é a procura de investidores. Essas quitinetes turbinadas por serviços viraram um ativo "sexy e palpável" no meio da diversificação das carteiras financeiras. Quem compra deixa a administração para a Housi, braço da incorporadora Vitacon. A proptech (empresa de tecnologia do setor imobiliário) fica com 20% do valor da locação.

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Apesar do coworking no térreo, a tranquilidade do quarto é melhor para quem está de home office
Imagem: Arquivo pessoal

Com a pandemia e o trabalho híbrido, esses apês se aproximaram mais do mercado de alta rotatividade como opção para os hotéis — no lugar de uma Bíblia, na mesinha de cabeceira pousa uma revista moderninha cheia de textos criativos e fotos descoladas.

A sensação inicial por lá é fazer vida de popstar, daqueles que pulam de um hotel para outro. Mas até a novidade cansa. Com o bate-estaca da technêra como fundo musical, não consigo me concentrar no coworking e busco a quietude do quarto para poder escrever.

Lá, uma janela antirruído abafa o barulho dos motores e das demolições do entorno. Encosto a cabeça no vidro, que embaça com minha respiração. Como um auditor do mundo, assisto com visão panorâmica a procissão de pessoas e carros daquela manhã populosa. Percebo como é habitar a lógica do "menos espaço, mais tempo".

A geladeira ronrona atrás de mim, e lembro que tenho que esvaziá-la, assim como o guarda-roupa e a pia do banheiro, porque o checkout acontece até o meio-dia. O mundo é pequeno, principalmente quando entra em duas mochilas, uma mala e um computador. Pego minha unidade básica de sobrevivência e volto para minha casinha, longe dos móveis planejados, prédios inteligentes e bairros premium.

* Agradecimento à Vitacon pela estadia em seu empreendimento