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'Mãe, eu sou menina': o início da transição de gênero de uma criança

Clarice* iniciou o bloqueio puberal aos 11 anos - Daniela Toviansky/UOL
Clarice* iniciou o bloqueio puberal aos 11 anos
Imagem: Daniela Toviansky/UOL

Do TAB, em São Paulo

21/06/2023 04h00

"Larga essa boneca, seu viadinho!" O grito tinha feito todo mundo paralisar. Apenas um sussurro assustado, vindo de baixo de uma mesa de plástico, era ouvido no meio do salão. Os convidados olhavam a criança sentada no chão e pareciam desconcertados. "Mãe, eu sou uma menina", ela dizia, de olhos arregalados. Era a primeira vez, aos 4 anos, que Clarice* falava aquilo.

Um conhecido da família parecia furioso com a alegria de Clarice na festa infantil, cujo tema era "Frozen", o filme da Disney. A mãe entendeu a mensagem. Sete anos depois, em maio de 2023, ela iniciaria seu bloqueio puberal respaldada pela lei e acompanhada de uma equipe de especialistas.

A fase mais importante da vida de Clarice, contudo, está em franco debate: a Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) aceitou a solicitação do deputado Gil Diniz (PL) e abriu uma CPI para investigar o que chamou, erroneamente, de "hormonização em crianças e adolescentes" em instituições públicas, mirando o trabalho desenvolvido por um ambulatório do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo).

A reportagem do TAB acompanhou Clarice e sua mãe nos últimos meses, em consultas e passeios, e conversou com psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas e pediatras, que se mostraram apreensivos no último mês e, em alguns casos, preferiram dar seu depoimento em condição de anonimato, com medo de represálias.

Crianças trans  - Daniela Toviansky/UOL - Daniela Toviansky/UOL
Desde fevereiro de 2023, a menina é atendida por uma equipe médica multidisciplinar
Imagem: Daniela Toviansky/UOL

Transição social

Clarice, 11, é falante, tem longos cabelos cacheados e brilhosos e rosto rechonchudo. A reportagem a conheceu em sua casa, no interior de São Paulo, em março. Ela exibia uma caixa de papelão com fotos e álbuns, espalhando recordações de família sobre a mesa.

"Essa pessoa aqui sou eu", dizia, apontando para um bebê no colo da mãe, vestindo terno e gravata-borboleta. "Essa pessoa não existe mais", completou, com um leve sorriso.

Curiosa, a garota passa o tempo vendo vídeos sobre mitologia, história e moda no YouTube. "Você gosta da Medusa?", me perguntava. "Amo a Medusa, a Gaia. E a Hebe Camargo, acho ela muito chique, a Carmen Miranda, a Marilyn Monroe, a Lady Gaga e a Beyoncé."

Clarice mora ali desde que nasceu e fez muita gente descobrir o que é transexualidade — inclusive a própria mãe. "Ela estava sempre aqui, eu é que não via", diz Fernanda*, 49.

Enfermeira aposentada, ela distribui marmitas a pessoas em situação de rua e passou a integrar grupos de militância LGBTQIA+. "Desde que entendi quem ela é, comecei a preparar minha família e a ajudar minha filha", lembra. Graças a isso, acredita, a menina é hoje feliz e confiante.

Criança trans - Daniela Toviansky/UOL - Daniela Toviansky/UOL
O atendimento a crianças e adolescentes trans segue protocolo do CFM (Conselho Federal de Medicina)
Imagem: Daniela Toviansky/UOL

O caminho da transição

Trans é o termo guarda-chuva que inclui mulheres e homens transexuais, travestis e pessoas não-binárias.

No Brasil, o Ministério da Saúde instituiu o Processo Transexualizador no SUS em 2008. A portaria elencou diretrizes e estabeleceu que hospitais e ambulatórios precisam estar credenciados pelo governo federal para oferecer atendimento a transexuais.

Ao longo dos anos, o texto foi incluindo novos procedimentos. Hoje há 17 unidades de saúde habilitadas para o serviço, de acordo com o DataSUS. Oito delas, além de hormonização, fazem também as cirurgias de modificações corporais.

No caso de Clarice, ainda falta um bom tempo para ela iniciar o processo definitivo. É incorreto dizer que ela passa por hormonização: o SUS só permite o uso de hormônios a partir de 18 anos e autoriza cirurgia de adequação de gênero apenas a quem tem 21 anos ou mais — a norma é mais conservadora que o protocolo estabelecido pelo CFM (Conselho Federal de Medicina) de 2019, que antecipa a idade mínima de hormonização (16 anos) e cirurgia (18), a exemplo do que oferece o sistema de saúde britânico, o NHS.

Para o atendimento de crianças e adolescentes, o CFM orienta o bloqueio puberal "exclusivamente em caráter experimental em protocolos de pesquisa" e "em hospitais universitários e/ou de referência para o Sistema Único de Saúde", com acompanhamento de uma "equipe multiprofissional e interdisciplinar, sem nenhuma intervenção hormonal ou cirúrgica". Todo paciente e pelo menos um de seus pais têm de assinar um termo de consentimento.

Criança trans - Daniela Toviansky/UOL - Daniela Toviansky/UOL
Imagem: Daniela Toviansky/UOL

Passo a passo

O protocolo para crianças e adolescentes em transição de gênero começa, na prática, com o trabalho de um pediatra ou hebiatra (clínico geral de adolescentes). Nesse momento também atuam psiquiatras e psicólogos.

Clarice iniciou aos 4 anos a chamada "transição social" — como os psicoterapeutas classificam a fase de mudança da expressão de gênero —, usando, por exemplo, o pronome feminino dentro de casa. É uma forma de amenizar a angústia relacionada à sensação de inadequação.

Essa transição costuma acontecer lentamente, "somente para os familiares", escrevem as psicólogas Desirèe Monteiro Cordeiro e Luciane Gonzalez Valle, no livro "Saúde LGBTQIA+ - Práticas de cuidado transdisciplinar", um compilado de artigos brasileiros sobre o tema.

"Os responsáveis pela criança devem ser orientados a enxergar essa experiência como uma exploração de viver em outra expressão de gênero, e não como uma definição de vida", ponderam as autoras.

Em fevereiro de 2019, pela primeira vez Clarice foi à escola com os cabelos compridos soltos. Diante da turma, disse seu nome. "É assim que vocês devem me chamar a partir de agora."

Cursando o 4º ano do ensino fundamental, sua presença ali estabeleceu uma espécie de aprendizado coletivo. Certa vez, a professora perguntou aos alunos do que eles tinham medo quando viajavam. "Tenho medo de me perder", respondeu um dos colegas. "Tenho medo de morrer", disse Clarice. "De morrer?", surpreendeu-se a professora. "Sim. Eu sei que tem lugares onde pessoas como eu são mortas."

'Mãe, eu sou menina', disse Clarice*, aos 4 anos, à mãe - Daniela Toviansky/UOL - Daniela Toviansky/UOL
'Mãe, eu sou menina', disse Clarice*, aos 4 anos, à mãe
Imagem: Daniela Toviansky/UOL

Conversa bloqueada

Uma reportagem publicada em janeiro sobre o trabalho do Amtigos (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP, foi o estopim para a abertura da CPI na Alesp.

Criado em 2010, o Amtigos é referência no Brasil. Atualmente, 394 pacientes recebem acompanhamento no ambulatório, de acordo com uma nota enviada pela assessoria de comunicação ao TAB: 119 crianças (de 4 a 12 anos), 151 adolescentes (de 13 a 17 anos) e 124 adultos (a partir 18 anos).

Diniz, que sugeriu a CPI, foi eleito presidente da comissão em 14 de junho. Beth Sahão (PT) está como vice. Os trabalhos estão previstos para começar em agosto e devem durar 120 dias.

Para a secretária nacional da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), Bruna Benevides, a "politização" do tema é uma ação conservadora, que quer "desvirtuar o que de fato está sendo pautado no atendimento às necessidades de jovens e crianças que não se reconhecem no gênero que não lhes foi designado ao nascer", afirma.

Thamyris Nunes, fundadora da ONG Minha Criança Trans e mãe de uma menina trans de 8 anos, acredita que o poder público deve ter "questões muito mais urgentes e necessárias para investir o dinheiro público e o tempo dos parlamentares".

Por causa da CPI, profissionais de saúde "estão com medo de se expor e de expor outros ambulatórios", comenta uma pediatra, ex-voluntária do Amtigos que trabalha em Pernambuco. "Há receio de que outras CPIs surjam e que a pressão desarticule os ambulatórios. Isso é preocupante."

O TAB procurou o psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do Amtigos, para uma entrevista. "Sim, claro, mas seria interessante conversar com a assessoria de imprensa antes", disse o médico em maio. A assessoria vetou. Por e-mail, respondeu: "Neste ano, a instituição vem optando realmente por se dedicar à atenção ao trabalho desenvolvido no ambulatório, evitando novas exposições na imprensa".

Em Minas Gerais, a equipe de comunicação do Hospital João Paulo 2º não retornou mais aos pedidos de entrevista, ao saber da pauta. Desde dezembro de 2022, o hospital presta serviço à Prefeitura de Belo Horizonte no atendimento a crianças e adolescentes trans.

Criança trans - Daniela Toviansky/UOL - Daniela Toviansky/UOL
A Parada do Orgulho LGBT+ foi a primeira visita da menina a São Paulo
Imagem: Daniela Toviansky/UOL

Menos angústia, mais alegria

Ainda estava escuro quando Clarice e a mãe saíram de casa, em 19 de maio. Viajaram mais de quatro horas de carro até o hospital onde ela está sendo atendida. Os exames mostraram que seu nível de desenvolvimento já era o do início da puberdade. "Já dava para notar alguns pelinhos", contava Fernanda, na sala de espera.

"Existe um índice técnico que sinaliza esta fase: é quando o paciente chega ao grau dois de Tanner", explica a endocrinologista Karen de Marca Seidel, referindo-se aos estágios de maturação física do corpo. "Um pênis que não é mais infantil, o testículo que começou a crescer, a mama que já tem relevo, são sinais visíveis que indicam isso", acrescenta ela, que atende transgêneros no Rio.

É nesse momento que se começa a fazer o bloqueio puberal, uma vez que as alterações físicas intensificam o desconforto dos pacientes, desencadeando "mais sofrimento e angústia", como afirma o pediatra e endocrinologista José Antônio Faria, professor do curso de medicina da UFBA (Universidade Federal da Bahia).

Em Salvador, Faria atende pacientes a partir dos 8 anos, já acompanhados por psicólogos ou psiquiatras. A medicação usada em pessoas como Clarice, explica ele, é a mesma prescrita desde os anos 1980 a pacientes com puberdade precoce, o que "garante expertise" a endocrinologistas pediátricos.

A medicação age na hipófise, uma glândula cerebral, e bloqueia a produção de hormônios sexuais: testosterona, nas meninas trans, e estrogênio, nos meninos trans. A escolha do tipo de bloqueador pode variar, a depender do estágio de puberdade em que o paciente se encontra.

O preço varia de R$ 300 a R$ 1.000 por mês. Esse tipo de medicação só está disponível na rede pública para pacientes com puberdade precoce, mas não está previsto pelo SUS para utilização em crianças e adolescentes trans, o que dificulta o acesso. A gratuidade, nesse caso, depende das instituições de pesquisa.

O bloqueio puberal é reversível e pode ser interrompido a qualquer momento. Em pessoas que nasceram com sexo masculino, o pênis para de crescer e não surgem pelos; em pessoas que nasceram com sexo feminino, as mamas não se desenvolvem e não há menstruação. Se quiser continuar no processo de transição, o jovem pode adotar a hormonização aos 18 anos: mulheres trans passam a tomar estrogênio e um antiandrogênico (para controlar o nível de testosterona); homens trans tomam testosterona.

Clarice estava sonolenta quando entrou no consultório, às 16h. Coçava os braços, numa crise de ansiedade que se arrastava havia dias. Depois de 40 minutos, ela surgiu sorridente. Trazia uma caixinha com rótulo vermelho para mostrar: era sua primeira dose de bloqueador. "Já tomo amanhã. Quem vai aplicar é minha irmã, que é enfermeira", avisou. Fernanda, logo atrás, estava emocionada.

Clarice* participou pela primeira vez da Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo - Daniela Toviansky/UOL - Daniela Toviansky/UOL
Clarice: 'Eu tava com pessoas que eram iguais a mim', sobre a Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo
Imagem: Daniela Toviansky/UOL

'Imagine uma menina feliz'

Clarice conheceu São Paulo em 11 de junho, dia da Parada do Orgulho LGBT+. Estava de meia-calça vazada, uma saia branca com pinceladas de cola colorida e brilhosa, que ela mesma fez na noite anterior, e tinha um coração nas cores da bandeira trans (rosa, branca e azul) pintado na bochecha.

"Ela não teve mudança física, claro, mas está tão mais calma, menos ansiosa, feliz", contava a mãe, referindo-se aos efeitos iniciais do bloqueio puberal.

Mais de 50 famílias se reuniram a poucos metros do Masp (Museu de Arte de São Paulo), numa espécie de bloco organizado pela ONG Minha Criança Trans. Um estandarte trazia a frase "crianças trans existem". Ao longo daquela tarde, eles caminharam pela região central da cidade reivindicando o direito de existirem e de serem respeitadas. Clarice estava radiante.

"Oi, Mateus, aqui é Clarice." A mensagem tinha acabado de chegar no celular deste repórter, uma semana depois. "Vou lhe contar como foi minha experiência no domingo. Foi uma sensação incrível. Eu tava com pessoas que eram iguais a mim. Me senti amada pela primeira vez por pessoas que eu nem conhecia."

* Nomes alterados para preservar a identidade das entrevistadas