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OPINIÃO

Opinião: Love Cabaret é uma espécie de 'safári' para casais héteros

Love Cabaret abre para o público em São Paulo - Karime Xavier / Folhapress
Love Cabaret abre para o público em São Paulo Imagem: Karime Xavier / Folhapress

Do TAB, em São Paulo (SP)

27/06/2023 04h00

Desde que a Love Story anunciou que fecharia as portas, o temor geral de quem circula pelo centro de São Paulo e sabe da capacidade predatória das construtoras era que "a casa de todas as casas" virasse um mercado 24 horas ou um prédio de apartamentos de 10 metros quadrados. Não demorou para que o empresário Facundo Guerra anunciasse a compra do espaço e a proposta de transformá-lo em uma espécie de "templo do sexo". Palavras dele.

O próprio empresário comemorou nas redes sociais o feito de impedir que a Love Story, depois de três décadas de funcionamento, fosse vítima da falta de memória das construtoras. Felizmente, a casa noturna não virou um prédio, mas o preço dessa vitória logo foi cobrado: a "nova" Love seria um "templo do sexo", mas com ressalvas. "Não é um prostíbulo", escreveu o próprio Guerra em seu perfil pessoal. Ele comanda a casa com Lily Scott e Caire Aoas.

A casa abriu para o público na última sexta-feira (23). Da antiga Love Story sobrou apenas o "Love". A proposta do Love Cabaret foge totalmente do que antes funcionava naquela esquina da Rua Araújo. Foi uma boa jogada, considerando-se a faixa etária que compareceu à inauguração. Ninguém tem bateria emocional para lidar com mais uma casa noturna depois dos 30.

A ideia inicial era cobrir a abertura da casa, mas meu pedido não foi aceito pela assessoria. Quando insisti mais um pouco, me foi perguntado se eu faria uma matéria positiva sobre o lugar. Desisti de trabalhar e fui ver a abertura à paisana.

Depois de horas assistindo às performances muito bem selecionadas, ficou claro que o Love Cabaret acertou em cheio na proposta de oferecer uma ideia de sexo performático "fora do convencional", mas muito limpinho e polido.

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Love Cabaret conta com uma curadoria consistente e bem feita de performances de pole dance, shibari e burlesco
Imagem: Karime Xavier / Folhapress

Vilão da noite?

A Love Story antiga cumpria uma função social de final de noite para qualquer pessoa inimiga do fim: patricinhas, playboys, empresários visitando São Paulo, policiais civis em fim de plantão, trabalhadores sexuais ou apenas perdidos na noite dispostos a pagar caro para entrar e bancar os valores abusivos cobrados por uma cerveja mais ou menos gelada.

Sempre achei Love Story um lugar cuja fama excedia o que realmente acontecia lá dentro. Em todas as vezes que pisei ali, ouvi na fila, de amigos e de conhecidos, que a casa era uma versão moderna de uma festa bacanal romana. Mas bastava passar do corredor espelhado que levava o cliente até a pista de dança para perceber que se tratava apenas de um casa noturna qualquer com um público meio aleatório.

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Boate Love Story, no centro de São Paulo, em 2015
Imagem: Avener Prado/Folhapress

Ali, de fato, era uma casa frequentada por muitos profissionais do sexo. Não necessariamente para trabalhar, mas para curtir uma festa pós-expediente com colegas da mesma categoria. Por causa disso, era vista como um lugar meio trash e vulgar. Mesmo não sendo um inferninho, ficou com fama de inferninho. "Não é um prostíbulo", alertou o próprio Guerra sobre seu novo empreendimento. Como se a mera presença de trabalhadores do sexo contaminasse um lugar que era apenas uma casa noturna de techno-pop dos anos 1990.

Os proprietários do Love Cabaret resolveram pintar a Love Story como um grande antro de tristezas, mazelas humanas e exploração sexual para espantar os habitués e se afastar, o máximo possível, do legado da "casa de todas as casas" e não serem enquadrados nas redes sociais por isso.

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Pista de dança do antigo Love Story virou palco para apresentações
Imagem: Karime Xavier / Folhapress

Um panóptico em forma de cabaré

O que o Love Cabaret oferece é uma espécie de jantar interativo onde todo mundo pode se divertir, beber drinques que começam na casa dos R$ 40 e se sentir aliado da causa LGBTQIA+, já que o discurso reproduzido pela casa faz questão de repetir bordões nesse sentido. "Corpos à margem", frisou o empresário na mesma publicação que lista "bizarrias" junto a BDSM e, curiosamente, ASMR no cardápio de performances.

O que não significa que o Love Cabaret seja ruim. A antiga pista de dança virou palco para as performances. Todas as mesas e cadeiras ficam dispostas em um círculo. Todo mundo conseguia assistir às atrações e ao mesmo tempo observar uns aos outros. Uma espécie de panóptico versão cabaré gourmet, como meu namorado brilhantemente classificou.

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Gama Higai, hostess do Love Cabaret, faz performance 'living-doll' e 'looner'
Imagem: Divulgação

A curadoria das performances foi certeira: é um pot-pourri de atrações que vão desde o pole dance, shows de burlesco, apresentações de shibari e brincadeiras com látex. Uma espécie de introdução segura para o público se sentir ousado, sem precisar chegar muito perto.

A esmagadora maioria dos artistas era queer e fugia daquele padrãozinho chato de beleza OnlyFans: harmonização facial, dentadura branca e corpos esculpidos por horas de academia. A qualidade das performances, no entanto, seguia um único padrão: impecáveis e bem ensaiadas. Não há espaço para amadorismo e isso ficou claro. Pudera: os valores dos ingressos começam a partir R$ 30 e podem chegar até R$ 360 para um lounge que cabe seis pessoas. Assim como na Love Story, é preciso desembolsar uma graninha para sorrir no ambiente.

O incômodo surgiu quando notei que a grande maioria das mesas, inclusive a minha, estava preenchida por casais héteros. Observando o centro da pista de dança, nesse panóptico onde todo mundo vê todo mundo, restou a impressão de se estar em um safári, olhando pessoas que fogem da heteronormatividade como se fossem atrações de outro universo.

O casal sentado ao meu lado pelo menos passou esse recado. Em dado momento, observando a simpática anfitriã Indra Haretrava explicando o acrônimo BDSM, a mulher sussurrou próximo ao ouvido do namorado: "Olha só, aqui todo mundo é 'todes'".

Veja, não há nada errado com a proposta da casa. No entanto, para soar mais disruptiva do que as demais casas que oferecem performances parecidas, as mentes por trás do Love Cabaret adotaram um discurso moralista contra o que consideram "pornográfico" — ou simplesmente sujo. Pobre, talvez. Poderia ser apenas um lugar para ver coisas legais, mas a necessidade de mercantilizar a própria virtude contaminou a experiência inteira para mim.

Love Cabaret impediu que o ponto da antiga Love Story virasse mais um empreendimento imobiliário, mas segue a cartilha inofensiva de esterilizar qualquer sugestão sexual com álcool em gel para ninguém se sujar.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL