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Como Lampedusa virou símbolo de política anti-imigração italiana

Giuseppe De Rubeis, 62, conta que já fez resgate de imigrantes, mas parou quando a Itália anunciou a proibição, sob risco de prisão - Stephanie Tondo/UOL
Giuseppe De Rubeis, 62, conta que já fez resgate de imigrantes, mas parou quando a Itália anunciou a proibição, sob risco de prisão
Imagem: Stephanie Tondo/UOL

Stephanie Tondo

Colaboração para o TAB, de Lampedusa (Itália)

06/07/2023 04h00

Localizada entre a costa da Tunísia e a Sicília, no mar Mediterrâneo, a ilha de Lampedusa é considerada há mais de três décadas a porta de entrada da Europa a milhares de imigrantes africanos.

De acordo com a Agência da ONU para Refugiados, a ilha italiana corresponde a mais de 80% das chegadas mensais de imigrantes na Europa pelo Mediterrâneo.

Mas, enquanto os moradores da ilha de 20 km² mantêm a ética dos pescadores de resgatar e ajudar aqueles que estão perdidos no mar, o mesmo não pode ser dito do governo italiano.

Com o país sob a direção de um partido de extrema direita, a ilha que era símbolo de uma política humanitária e de acolhimento tem virado as costas para os imigrantes.

Há mais de dez anos, pescadores têm sido penalizados por resgatarem refugiados no Mediterrâneo. As punições, que vão desde apreensão do barco usado no resgate até prisão, têm se intensificado, contam moradores de Lampedusa à reportagem do TAB.

Filho de pescador e dono de uma lancha de turismo, Giuseppe De Rubeis, 62, conta que já encontrou diversos imigrantes no mar. No passado, chegou a abrigar alguns em sua própria casa, oferecendo banho, comida e roupas limpas. Hoje, não pode mais resgatá-los por conta própria, pois tem medo de ser preso.

"A orientação é para que a gente chame as autoridades. Se fazemos por conta própria, podemos ser acusados de tráfico de pessoas", disse.

O medo de Giuseppe tem justificativa. Em março, um pescador foi condenado a 280 anos de prisão após ajudar a conduzir um navio enferrujado repleto de migrantes do Egito para a Grécia. O governo grego o acusou de tráfico de pessoas. Em 2018, a própria Itália enfrentou protestos contra a prisão de seis pescadores tunisianos que resgataram 14 refugiados em um bote a caminho de Lampedusa. Eles foram acusados de tráfico de pessoas, com condenação prevista em 15 anos.

Em dias de mar calmo e céu claro, quando as balsas vindas da África costumam fazer as travessias, é possível ver nas praias e costa de Lampedusa barcos da "Guarda de Finanza" italiana procurando embarcações ilegais na região. Força policial militarizada, ela atua no controle aduaneiro, como uma espécie de Polícia Federal, mas também no patrulhamento das fronteiras contra tráfico de drogas e entrada ilegal de imigrantes.

A intensificação do controle de fronteiras marítimas tem o objetivo de conter a principal forma de entrada de imigrantes nos países do Mediterrâneo. Dos cerca de 87 mil refugiados que chegaram à região em 2023, quase 85 mil (98%) fizeram a travessia pelo mar.

E a Itália é o principal destino desses imigrantes. Do total, mais de 64 mil chegaram ao país neste ano (73%), contra 8 mil na Grécia e 12 mil na Espanha.

Segundo a OIM (Organização Internacional para as Migrações), mais de 1.160 pessoas morreram afogadas no Mediterrâneo desde o início de 2023, o maior número de mortos desde 2017.

Guarda di Finanza italiana - Stephanie Tondo/UOL - Stephanie Tondo/UOL
Guarda di Finanza italiana, que patrulha as águas no entorno da ilha da Lampedusa
Imagem: Stephanie Tondo/UOL

Foco de tensões

A ilha não permite a permanência dos refugiados. Quem chega é imediatamente direcionado a um centro de acolhimento e, de lá, levado a outras cidades, como Trapani, na Sicília, ou Bari, no sul da Itália.

Sob gestão da Cruz Vermelha desde 1º de junho, o ponto de apoio aos refugiados de Lampedusa destoa do resto das construções da ilha. Com muros altos e a presença de segurança fortemente armada, se assemelha a uma base militar. Ninguém entra e ninguém sai sem autorização.

ONGs que atuam no resgate de refugiados têm criticado os empecilhos colocados pelo governo italiano — e pelo próprio governo local — para o acolhimento dos imigrantes.

Em 14 de junho, o navio Aurora, da ONG Sea-Watch, foi detido por desembarcar em Lampedusa. A embarcação tinha acabado de resgatar 39 pessoas no mar e teve de pagar mais de 3.000 euros de multa.

As autoridades o haviam designado para o porto siciliano de Trapani, mas como os resgatados sofriam de enjôo e desidratação e a viagem até Trapani levaria pelo menos 32 horas, o navio decidiu desobedecer às ordens e desembarcar no porto mais próximo. Entre os resgatados estavam uma mulher grávida e crianças.

"Quando as pessoas são abandonadas no mar e expostas a um sofrimento desnecessário, o regime de fronteiras racista da Europa mostra sua cara feia. As pessoas têm o direito de desembarcar no local seguro mais próximo, conforme estabelecido nas convenções internacionais", disse Chiara Milanese, responsável pela Missão Aurora, que tem como objetivo o resgate de imigrantes no Mediterrâneo.

Líder da equipe de busca e resgate dos Médicos Sem Fronteiras, Riccardo Gatti conta que o governo italiano tem dificultado a atuação das ONGs no mar Mediterrâneo desde 2017, não apenas adotando uma postura mais hostil, mas criminalizando ações.

De acordo com ele, não existem iniciativas governamentais para resgate dos imigrantes do mar, de modo que todo o trabalho é realizado pelas organizações. Além disso, ele diz que as autoridades italianas não compartilham as informações, o que impede que as balsas com refugiados à deriva sejam encontradas a tempo.

Desde 2021, o navio Geo Barents, comandado por Gatti, já resgatou mais de 8.000 pessoas no mar.

Riccardo Gatti, líder da equipe de busca e resgate dos Médicos Sem Fronteiras em Lampedusa - Stephanie Tondo/UOL - Stephanie Tondo/UOL
Riccardo Gatti, líder da equipe de busca e resgate dos Médicos Sem Fronteiras em Lampedusa
Imagem: Stephanie Tondo/UOL

Pedidos de asilo negados

Há anos a Itália vem endurecendo as leis contra imigração, mas as medidas ganharam força com a eleição da ultradireitista Giorgia Meloni como primeira-ministra, em setembro de 2022.

Entre as ações promulgadas pelo novo governo estão um plano que prevê a rejeição de resgatados no Mediterrâneo que pedem asilo. A maioria das rejeições, de acordo com ONGs que atuam no Mediterrâneo, é de homens solteiros, que chegam a ser enviados de volta para os seus países de origem.

Segundo a Agência da ONU para Refugiados, 58% dos pedidos de asilo na Itália foram negados entre janeiro e março.

Antes e depois de Kadafi

Nascido e criado em Lampedusa, De Rubeis viu as primeiras balsas com imigrantes chegarem há cerca de 30 anos. Foi a crise migratória que literalmente colocou a ilha no mapa, segundo ele.

"Depois de [Muammar] Kadafi é que o mundo começou a nos conhecer", afirma.

Ditador da Líbia durante 42 anos, Muammar Kadafi se tornou um personagem importante no destino de Lampedusa. Em 1986, ele lançou dois mísseis de fabricação soviética em direção à ilha.

Os mísseis Scud erraram o alvo e caíram a dois quilômetros da costa, mas chamou atenção do mundo — a região era meio desconhecida até mesmo pelos italianos.

Depois dos mísseis, Lampedusa passou a atrair refugiados não apenas do regime do ditador líbio, mas de outras ditaduras, guerras e fome.

"Minha avó, que era de Roma, não sabia da existência de Lampedusa até minha mãe casar com um lampedusano", ri Daniele Masaracchio, 37, dono de uma loja que aluga motos e bicicletas elétricas.

Filho de Giuseppe e namorado de Elisea, o também marinheiro Marino De Rubeis reconhece que a crise migratória divide opiniões. Mas, em Lampedusa, diz ele, a tradição é de ajudar.

"Algumas pessoas fazem pão para doar aos refugiados que chegam, ajudam como podem. Alguns refugiados chegam sem qualquer ideia de onde estão, perguntam onde é a estação de trem, sendo que Lampedusa é uma ilha, não tem como sair daqui de trem. Nós também tentamos orientar, dizer onde podem encontrar ajuda e acolhimento."

Ele concorda, porém, com a recomendação de deixar com as autoridades o resgate no mar.

"Algumas vezes é perigoso tentarmos resgatar por conta própria porque as pessoas chegam nervosas e, na ansiedade de entrar no barco, podem acabar virando as embarcações."

Porta d'Europa, monumento sobre o drama dos imigrantes que chegam pelo mar, já virou point instagramável em Lampedusa - Stephanie Tondo/UOL - Stephanie Tondo/UOL
Porta d'Europa, monumento sobre o drama dos imigrantes que chegam pelo mar, já virou point instagramável em Lampedusa
Imagem: Stephanie Tondo/UOL

Acolher ou rejeitar

Vivendo esse paradoxo de acolhimento particular e rejeição governamental, diversos monumentos e murais fazem referência à cultura de acolhimento de Lampedusa. Um dos mais conhecidos e visitados é a Porta d'Europa, cujo portal tem vista para o oceano e para a cidade, conectando os dois mundos. O lugar, aliás, virou ponto de atração de turistas, que fazem selfies em frente.

No monumento é possível encontrar objetos deixados pelos imigrantes, como tênis e celulares quebrados, além de cartas de apoio de turistas e habitantes.

Objetos de imigrantes que tentaram fazer a travessia pelo mar, expostos na Porta d'Europa, em Lampedusa - Stephanie Tondo/UOL - Stephanie Tondo/UOL
Objetos de imigrantes que tentaram fazer a travessia pelo mar, expostos na Porta d'Europa, em Lampedusa
Imagem: Stephanie Tondo/UOL

Esta é a íntegra de uma das cartas encontradas:

Hoje, 13 de junho de 2023, trago meu pensamento de condolências para aqueles que, fugindo de terras assoladas pela fome e pelos conflitos, fugiram em direção a uma vida melhor para si e para seus filhos.

Para muitos deles os sonhos foram despedaçados por ondas mais violentas do que as guerras de que fogem, para outros as suas esperanças ruíram contra os muros das políticas europeias que não olharam para além dos seus próprios egoísmos e confortos.

Hoje, diante deste símbolo de dor que o povo misericordioso e acolhedor de Lampedusa colocou, eu, cidadão italiano, presto homenagem à sua memória, que Deus acolha suas almas e encontre o caminho do perdão e da redenção para aqueles que não puderam estender a mão para outros

Por um mundo de paz.