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Família quer MP investigando 'incitação ao suicídio' de policial em MG

Rafaela Drumond e a amiga Amanda Zaquini, em Barbacena (MG) - Arquivo pessoal
Rafaela Drumond e a amiga Amanda Zaquini, em Barbacena (MG) Imagem: Arquivo pessoal

Leandro Aguiar

Colaboração para o TAB, de Belo Horizonte

07/07/2023 04h00

Em 30 de junho, o mecânico Aldair Drumond, 61, sofreu um "constrangimento danado". Ele viajara de Barbacena até Belo Horizonte, trajeto que toma três horas de carro, para participar de uma audiência pública na Assembleia Legislativa do estado. O tema era "o caso de autoextermínio da escrivã da Polícia Civil Rafaela Drumond, que, segundo relatos, estava sofrendo assédio moral e sexual".

Rafaela era filha de Aldair e da assistente veterinária Zuraide Drumond, 57. Após ouvir um disparo na noite de 9 de junho, o casal, que se preparava para dormir, encontrou Rafaela sem vida no outro quarto da casa, na zona rural de Antônio Carlos, município vizinho a Barbacena. Três semanas depois, no dia 30, os dois só foram avisados do cancelamento da audiência minutos antes do início da sessão parlamentar. "Com o psicológico muito abalado", conforme relataram ao TAB, eles voltaram para casa.

Esse não foi o único constrangimento a que foram submetidos. No início da investigação sobre a morte da escrivã, os trabalhos eram conduzidos em Barbacena, a 40 km da delegacia de Carandaí, onde trabalhavam Rafaela, o delegado Itamar Cláudio Netto e o inspetor Celso Trindade de Andrade, investigados pelo assédio à escrivã. A veterinária Karoline Drumond, 37, irmã de Rafaela, contou que, nas primeiras semanas, "não tiveram esclarecimento nenhum a respeito da investigação".

Pela proximidade entre Carandaí e Barbacena, Aldair desconfiou da imparcialidade da apuração — "lá são todos compadres", afirmou. Após protestos da família, em 22 de junho a Corregedoria-Geral da Polícia Civil, em Belo Horizonte, assumiu o caso.

A escrivã da Polícia Civil Rafaela Drumond (à esq.) e sua mãe Zuraide Drumond (à dir.) - Reprodução/Redes sociais - Reprodução/Redes sociais
A escrivã da Polícia Civil Rafaela Drumond (à esq.) e sua mãe Zuraide Drumond (à dir.)
Imagem: Reprodução/Redes sociais

'Cara de delegada'

Rafaela cresceu no sítio em Antônio Carlos, rodeada por natureza. Quando criança, tinha o hábito de recolher animais nas ruas e sonhava ser veterinária. Ao entrar na juventude, porém, mudou de ideia: queria se tornar delegada de polícia.

Para Amanda Zaquini, 32, sua colega na faculdade de direito tinha o perfil para a função. "Rafaela era bem capricorniana, como ela mesmo brincava: séria, focada e determinada. Tinha cara de delegada", diz.

No fim do curso, lembra Aldair, Rafaela perguntou ao pai: "quero ficar por conta de estudar para o concurso, o senhor me apoia?" Os pais apoiaram, e Rafaela iniciou sua jornada de concurseira.

Para ganhar experiência, inscreveu-se em outros concursos além do de delegada. Passou na prova para policial penal e estava para assumir a vaga quando tirou o segundo lugar no concurso de escrivã da Polícia Civil. Optou por esse cargo, com o plano de seguir estudando para delegada.

"Ela ficou contente de ingressar na polícia", conta Jéssica Oliveira, 30, funcionária da prefeitura de Barbacena e amiga de Rafaela desde a adolescência, a quem descreve como "leal, carinhosa, forte, sempre disposta a defender os outros, além de bastante festeira, é claro".

As duas conversavam horas a fio sobre assuntos diversos, incluindo a vida profissional, mas desde meados de 2022 Rafaela respondia com evasivas se perguntada sobre o trabalho. Nessa época, ela havia sido transferida de Contagem para Carandaí.

Rafaela Drumond visitou São Paulo em julho de 2022 para a prova de delegada - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Rafaela Drumond visitou São Paulo em julho de 2022 para a prova de delegada
Imagem: Arquivo pessoal

'Polícia não é lugar de mulher'

Começaram ali os assédios, que a escrivã detalhou em mensagens de áudio enviadas a uma amiga, que pediu para não ser identificada. Após sua morte, os áudios foram divulgados à imprensa, bem como um vídeo gravado por Rafaela. Nele, um homem, segundo Rafaela um inspetor de polícia em Carandaí, a ofende, desafiando-a a denunciá-lo.

"Eu não vou esquecer do que você me chamou não, tá?", diz Rafaela. "É muito cabecinha fraca, é muito cabecinha fraca?", responde o homem, gargalhando. A escrivã afirma que ele "vai se arrepender do que falou", ao que o sujeito rebate: "ah, vou, por quê? Vai me processar?"

Nos áudios, Rafaela contextualiza o vídeo. "Um inspetor machista ficava me assediando sexualmente", contou a escrivã, acrescentando que ele era casado. Rechaçado muitas vezes, o homem passou a intimidá-la.

Certo dia, numa confraternização entre policiais, esse seu superior hierárquico lhe teria dito que "polícia não é lugar de mulher", xingando-a de "piranha" e argumentando que, se achava isso machista, Rafaela devia ser "petista". Ela não escutou calada. Respondeu que o chefe não tinha educação, e ao ouvir tal resposta o homem jogou a mesa para cima, derrubando as bebidas. Foi quando Rafaela começou a filmar.

O caso, disse Rafaela em outro áudio, foi relatado a Itamar Netto, delegado de Carandaí à época. "Ele não queria que eu tomasse providência, porque ia sobrar pra ele também", lamentou à amiga. Dos colegas na delegacia, todos homens, disse ter ouvido um conselho: que deixasse tudo "entrar por um ouvido e sair pelo outro".

Ante "tanto terrorismo", narra Rafaela, ela tentou transferência para outra cidade, mas, segundo um morador de Carandaí que falou ao TAB sob condição de anonimato, o delegado negou o pedido, pois "fazia de tudo para demiti-la".

"É isso que eu sofro, isso que tô sofrendo desde o ano passado", disse Rafaela, em áudio enviado em fevereiro deste ano. "Não contei para vocês porque quanto mais eu falo, mais a energia volta."

'Encarando-as com naturalidade'

Após a morte de Rafaela, Itamar Netto e Celso Trindade foram transferidos para Conselheiro Lafaiete. O TAB tentou contato com ambos por redes sociais, nas delegacias onde trabalharam antes e onde estão atualmente, e junto ao sindicato dos delegados, mas não conseguiu contato com nenhum dos dois.

Na avaliação do Sindicato dos Escrivães de Polícia, o correto seria que ambos fossem afastados. Marcelo Horta, 48, diretor jurídico do sindicato, diz não restar dúvidas de que o suicídio foi consequência dos assédios. Ele diz ainda que o caso não é isolado, mas fruto de uma "cultura arcaica" em que o assédio é tratado como normal.

E exemplifica: em 2023, seis policiais civis fizeram o mesmo em Minas. Além disso, na "avaliação de desempenho" a que estão sujeitos os policiais, no quesito "adaptabilidade" a nota máxima é atribuída somente a quem demonstra "capacidade de adaptação a pressões, resistindo ao assédio moral, assimilando mudanças de quaisquer naturezas, encarando-as com grande naturalidade, maturidade e boa vontade".

O sindicato cobrou a direção da polícia sobre os termos da avaliação, mas não obteve resposta.

Aldair volta hoje a BH para participar da audiência na Assembleia Legislativa, remarcada para esta sexta-feira (7), e para conversar com a advogada da família, que defende que a morte de Rafaela seja tratada como decorrente da "incitação ao suicídio".

O foco, agora, está no celular: "O celular da minha filha tem muita informação sobre os assédios, mas a delegada alegou que provavelmente não terá condições técnicas de desbloqueá-lo", reclama Aldair, para quem falta transparência à instituição. "Não confiamos mais na Polícia Civil nem na Corregedoria, queremos que o celular vá para o Ministério Público", exige. Karoline, a irmã, reforça: "Eles estão investigando, e eles são os investigados".

Em nota à imprensa, a Polícia Civil disse que "as investigações continuarão sendo conduzidas de maneira isenta e imparcial".