'Todo mundo ama a Barbie': a onda rosa é fenômeno cultural ou de marketing?
Na noite de quinta-feira (20), a neurocientista Marcelle Benac, 25, estava em seu dia de glória. Vestindo rosa dos pés à cabeça, ela incorporou a Barbie para a sessão de estreia, que aconteceu no Estação NET de Cinema, em Botafogo, no Rio. Além das roupas e do salto alto, a cor rosa decorava a sombra nos olhos, o esmalte e até a capinha do celular de Marcelle.
Para ela, uma mulher trans, estar ali tinha significados mais profundos. Quando criança, no interior de Sergipe, ela era fã da boneca, mas tinha vergonha de ser associada aos filmes da Barbie. Pedia para a senhora que trabalhava em sua casa comprar os DVDs e assistia escondida às animações "Barbie em Vida de Sereia", "Barbie: Moda e Magia" e "Barbie: Escola de Princesas", seus favoritos.
Assistir ao novo longa da Barbie em 2023 montada como uma boneca da vida real era uma questão de identidade, e Marcelle estava radiante. "Me sinto livre. Acho que é assim que todas as mulheres devem se sentir", disse ela. "Barbie ressignifica o feminino na diversidade que ele tem. Muita gente fala que nós, mulheres trans, reforçamos estereótipos, mas a gente só quer existir da forma que nos sentimos confortáveis."
Desfile de looks
"Que graça, que elegância!", dizia a organizadora do evento no Estação NET, Joann Jabur, narrando o desfile de uma Barbie bailarina, girando em frente à tela do cinema. O espaço recebeu, antes da sessão de 18h30, uma competição de looks da Barbie.
Para delírio da plateia, além da bailarina, teve Barbie rollerblader, Barbie não-binária, Barbie fazendo reveal de um segundo look e todos os tons possíveis de rosa. Ficou a cargo do público, que lotou a sala de cinema, escolher a vencedora. Também teve desfile de Kens, mas ninguém prestou muita atenção.
"Eventos assim justificam a existência do cinema", empolga-se Joann, que trabalha no Estação há pouco mais de um ano. "O legal do cinema é o encanto, a experiência coletiva e a produção de memória."
O tradicional cinema de rua em Botafogo quase foi despejado no ano passado e, como a maioria dos aparelhos culturais do país, passou por uma grave crise nos últimos anos. A aglomeração de pessoas que engarrafou o corredor principal do prédio parecia, então, coisa de outro mundo. "Eu não lembro quando foi a última vez que vi um lançamento tão lotado como esse", comemorou o organizador.
A caixa da famosa boneca e a exposição de Barbies clássicas serviam de espaço instagramável para o público caprichar na selfie e registrar presença no evento do ano.
Bomba rosa-choque
A estudante de cinema Giulia Butler, 21, neta da atriz Betty Faria, usava um aplique de cabelo preso em rabo de cavalo alto, maquiagem rosa e unhas postiças decoradas. Ela já tinha visto o filme numa pré-estreia — e não gostou. "Me senti assistindo a um comercial cansativo de duas horas em que as questões tratadas de forma rasa e a diretora se perdeu em uma briga financeira [com a Mattel]", disse Giulia, sem rodeios. "O arco de alguns personagens parece que foi retirado de Os Feiticeiros de Waverly Place [série da Disney]".
Ainda assim, a estudante de cinema voltou para não desperdiçar seu look Barbie, planejado três semanas antes. Uma amiga que cursa moda costurou o vestido e um maquiador passou duas horas 'montando' seu visual. "A verdade é que todo mundo ama a Barbie", admite Giuglia, que presenteou o público com uma representação teatral da boneca.
O fato é que, já há algumas semanas, o rosa começou a aparecer ostensivamente em comidas, lanchonetes, prédios e transporte coletivo pelo país.
Em São Paulo, alguns vagões no metrô foram decorados com a cor e a imagem dos personagens do filme. Em Salvador, uma comerciante colocou anilina rosa na massa do acarajé, atraindo a mídia e a reprovação da Associação Nacional das Baianas de Acarajé, por se tratar de um alimento ancestral e de origem religiosa. Até contas oficiais de órgãos públicos entraram na brincadeira, usando memes e filtros personalizados.
Na moda, Barbie inspira novas coleções de lojas de departamento e movimenta o comércio popular. Na última quarta-feira, véspera da estreia, um tsunami rosa-choque dominava a feirinha da Pavuna, na zona norte do Rio. Roupas, pulseiras, colares e maquiagem temáticos eram vendidos nas barraquinhas. Blusinhas da Barbie custam de R$ 25 a R$ 50. Até lojas que não vendiam roupas com o logotipo da marca vestiram os manequins com modelitos rosa.
Por onde se passa, a sensação é de que vivemos na "Barbielândia". E resistir a isso parece tarefa inútil.
'Cult antes da estreia'
O diretor André Sturm, exibidor do Petra Belas Artes, estranhou quando, na semana anterior, viu uma fila na rua antes mesmo de abrir as portas do tradicional cinema de rua de São Paulo. Era o início das vendas do "Noitão" especial Barbie, que acontece nesta sexta (21) e sábado (22), madrugada adentro. "Sete mil pessoas entraram na mesma hora na internet e derrubou a ticketeira. Quando voltou ao ar, os ingressos acabaram em quatro minutos", conta.
Foi a primeira vez que viu tal cena desde que assumiu, em 2004, a direção do cinema, conhecido pela sua programação mais voltada aos filmes de arte. "A gente não passa 'Velozes e Furiosos 10', só quando tem um 'quê' cult. Barbie, antes mesmo de estrear, virou filme cult, esse público está louco para ver esse filme."
A última vez que Roberto Sadovski, crítico de cinema e colunista do UOL, presenciou algo massivo, para além do cinema, foi com a estreia de "Batman", de Tim Burton, em 1989. "O Batman estava em todo lugar, todo mundo meio que se sentia obrigado a ver o filme. A gente teve depois 'Titanic', 'Os Vingadores', mas ninguém ficava andando de Vingadores na rua", observa.
"Agora vejo muito fã de Barbie saindo do armário, que não admitia, mas encontrou um ambiente pra dizer 'opa, sempre gostei'", diz. "Mas é menos um evento cultural do que de marketing", acredita.
O inegável é que a Barbie 2023 está mais pop do que nunca. Continua loira e com corpo esbelto — a mesma imagem que a tornou um ideal de feminilidade para crianças desde os anos 1950, e que passou a se vista, décadas depois, como símbolo cultural de sexismo e racismo.
"Não sei se esse fenômeno tem a ver com a mensagem que o filme possa ter ou não, até porque eu acho que não tem nenhuma. Mas não tem como: é um comercial gigante de um brinquedo", observa Sadosvki. "Os fenômenos culturais são cíclicos. Agora o ciclo é dizer: 'É divertido, pós-moderno e vanguarda rir dessas coisas. Tudo bem curtir, porque estamos na ironia também'."
Antropólogo e colunista do TAB, Michel Alcoforado, também acredita que a onda rosa faz parte da recuperação de uma marca desgastada para continuar a fazer sentido nos dias (e com as pautas) de hoje.
"A indústria de cinema vem fazendo isso muito bem, a ideia de que o mito, para continuar existindo, precisa ser atualizado. A ideia de Barbie está na mesma esteira da Ariel negra", observa, lembrando da nova versão live-action de "A Pequena Sereia". E, como todo bom fenômeno, captura a atenção de gregos e troianos. "A problemática da Barbie permite que Damares, que acredita em escola de princesa, e as feministas da terceira e quarta onda, também valorizem esse tipo de coisa."
'Narrativa de compra'
Todo esse barulho em cima de um filme, diz o antropólogo, é reflexo do nosso tempo — regido, segundo ele, por uma nostalgia sem memória. "A nostalgia clássica é a saudade de um tempo que você viveu. Agora, não há compromisso com o passado. A moça é loira, ela usa rosa e ponto. Fora isso, todo o resto brinca com um conjunto de referências que não tem nenhuma correlação com a história da Barbie. De certo modo, refaz as nossas memórias do passado, faz a gente voltar a gostar de Barbie", explica.
Alcoforado nota que as mães mais conectadas demonstravam certo incômodo quando as filhas pediam bonecas. "O filme coloca as coisas em novos lugares, reinventa a tradição para que a tradição continue existindo. Eu não tenho a menor dúvida de que as vendas de Barbie vão explodir", acredita.
Para o antropólogo, "Barbie", o filme, constrói algo que ele denomina de "narrativa de compra". "As marcas estão apostado em uma longa narrativa antes, para que os consumidores entrem de cabeça no universo daquele produto antes de comprar. Isso é determinante para o boom. É um alargamento do processo de consumo para os produtos terem mais sentido pra gente."
Assim, a imagem da boneca, que tem mais de 60 anos, é reconstruída em algo que faça sentido hoje. "Pouco importa se o filme vai ser bom, o que importa é como vou me apropriar dessa história", diz. "Quanto mais pontos de contato eu tiver, mais eu atualizo esse mito, tal qual estamos vendo agora com essa loucura rosa pra todo lado."
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