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Sem IA: ex-empresário traz Elis de volta, aos 28 anos, agora no cinema

Cena do filme "Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você", de Roberto De Oliveira - Divulgação/O2 Play
Cena do filme "Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você", de Roberto De Oliveira
Imagem: Divulgação/O2 Play

Do TAB, em São Paulo

16/07/2023 04h01

A comoção foi imediata quando Elis Regina apareceu num comercial de propaganda de carro há algumas semanas. Com a ajuda de IA (Inteligência Artificial), foi possível vê-la, ao lado da filha, Maria Rita, 41 anos depois de sua morte. Não será a última vez em que sua imagem voltará às telas. Ainda este ano, Elis renasce nos cinemas, dessa vez sem auxílio do deepfake, com os cabelos curtos encaracolados e o sorriso marcante eternizado em seus 28 anos.

O documentário "Elis & Tom, Só Tinha que Ser Com Você" traz imagens inéditas da gravação do célebre disco "Elis & Tom", de 1974. O material é precioso por quebrar a quarta parede dos estúdios em Los Angeles, onde Elis Regina e Antonio Carlos Jobim criaram o clássico da música brasileira.

As imagens estavam há quase cinquenta anos guardadas em rolos de 16 mm, em posse do produtor Roberto de Oliveira, que dirige o documentário. Ele tinha 26 anos naquele 1974, dois anos a menos que Elis, e iniciava, com ela, sua primeira (e única) experiência como empresário. Na época, em plena ditadura, a cantora era pichada entre jornalistas e universitários por ter cantado o Hino Nacional Brasileiro nas Olimpíadas do Exército.

"Ela queria se aproximar do público universitário, mais progressista, e deixar claro para as pessoas que ela não era uma pessoa de direita", ele conta. "Ficou uma campanha contra ela, mas as origens da Elis eram trabalhistas."

Além de levá-la a fazer o chamado Circuito Universitário, turnês que Roberto criou pelos centros acadêmicos interior afora, o novo empresário tinha em mente um projeto de reposicionamento frente à crítica e aproveitou a ideia da gravadora Philips em dar como presente à estrela do casting um disco especial pelos dez anos de carreira.

Cena do filme "Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você", de Roberto De Oliveira - Divulgação/O2 Play - Divulgação/O2 Play
Imagem: Divulgação/O2 Play
Cena do filme "Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você", de Roberto De Oliveira - Divulgação/O2 Play - Divulgação/O2 Play
Imagem: Divulgação/O2 Play

"Ela poderia sair dessa história, desde que a gente fizesse um reposicionamento para melhorar o prestígio dela. Eu já estava com esse negócio de fazer um dueto. Falei do Tom e ela topou na hora", relembra. "Mas era uma ideia muito improvável. Havia algumas diferenças entre eles."

Quando o filme estrear no circuito comercial, em 21 de setembro — até agora foi exibido em festivais como a 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e o In-Edit Brasil —, será possível ver de perto a relação entre dois gênios: da grande beleza criada pelo encontro musical a um certo "climão" que pairava no estúdio.

"Logo no começo, já falando sobre os arranjos, o bicho pegou", conta Roberto. Elis ligava de Los Angeles ameaçando abandonar as gravações. "Eu tinha um bom entendimento com ela, peguei logo o avião para apagar o incêndio, porque ela queria voltar ao Brasil."

Cena do filme "Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você", de Roberto De Oliveira - Divulgação/O2 Play - Divulgação/O2 Play
Imagem: Divulgação/O2 Play

Turnês nas universidades

O paulista Roberto de Oliveira começou na área artística precocemente. Irmão do cantor e compositor Renato Teixeira, recebeu seu primeiro trabalho na área pelas mãos de André Midani, na época presidente da gravadora Philips. Tinha 19 anos e o propósito de coordenar uma rede de venda de discos nas universidades.

"Ele sabia que eu estava interessado em fazer shows nas universidades e queria colocar barraquinhas para vender os discos, principalmente de artistas censurados que os lojistas tinham medo de comprar", conta.

Era um período de criatividade fértil na música brasileira, mas de um mercado ainda pequeno. "Não tinha muito local para se apresentar, não existia ainda patrocínio. Ou você fazia o show no meio de um baile ou em teatros pequenos, ficava difícil de se pagar."

As vendinhas deram certo e Midani apoiou a ideia de levar artistas do seu casting para se apresentar nas universidades do interior de São Paulo, Minas Gerais e Paraná.

Produtor e diretor Roberto de Oliveira - João Wainer/Divulgação - João Wainer/Divulgação
Ex-empresário de Elis Regina, o produtor e diretor Roberto de Oliveira resgata imagens históricas da gravação de 1974
Imagem: João Wainer/Divulgação

O poeta e cantor Vinícius de Moraes inaugurou o chamado Circuito Universitário em 1970. Os shows aconteciam à tarde, pegando a mudança de turno das turmas. O esquema era de turnê: uma cidade por dia.

A primeira experiência ficou gravada não em película, mas num caderninho onde Roberto anotava os dias ao lado do poeta. "Convivi muito com ele. Íamos nós dois no carro, eu dirigindo e ele bebendo. Tinha uma caixa de Johnny Walker Black no porta-malas. Tomava um litro por dia." Seu próximo projeto, ele anuncia, será uma ficção baseada nessas lembranças.

O circuito deu tão certo que todos os artistas queriam participar. Roberto produziu shows de Gal Costa, Chico Buarque, Quarteto em CY, Trio Mocotó, Zimbo Trio e o encontro de Luiz Gonzaga e o filho Gonzaguinha. Tudo isso nos primeiros anos do AI-5, com direito a censores na plateia.

"Lá no fundo tinha aqueles senhores de gravata e terno, eram os mesmos em todas as cidades. Os caras ficavam muito preocupados com uma movimentação estudantil daquele porte. Geralmente eram artistas mais à esquerda, alguns tachados de comunistas, não tinha papo", conta.

Elis entra nesse pacote. Na época, ela não era exatamente uma artista politizada, o que pode explicar o fatídico episódio do show para o Exército. "Ela não deu muita importância, era mais um show, embora existam versões de que ela teria sido ameaçada. Quando ela me procurou, a gente falou do problema e falou da solução, sem ficar olhando para trás. Ela queria ter mais presença no público formador de opinião. O anseio dela era ser mais respeitada."

Cena do filme "Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você", de Roberto De Oliveira - Divulgação/O2 Play - Divulgação/O2 Play
Imagem: Divulgação/O2 Play

O circuito universitário foi certeiro para esse reposicionamento, e Elis convidou Roberto para ser seu empresário — mesmo ele tendo apenas 22 anos. O próximo passo foi em Los Angeles, com Antônio Carlos Jobim.

Tinha que Ser com Você

O ano de 1974 tinha acabado de começar quando Jobim recebeu Elis e César Camargo Mariano, seu arranjador, produtor e marido, em Los Angeles, nos Estados Unidos, onde o maestro morava desde quando entrou no mapa da música mundial. A cena, com o sol californiano ao fundo, é uma das que abrem o filme.

A tensão entre eles começou já na hora de discutir a produção do disco. O compositor, em seus 47 anos, achou que estaria por trás dos seus próprios arranjos, e estranhou ver aquela turma de vinte e poucos anos definir os trabalhos.

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Imagem: Divulgação/O2 Play
Elis, César Camargo Mariano e Antônio Carlos Jobim nos ensaios de "Elis & Tom" - Divulgação/O2 Play - Divulgação/O2 Play
Elis Regina, César Camargo Mariano e Antônio Carlos Jobim nos ensaios de "Elis & Tom"
Imagem: Divulgação/O2 Play

"O Tom era um cara super agradável, simpático, mas muito irônico e às vezes usava um pouco de sarcasmo. E aí saíram umas trombadas", lembra o diretor. "Havia uma disputa ali para onde levar o disco. Na cabeça dele, ele tinha que botar aquele trem para andar numa linha. Eram arranjos já consagrados."

Os comentários deixaram Elis insegura. Nos telefonemas para o Brasil, ela relembrava o início da carreira, quando supostamente foi recusada por Jobim para participar do musical "Pobre Menina Rica", em 1963. "Começou com arranjo e acabou virando uma coisa de relacionamento", diz o diretor. Elis reagia à sua maneira. "Não é que ela era briguenta, ela esperneava muito para se defender. Tinha todo tipo de interesse em volta dela, não tinha uma rede de proteção para esse mercado que é agressivo. Ela ficou com essa fama, mas era uma pessoa doce."

No fim, não precisou de muita intervenção de Roberto. O incêndio foi controlado com música. "Eles só se entenderam mesmo quando as genialidades se encontram. A música começa a rolar, eles percebem a mágica."

'Depositário de histórias'

Roberto, que já produzia programas especiais de música para a TV, decidiu registrar tudo com uma câmera 16 mm. Juntaram-se a ele o diretor Jom Tom Azulay, até então um jovem diplomata fissurado em cinema direto, e Fernando Duarte, fotógrafo vindo do Cinema Novo.

Cena do filme "Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você", de Roberto De Oliveira - Divulgação/O2 Play - Divulgação/O2 Play
Imagem: Divulgação/O2 Play
Cena do filme "Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você", de Roberto De Oliveira - Divulgação/O2 Play - Divulgação/O2 Play
Imagem: Divulgação/O2 Play

O resultado foram cinco horas de filme, revirados há cinco anos. "Eu estava um pouquinho preocupado com a qualidade e a preservação. A gente sabe se está com algum problema por causa do cheiro [do filme]", diz Roberto. "Eu me sinto assim meio depositário dessas histórias."

Nos anos 2000, muitos dos registros feitos por Roberto foram lançados em boxes de DVD, em séries documentais sobre Chico Buarque, Rita Lee e, inclusive, Elis e Tom.

Embora tenha sido empresário de Elis por pouco mais de um ano, seu caminho cruzou com a cantora muitas outras vezes. O último show, "Trem Azul", foi registrado por Roberto um mês antes da cantora morrer. "Nunca vi ela cantar tão bem, mas foi uma gravação estranha, não sei dizer para você o que era", diz, hoje ciente do período difícil que a cantora passava.

Cena do filme "Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você", de Roberto De Oliveira - Divulgação/O2 Play - Divulgação/O2 Play
Imagem: Divulgação/O2 Play

Ele pretende relançar essas séries documentais em streaming — e abraçar a tecnologia para resgatar da melhor forma possível o passado que ainda guarda de forma analógica.

Para "Elis & Tom", por exemplo, a inteligência artificial ajudou a criar a trilha sonora. "Tem elementos que saíram das 18 fitas de som ambiente. É um violino, um ruidinho, que a gente abusou da tecnologia para fazer o ambiente sonoro do filme."

Para o diretor, a tecnologia pode ajudar a colocar figuras históricas da música em contato com um novo público. "É incalculável o número de telas hoje. Eu não faço esse trabalho com uma pegada nostálgica, penso muito na geração que não conhece a Elis e o Tom, mas que já ouviram Anitta cantando 'Garota de Ipanema'."

O importante, ele acredita, é "manter o mito" — seja num documento histórico, como o filme, ou na versão digitalizada de Elis cantando seu maior sucesso, dirigindo uma Kombi. "O mito não morre. É quase um novo ser, começa ter vida própria. Acho que as pessoas viram Elis de maneira alegórica na propaganda e vão ver Elis mais real no filme. O importante é que a música dela está aí, cada dia mais executada. O João Marcello [Boscoli], filho dela, sempre brinca: a cada dia ela está cantando melhor."

A julgar pela Elis de 1974, que volta a cantar nos cinemas, não há como negar.