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'No nazismo, muitos não agiram': casal brasileiro vai a protestos em Israel

Os amigos não convidam mais o casal de brasileiros Rafael Stern, 35, e Gal Wajskop, 39, para o samba aos sábados num bar em Tel Aviv. O geógrafo carioca e a guia turística paulistana trocaram a cantoria pelos gritos de protesto nas manifestações pela democracia em Israel, onde moram. No dia 4 lá estavam eles, em frente ao prédio do Ministério da Defesa, contra a reforma promovida pelo premiê Benjamin Netanyahu que, entre outras coisas, limita o poder da Suprema Corte de Israel e de seus conselheiros sobre o governo e o parlamento.

Antes mesmo da investida explícita contra o Judiciário do país, há meses dezenas de milhares de israelenses têm saído às ruas contra a coalizão de Netanyahu, o gabinete de direita mais radical de sua história. Alguns dos atos chegaram a reunir 100 mil pessoas em Tel Aviv e protestos semelhantes eclodiram em 150 pontos do país. Embora militantes ativos como Rafael e Gal sejam minoria entre os quase 10 milhões de israelenses, pesquisas mostram forte apoio à causa dos que pedem "de-mo-cra-cia" num país até então considerado exemplar no quesito.

"Quando vi o resultado das últimas eleições, em novembro passado, comecei a me desesperar", conta Rafael, que é geógrafo do departamento de pesquisas de Geociências do Weitzmann. "E aconteceu de eu estar vendo TV no dia que Yariv Levin [Ministro da Justiça e Vice-Primeiro Ministro] entrou ao vivo para anunciar o projeto de reforma, que eu chamo de golpe. Me senti mal como se os tanques tivessem saído às ruas para tomar a Suprema Corte."

Para muitos israelenses, o governo de extrema-direita deu passo na direção no autoritarismo
Para muitos israelenses, o governo de extrema-direita deu passo na direção no autoritarismo Imagem: Arquivo pessoal

Caminho autoritário

Sob o pretexto de combater "a crescente intervenção do sistema judiciário nas decisões do gabinete e na legislação do 'knesset' [parlamento israelense]", Levin anunciou o pacote de emendas destinadas a limitar o poder de fiscalização da Suprema Corte de Israel, além de intervenções em áreas como educação e saúde.

"Fomos ao primeiro protesto em Jerusalém, onde a Gal estava trabalhando naquele dia", lembra Rafael, cuja mulher atua como guia turística licenciada pelo estado. "Desde então, temos estado muito engajados nas manifestações", diz.

Para o imigrante brasileiro, o momento é grave e expressa duas formas inconciliáveis de entender a vida e a política. "Vivemos em uma época de muitas realidades paralelas, pessoas convencidas de teorias da conspiração, negação das mudanças climáticas, chegada de extraterrestres... Não dá nem pra conversar. Não estamos falando da mesma coisa, é enlouquecedor", afirma ele, em referência às ideologias conspiratórias em moda no mundo todo e ao atual momento de radicalismo político e religioso em Israel.

'Quando vi o anúncio da reforma, que chamo de golpe, me senti mal como se tanques tivessem tomado a Suprema Corte', diz Rafael
'Quando vi o anúncio da reforma, que chamo de golpe, me senti mal como se tanques tivessem tomado a Suprema Corte', diz Rafael Imagem: Arquivo pessoal
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Público variado, mas sem árabes

A reportagem do TAB acompanhou o casal de brasileiros em meio a um público variado, composto por israelenses natos, velhos, jovens, famílias, crianças. O clima em geral é descontraído, com batucadas e cânticos como "vocês caíram na geração errada, não vamos parar" e "democracia ou revolução". Mas frequentemente fica tenso com a chegada da polícia montada e dos canhões de água. A ausência de árabes nas marchas é sintomática, seja porque pensam que a reforma não os afeta particularmente, seja por já terem uma vida difícil num país que os considera cidadãos de segunda classe.

"Em uma ocasião, um policial montado correu na nossa direção e o cavalo pisou no pé do Rafa", conta Gal. "Ele ficou um tempo sem conseguir se mexer. Chorei de tristeza pelo que estava acontecendo, pela cena de violência. Cavalos? Polícia espancando pessoas? Foi devastador."

Rafael conta que também chorou em outros momentos. "Foi quando vi um grupo de veteranos da guerra do Yom Kippur [de 1973] que defendia o direito dos reservistas voluntários de não servirem o Exército sob um governo no qual não confiam", lembra. "Concordo com eles, mas tenho muito medo de que tudo isso afete a unidade e a preparação militar israelense. Chorei de medo naquele dia."

O brasileiro admite ser difícil manter o otimismo. "Acredito que em certas circunstâncias estar desesperado é sinal de saúde mental", argumenta. "Não me sinto desesperada, sinto tristeza", ressalta Gal. "Acho que, com o nosso ativismo, além de nos opormos, estamos nos preparando para o que está por vir. E me sinto mais preparada para, se der merda, saber que estive no lado consciente da história."

Sobre os que não se manifestam por preguiça ou indiferença em relação ao risco do autoritarismo no país, a brasileira lembra: "Durante o nazismo, muitas pessoas sabiam, mas decidiram não agir. Esse é o perigo".

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'Não pinto Israel para minha mãe como ela pintou para mim', afirma Gal
'Não pinto Israel para minha mãe como ela pintou para mim', afirma Gal Imagem: Arquivo pessoal

Fim da idealização

Gal conta que chegou a Israel com quase 18 anos, carregando a imagem do país idealizado de que falam os movimentos judaicos. Nunca tinha saído do Brasil. "Eu não sabia o que era outro país, nem outra mentalidade. Foi um choque cultural chegar aqui." Ela diz que teve dificuldades de adaptação aos hábitos mais rígidos e tradicionalistas dos israelenses.

"Acho que pela primeira vez, com essas manifestações, sinto que faço parte daqui. Sinto que quero coisas para Israel, me preocupo com seus valores. Pensei que estava sozinha, e quando vi, ao meu redor, 100 mil outras pessoas estavam nessa comigo. Vejo que este Israel [que luta] também existe."

Já Rafael chegou a Israel depois, em 2016, embora já tivesse passado dois anos no país. Como judeu da diáspora — cuja família abandonou o Oriente Médio por causa das perseguições históricas —, ele afirma que sempre teve curiosidade de morar lá. "Sempre fui um sionista, ligado aos movimentos judaicos."

Ele conta que no Brasil, para se sentir parte da comunidade judaica, acabava fazendo coisas e participando de eventos que não desejava. Agora que mora em Israel, não tem mais que "ir ao festival de dança do clube Hebraica" ou mesmo praticar o Yom Kippur — o dia mais sagrado do judaísmo em que os religiosos jejuam — para se sentir judeu. "Agora não vou mais à sinagoga porque não sou religioso, e não me sinto culpado", confessa.

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'Israel mantém uma ocupação militar há 50 anos, não dá para ser uma democracia com isso', afirma o brasileiro
'Israel mantém uma ocupação militar há 50 anos, não dá para ser uma democracia com isso', afirma o brasileiro Imagem: Maya Siminovich/UOL

Com ou sem bandeira?

Rafael e Gal chegam aos protestos de bicicleta, ele carregando uma bandeira de Israel e ela, tocando tamborim — a brasileira diz que ainda não consegue agitar a bandeira de Israel. Parece, para ela, um símbolo nacionalista de direita, embora centenas de manifestantes pró-democracia têm agitado essas bandeiras para demonstrar unidade.

Para Rafael, carregar o símbolo da nação israelense também não é algo trivial. "Deu muito trabalho, mas consegui. No Brasil pós-ditadura militar, tudo que tinha a ver com exército e nacionalismo me era estranho, inclusive a bandeira. E, quando cheguei aqui, vi que a valorização da bandeira e do exército também eram típicos dos nacionalistas de direita. Até que vi os manifestantes se apropriarem da bandeira e achei muito bonito."

O casal concorda, no entanto, na avaliação de que a ocupação israelense da Palestina é o mal endêmico que trouxe o país ao ponto em que está.

"Israel mantém uma ocupação militar há mais de 50 anos e não dá para ser uma democracia com isso. Os tribunais lidam com dois sistemas jurídicos diferentes, com uma população com menos direitos, e uma polícia que se comporta de maneira diferente nos territórios ocupados."

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Aos que chamam os manifestantes de anarquistas, Rafael responde com um sorriso. "Não sou anarquista, faço parte disso, pago impostos, não sou contra os Estados. Acredito é que os judeus têm o direito de viver em um país democrático, progressista e inclusivo."

Já Gal diz que, ao contrário do Israel idealizado que recebeu de boca de sua mãe e da comunidade judaica paulista, ela não quer devolver uma imagem irreal a seus parentes. "Não pinto Israel para minha mãe como ela pintou para mim. Ela é uma superdefensora do país. Não sei se ela ou muitos lá sabem o que de fato está acontecendo aqui. Pode-se sim criticar Israel. Tem que abrir essa luz para que esse país se torne algo melhor e mais justo."

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