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'Justiça nunca entrou aqui': peritos escavam quintal de Ustra pela 1ª vez

Início das escavações no antigo DOI-Codi de São Paulo - André Porto/UOL
Início das escavações no antigo DOI-Codi de São Paulo
Imagem: André Porto/UOL

Lucas Veloso

Colaboração para o TAB, de São Paulo

08/08/2023 04h01

Não eram nem 9h quando dois trabalhadores de uma empresa hidráulica, munidos de perfurador de solo, martelos e outras ferramentas, abriram um buraco de 30 cm no espaço onde funcionou o DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna), órgão de repressão da ditadura militar (1964-1985), nos fundos do 36° Distrito Policial, na rua Tutoia, zona sul de São Paulo.

Desde a última quarta-feira (2) até 14 de agosto, pesquisadores estão escavando o local em busca de vestígios da história: um dos objetivos é tentar encontrar material genético de vítimas, como sangue, além de frases e escritos feitos por presos políticos nas paredes e mudanças nas estruturas do prédio a fim de entender como o regime funcionou ali — por enquanto, não há expectativa de encontrar corpos. Essa é a primeira investigação de arqueologia forense num antigo porão da ditadura.

Ligada a instituições públicas de pesquisa, como Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), a equipe é coordenada pela historiadora Deborah Neves, coordenadora do GT (Grupo de Trabalho) Memorial DOI-Codi.

"Trabalhamos com metodologia científica para contribuir com uma história que já está sendo construída há muito tempo por outros historiadores, pesquisadores e sobreviventes", resume ela. "Um dos prédios aqui era para ser um fórum. Uma coisa que nunca entrou aqui foi a Justiça."

Início das escavações no antigo DOI-Codi de São Paulo - André Porto/UOL - André Porto/UOL
Imagem: André Porto/UOL
Início das escavações no antigo DOI-Codi de São Paulo - André Porto/UOL - André Porto/UOL
Imagem: André Porto/UOL
Início das escavações no antigo DOI-Codi de São Paulo - André Porto/UOL - André Porto/UOL
Imagem: André Porto/UOL

Uma das preocupações de Deborah é aproximar a arqueologia das pessoas. Durante os doze dias ininterruptos de escavações, a equipe está fazendo uma programação com oficinas para professores e cursos de formação para alunos, além de visitas abertas a quem tiver interesse em acompanhar parte dos trabalhos.

Apesar do empenho, esforço e suor na abertura dos espaços, um dos trabalhadores observava o vaivém dos pesquisadores sem entender exatamente o objetivo dos buracos. "Sabe para que é isso?", perguntou um deles. Ao ouvir que se tratava de uma pesquisa sobre o que aconteceu lá, disse que era então importante — em Salvador, cidade onde nasceu e cresceu, nunca ouviu falar da ditadura militar: "Lá, não se falava disso".

Outro funcionário ficou surpreso ao ver jornalistas e câmeras da TV no local. "Meus irmãos vão me ver [na TV]. Estou parecendo o Gasparzinho, de tanta poeira", brincou ele, que há anos trabalha na construção civil.

A historiadora Deborah Neves, no início das escavações no antigo DOI-Codi de São Paulo - André Porto/UOL - André Porto/UOL
A historiadora Deborah Neves, no início das escavações no antigo DOI-Codi, zona sul de SP
Imagem: André Porto/UOL

Pioneiros

Nas escavações, a equipe usa diversas ferramentas da arqueologia forense. As luzes especiais ajudam a ver melhor as áreas de interesse. O luminol é aplicado para detectar traços de sangue e outros fluidos corporais invisíveis a olho nu, revelando potenciais cenas de crime ou indícios importantes.

Foi nas instalações do DOI-Codi, por exemplo, que o jornalista Vladimir Herzog (1937-1975) foi torturado e morto.

A foto mais famosa do caso mostra Vlado enforcado com um cinto em uma das salas do prédio — o local exato onde a montagem foi feita ainda segue em investigação dos especialistas. Segundo a Comissão Nacional da Verdade, ao menos 45 presos políticos morreram no centro de repressão.

"Todos os métodos utilizados são não destrutivos, garantindo a preservação do contexto arqueológico", lembra a arqueóloga forense Claudia Plens, professora do departamento de história da Unifesp.

Início das escavações no antigo DOI-Codi de São Paulo - André Porto/UOL - André Porto/UOL
Imagem: André Porto/UOL
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Imagem: André Porto/UOL
Início das escavações no antigo DOI-Codi de São Paulo - André Porto/UOL - André Porto/UOL
Imagem: André Porto/UOL

O entorno é basicamente residencial. Os pesquisadores fizeram testes e viram que os barulhos de dentro do prédio podem ser ouvidos nas casas ao redor, o que indica que a vizinhança podia ouvir os gritos dos torturados no DOI-Codi.

Segundo testemunhos, uma das técnicas de tortura mais usadas era a "cadeira do dragão", uma de madeira que lembra a antiga cardeira de barbearia, mas com placas de metal conectadas a cabos elétricos que davam choques em quem estava sentado nela.

Um dos prédios anexos onde estão sendo feitas as escavações é a antiga casa do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), hoje um depósito da Polícia Civil. "Ele dormia ouvindo tudo que acontecia", cita um dos pesquisadores.

Os pesquisadores pretendem organizar um memorial no antigo DOI-Codi. Enquanto a ideia caminha, eles querem fazer uma plataforma virtual para divulgar as informações coletadas até 2025.

Antigo DOI-Codi de São Paulo - André Porto/UOL - André Porto/UOL
Anexo na Vila Mariana onde morou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra
Imagem: André Porto/UOL