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Condenado por mortes no Educandário voltou a cometer crime após prisão

Laércio Basílio de Lima "Nenê", condenado por estupro, homicídio e assalto na chacina das "Feras do Educandário", que chocou São Paulo em 1982, voltou a cometer crimes sexuais após cumprir 25 anos de pena. Com uma sentença originalmente a 38 anos de prisão, ele teve a pena perdoada pela Justiça em 2008.

Este ano, ele foi sentenciado a mais dois anos de prisão em regime aberto após importunar sexualmente duas mulheres no município de Praia Grande (SP), em 2018. A pena é considerada branda por juristas devido ao histórico de reincidência.

Questionado pelo TAB, o Tribunal de Justiça de São Paulo afirma que o caso está sem segredo de Justiça e que os magistrados têm independência para decidir seguindo os autos e por livre convencimento.

No crime dos anos 1980, Laércio e mais dois comparsas renderam um grupo de quatro pessoas —um homem e três mulheres— com facas e arma de fogo na região do Jardim Educandário, na zona oeste de São Paulo. As três foram esfaqueadas e sofreram violência sexual por três horas. Uma delas morreu.

O homem de 22 anos, namorado de uma das sobreviventes, assistiu à jovem ser violentada antes de ser lançado para a morte em uma pedreira abandonada com cerca de 30 metros de profundidade. Ele estava amarrado e o corpo só foi encontrado dias depois.

Reportagem  publicada no jornal Notícias Populares sobre o caso
Reportagem publicada no jornal Notícias Populares sobre o caso Imagem: Reprodução/Notícias Populares

"O Fera do Educandário"

Segundo juristas ouvidos pelo TAB, a ficha criminal de Laércio demonstra que a Justiça foi "benevolente" na nova condenação e, aparentemente, não levou em conta a gravidade dos crimes cometidos por ele ao longo da vida.

Laércio progrediu para o regime semiaberto em 2004. Dois anos depois, cometeu uma nova infração sexual. Em 2008, a 11ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo perdoou o restante da pena, e ele voltou à condição de réu primário.

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"O indulto foi muito abrangente para casos que poderiam ser tratados com mais severidade. Ele tinha homicídio, tentativa de homicídio, foi um caso gravíssimo, que poderiam ter maior peso para a concessão", explica a advogada criminalista e mestre em direito penal Jacqueline Valles.

Outras lacunas da legislação beneficiaram Laércio. Quando foi detido por "ato libidinoso" no município de Taboão da Serra, na Grande São Paulo, em 2006, ainda não existia o crime de importunação sexual, criado apenas em 2018. Assim, ele assinou um termo circunstanciado e foi liberado.

Não está claro se a Justiça foi informada sobre o episódio de 2006 antes de conceder o perdão para Laércio em 2008. A infração de Taboão não é citada no documento sobre o caso ao qual o TAB teve acesso.

Questionado pela reportagem, o TJ-SP afirma apenas que o indulto tem como base o decreto 4904/03, um benefício concedido pela Presidência da República.

Na ocasião, o decreto do governo do primeiro mandato de Lula (2003-2006) concedeu perdão a quem houvesse praticado crimes violentos, dolosos ou com grave ameaça, caso não fossem registradas penalidades graves na cadeia nos dois anos anteriores.

O perdão presidencial não foi concedido para crimes hediondos, como tortura ou homicídio, mas Laércio foi condenado antes de a lei ser colocada em vigor, em 1990. Por isso, acabou beneficiado.

Mata nativa do terreno onde foram cometidos os assassinatos do Educandário nos anos 1980
Mata nativa do terreno onde foram cometidos os assassinatos do Educandário nos anos 1980 Imagem: Fernando Moraes/UOL
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O ônibus de Praia Grande

Em 2018, Laércio, então com 54 anos, tentou agarrar duas mulheres em um ônibus em Praia Grande. O motorista parou o veículo em uma delegacia, e ele foi preso em flagrante com base no relato das testemunhas e na ficha criminal.

Laércio alegou problemas mentais e afirmou ter bebido uma dose de caipirinha. Foi condenado a dois anos de prisão por importunação sexual, mas em regime aberto. Em fevereiro deste ano, quando a condenação foi publicada, ele não foi encontrado e não compareceu à Justiça. Seu paradeiro é desconhecido.

A reportagem tentou descobrir se o histórico de Laércio —os dos anos 1980 e de 2006— foi considerado pelo Ministério Público para fazer a denúncia apresentada ao TJ-SP. Uma representante da promotoria afirmou que o caso está em segredo de Justiça e, por isso, não pode se pronunciar.

O paradeiro dos outras duas "feras" também é desconhecido. Augusto "Japonês", na época menor de idade, foi o primeiro a ser preso pela polícia nos anos 1980. Segundo moradores, a família possuía comércios, mas se mudou do Jardim Educandário após a prisão e nunca mais retornou. Carlão foi o último a ser preso pela Rota. Os últimos registros penitenciários datam dos anos 1990.

Ponto sem retorno

A pedreira do Jardim Educandário, palco das "feras", foi tampada nos anos 1990, e um condomínio foi erguido sobre o local. Hoje, moradores querem a construção de um parque aberto na outra porção do terreno —além de criar uma nova história.

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Imagem: Arte/UOL

A reportagem conversou com uma sobrevivente dos crimes de 1982. Ela foi atingida por quatro facadas nos pulmões e, desde então, respira somente por um deles. Uma simples gripe pode se tornar uma pneumonia.

As sequelas psicológicas vêm em ondas: "Eu não consigo, por exemplo, ser atendida por um ginecologista homem. Tem certas maneiras que ele pode encostar em mim que fazem toda aquela noite voltar", diz.

Quando as "feras" foram presas, ela foi colocada diante de Laércio para uma audiência. Não havia mulheres na sala. "Eu contei toda a história e perguntei porque ele não era mais tão corajoso como foi naquela noite em que me torturou. Ele só me olhou uma vez e abaixou a cara."

Ela foi internada em estado grave no Hospital das Clínicas, em São Paulo e, posteriormente, precisou fazer fisioterapia respiratória. "Eu não conseguia comer ou beber nada. Eu tinha perdido a vontade de viver, essa é a verdade."

Cerca de dois meses depois, quando recebeu alta, havia quem a julgasse ao reconhecê-la na rua. "Perguntavam o motivo de eu estar no meio do mato [da pedreira]. Mas nunca estive lá. Fui forçada a ir até lá ser estuprada", diz. "Outros me olhavam com pena, o que sempre odiei."

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Ela trocou de emprego para tentar ser esquecida. Anos depois, quando trabalhava em um banco, foi reconhecida por um cliente e desmaiou com crise nervosa. Com o passar dos anos, afirma ter reconstituído parte da vida que lhe foi tomada.

"Por ver tanta injustiça [como essa], estou com a cabeça pensando e preocupada com o que esse cara tá fazendo por aí. Mas estou aqui para falar e tentar ver se alguém toma alguma providência. Que não hoje, que tome daqui a alguns anos, que sirva de ajuda para alguém."

A reportagem tentou contato com Laércio por telefone nos números de contato informados à Justiça, mas não obteve retorno.

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