A saga de uma escultura de orgia do interior para SP: 'Eu não mexo nisso'

Terceiro: a galeria, que fica no bairro de Pinheiros, zona oeste de São Paulo, não tinha porte para tamanho trabalho artístico. Foi feita uma intervenção radical na sua estrutura arquitetônica, a fim de que pudesse inclusive sustentar a obra no teto de uma das salas. A galeria bancou a proposta do artista. Uma Capela Sistina pagã, enfim.

Em quarto lugar, havia a questão da mão de obra e seus valores mais castos. Nem todos os funcionários da fundição se sentiram à vontade para polir pênis eretos ou vaginas generosas.

Lopes se lembra de empregados que se aproximavam da obra e davam alguns passos atrás, quando vislumbravam a cena. Outros disseram que não poriam a mão nas peças por serem pastores.

Euclides Baraldi Libardi, sócio majoritário da Fundiart, também tem esse registro de rejeição: "Por causa da religião, tive empregados que disseram: 'Eu não mexo nisso'". Felizmente, para Lopes e Libardi, outros profissionais de gabarito não fizeram objeção ao trabalho.

"É uma obra provocativa, mas o Vanderlei já fez outra mais provocativa ainda, que foi uma catedral de ponta-cabeça", lembra o empresário de 77 anos, em seu escritório.

Do barro ao bronze

Natural de Terra Boa, no noroeste do Paraná, Vanderlei Lopes passou a infância na Fazenda São José, em Penápolis, interior de São Paulo. Já pequeno, esculpia cavalos com o barro colhido nas margens do rio que cortava a fazenda de fora a fora.

As idas frequentes ao ateliê livre do Museu do Sol, em Penápolis, dedicado à conservação de objetos ligados à arte naïf, mais o convívio com artistas, músicos e historiadores e a experiência numa fundição de bronze foram moldando seu perfil.

Mudou-se para São Paulo, onde cursou artes plásticas na Unesp (Universidade Estadual Paulista). Passou algumas temporadas fora do país, em Florença, Nova York e México. "Fiz residência na Casa Wabi, na costa de Oaxaca, que tem um projeto arquitetônico na beira da praia feito pelo Tadao Ando", diz. "Aquilo revirou minha cabeça."

Realizou trabalhos marcantes no Brasil, como "Domo", na Capela do Morumbi, "Cavalo", no octógono da Pinacoteca de São Paulo, e "Grilagem", no Museu de Arte Moderna do Rio — fora "Vazamentos", buracos nas paredes de onde jorra água e que se concluíam quando instalados nas casas de colecionadores. Tudo em bronze.

"Catedral", à qual se refere Baraldi, integrou a mostra coletiva "Transparência e Reflexo", que dialogava com a arquitetura do MuBE (Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia).

Fundida em bronze patinado, foi instalada sob a grande marquise do museu. Retrata uma catedral gótica de ponta-cabeça apoiada sobre as três torres, o que deixa a planta em formato de cruz para cima. Em vez de apontar para o céu, portanto, está encravada na terra. A obra é oca e tem o vazio central preenchido pela água do mar, formando assim uma planície d'água que espelha o próprio museu.

'Os corpos se fundem'

Isso de espelhar o mundano, portanto, não é de agora.

A ideia de criar a orgia de bronze partiu de conversas de rua ouvidas por Lopes durante a pandemia, em 2020.

Enclausurado no seu ateliê, na Barra Funda, zona oeste paulistana, ele passou a registrar trechos de conversas que invadiam sua privacidade colocando gravadores do lado de fora, numa janelinha sobre a porta de correr.

Uma mulher, por exemplo, relatou a uma outra sua visita íntima a um presidiário. Um jovem comentou com amigos que, se soubesse que tal mina era tão gostosa, tinha pegado ela antes. Motos e carros passavam, um helicóptero sobrevoava a área. "Tinha uma ansiedade pulsante ali, uma espécie de falha no sistema", diz.

O artista decidiu amalgamar essa ansiedade erótica no bronze e adorná-la com rocalhas do barroco rococó, que aludem à Reforma Religiosa. "Essa dualidade entre claro e escuro, lucidez e obscurantismo, me parecem muito pertinentes ao momento estrebuchado que vivemos", diz ele. "Nossa realidade tem sido muito construída por ideias religiosas, veja quantos por cento há de evangélicos no Congresso."

Entre tantos desafios da obra, havia também o de voltar a esculpir figuras humanas, algo que não fazia desde a juventude. A proposta, de qualquer forma, era reproduzir algo que causasse certa vertigem ao visitante, seja por causa do reflexo do dourado, seja pela forma oval, seja pela opção de acoplar a obra ao teto, o que remeteria tanto às cúpulas das igrejas quanto ao espelho de um motel.

"Além disso, os corpos se fundem numa interpenetração, de tal forma que não é possível saber onde acaba um corpo e começa outro", afirma.

Não há hierarquia, o que foge às narrativas tradicionais, que partem de um assunto central. "É uma movimentação anárquica. sem sexualidade definida nem moralidade", define.

As partes são de diferentes tamanhos e modelos, mas não à toa há mais pênis que vaginas. "Eu quis problematizar o poder", diz. Certos homens que viram a obra se queixaram com Lopes dos falos maiores: "Você quer me humilhar?". "Há de todos os tamanhos, mas eles só prestavam atenção nos grandes", afirma o artista.

Arte causa

Maior fundição do Brasil voltada à arte, a Fundiart começou com adornos de cemitério e avançou para obras famosas, como "A Portadora de Perfume", de Victor Brecheret, o "Monumento a Carlos Drummond de Andrade e Mário Quintana", de Francisco Stockinger e Eloisa Tregnago, e "Namoro", da escultora catalã Margarita Farré, radicada em São Paulo desde 1957.

"O artista não tem limitação, ele cria o que quer, busca a história, reedita uma época", diz. "A diferença do 'Espelho' foi o tamanho e... a temática", diz, reticente para encontrar a palavra certa. Libardi acha que "Espelho" vai causar.

O evangélico Josué Pedreira Feitoza, ajustador e montador que trabalhou de perto com as peças de Lopes, entendeu o "Espelho" como um grande desafio pelos detalhes, pela proporção e pelo perfeccionismo do autor. "Eu já fiz mulheres nuas, mas nunca tinha feito um relacionamento sexual."

Há 37 anos na empresa, o que lhe importa é ver o cliente satisfeito com o produto. "A turma brinca às vezes, mas para mim é um trabalho artístico, eu achei bonito, e vai chamar muito a atenção."

A obra já está instalada num dos tetos da Millan. Na entrada da sala, um anúncio adverte que não é recomendada para menores de 18 anos.