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TOP: sob gestão privada, bilhete do transporte de SP falha na transparência

Falta de transparência e possível conflito de interesses marcam a gestão do bilhete TOP, um dos sistemas de bilhetagem usados no serviço público de ônibus e de trens da região metropolitana de São Paulo.

Ativo desde dezembro de 2020, o TOP é administrado pela Autopass, empresa contratada sem licitação durante o governo João Doria (então no PSDB, hoje sem partido).

Por lidar diretamente com empresas públicas (Metrô e CPTM), as informações sobre o contrato e os repasses feitos pelo TOP deveriam ser públicas. Mas não são.

Desde novembro do ano passado, o UOL tenta obter acesso ao teor do contrato, mas todas as empresas envolvidas se recusam a revelá-lo.

Responsável pelo acordo, a Abasp, associação civil que contratou a Autopass, alegou questões de confidencialidade.

Há outro ponto que pode configurar conflito de interesses: o empresário Fernando Manuel Mendes Nogueira é presidente do conselho da Abasp e, ao mesmo tempo, sócio de um fundo de investimento do qual faz parte a própria Autopass.

Nogueira também é sócio administrador do CMT, consórcio de empresas de ônibus — a Abasp foi aberta em outubro de 2019 no mesmo endereço do CMT.

Convocação de assembleia dos associados da Abasp em setembro de 2023
Convocação de assembleia dos associados da Abasp em setembro de 2023 Imagem: Reprodução

Entre 2020 e 2023, o TOP arrecadou R$ 4,8 bilhões — há, porém, uma diferença de valores entre o que a empresa diz ter repassado e o que Metrô e CPTM dizem ter recebido nesse período.

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"É a raposa cuidando do galinheiro", diz Rafael Calabria, coordenador de mobilidade urbana do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).

Para o especialista, o TOP é um exemplo de contrato "errado": um bilhete para transporte público, que envolve empresas públicas, mas que nasceu privado e com o controle dos dados privado.

"Se chegar amanhã uma consulta do jornal não sei o quê de Itapecerica da Serra pedindo o quanto eu repassei para o Metrô, eu vou dar banana [para o jornal]. Desculpa, eu sou uma entidade 100% privada", afirmou ao UOL um conselheiro da Abasp sob condição de anonimato.

Oficialmente, a entidade diz que oferece "um mecanismo de arrecadação centralizado com distribuição eficaz e transparente".

Interesse público

A Abasp (Associação de Apoio e Estudo da Bilhetagem e Arrecadação nos Serviços Públicos de Transporte Coletivo de Passageiros do Estado de São Paulo) reúne empresas privadas e públicas — entre elas, Metrô e CPTM.

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Representantes indicados por EMTU (Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de São Paulo) e STM (Secretaria de Transportes Metropolitanos) integram o conselho da associação.

Segundo advogados ouvidos pelo UOL, essa relação reforça o envolvimento de esferas públicas, o que requer transparência mesmo com a gestão concedida à iniciativa privada.

Ainda assim, todas as instituições, públicas ou privadas, alegam que não têm autorização para divulgar o acordo que define as condições da contratação da Autopass.

A Abasp ressalta que é uma entidade privada, "igual à empresa [Autopass] que administra o TOP, sendo sua contratação realizada no ambiente e sob as regras do direito privado e de confidencialidade".

Dados são essenciais para que os cidadãos avaliem o desempenho das empresas públicas, identifiquem possíveis irregularidades e exijam melhorias no serviço prestado

Gleibe Pretti, advogado e professor do curso de direito da Universidade Estácio

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Segundo o advogado Gabriel de Britto Silva, diretor jurídico do Ibraci (Instituto Brasileiro de Cidadania), como o TOP envolve EMTU, CPTM e Metrô, os dados do bilhete devem ser públicos.

O fato de a Abasp ser entidade privada nada altera a obrigatoriedade de respeito aos princípios da informação e transparência

Gabriel de Britto Silva, advogado e diretor jurídico do Ibraci

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Imagem: Arte/UOL

Quem opera o TOP

Segundo o estatuto da entidade ao qual o UOL teve acesso, a Abasp nasceu no 12º andar da avenida Juscelino Kubitschek, 1.726, no Itaim Bibi, zona sul de São Paulo.

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Esse é o endereço do CMT (Consórcio Metropolitano de Transportes), que é composto por empresas de ônibus que operam na região metropolitana de São Paulo.

O CMT é administrado por Fernando Manuel Mendes Nogueira, que além de presidente do conselho da Abasp é sócio do fundo de investimento Mondo Holding, do qual faz parte a Autopass.

Também são sócios da holding Rubens Fernandes Gil Filho (ex-CEO da Autopass) e José Romano Netto, um dos filhos da empresária Maria Beatriz Setti Braga, da concessionária Metra, uma das maiores do ABC Paulista.

A Abasp diz desconhecer investimentos ou participações societárias de Nogueira, "por se tratar de tema relativo apenas ao seu interesse particular e não afetar as atividades da associação".

Nogueira foi procurado pelo email do CMT, mas não respondeu ao pedido de entrevista.

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Imagem: Arte/UOL
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Diferença de R$ 600 milhões

Desde o fim de 2023 o UOL tem pedido dados sobre o TOP para as assessorias de imprensa da Autopass e da Abasp e via Lei de Acesso à Informação para Metrô, CPTM, EMTU e STM.

Em novembro, quando foi questionada sobre a arrecadação e os repasses, a Abasp respondeu que "não pode fornecer dados de seus associados, tendo em vista que agrega sistemas de transportes de diferentes entes e de empresas públicas e privadas".

Em dezembro, questionada novamente, a associação afirmou que gerencia "exclusivamente recursos provenientes das tarifas de transporte, assegurando assim, um mecanismo de arrecadação centralizado com distribuição eficaz e transparente".

Pressionada, a Abasp só divulgou dados ao UOL no fim de janeiro.

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Imagem: Arte/UOL
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Entretanto, há informações conflitantes, como uma diferença de R$ 600 milhões entre o valor arrecadado e o repassado pelo TOP.

Por email, a STM afirmou que a diferença é normal: refere-se a créditos armazenados nos cartões TOP que ainda não foram utilizados pelos passageiros.

A Abasp, por sua vez, informou que o valor está em uma conta bancária da associação.

O UOL apurou que parte do valor é destinado a pagar custos operacionais (o maior deles é o contrato com a Autopass) e outra parte foi para um investimento financeiro de liquidez imediata.

João Doria (à dir.), no lançamento do TOP QR Code, na estação da Luz, em dezembro de 2020
João Doria (à dir.), no lançamento do TOP QR Code, na estação da Luz, em dezembro de 2020 Imagem: Divulgação

Desencontros no repasse

Há uma diferença de R$ 2,1 bilhões entre o que a Abasp diz ter repassado de 2021 a 2023 para Metrô e CPTM e o que as empresas públicas afirmam ter recebido.

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A explicação, segundo Metrô e CPTM, é que ambas não consideraram na conta do repasse a versão QR Code do TOP.

Outro caso envolvendo as empresas públicas é um desencontro com a SPI (Secretaria de Parcerias em Investimentos), que fiscaliza as concessões.

O órgão informou via LAI que as concessionárias do grupo CCR (linhas 4-Amarela, 5-Lilás, 8-Diamante e 9-Esmeralda) não estão recebendo repasses do TOP.

Porém, também via LAI, o Metrô informou que repassou R$ 95 milhões para as linhas 4 e 5; e a CPTM, R$ 157 milhões para as linhas 8 e 9.

Catraca destaca TOP na estação João Dias, da linha 9-Esmeralda, operada pelo grupo CCR
Catraca destaca TOP na estação João Dias, da linha 9-Esmeralda, operada pelo grupo CCR Imagem: Ronny Santos/Folhapress

Segundo a Abasp, o dinheiro do TOP destinado às concessionárias é transferido para Metrô e CPTM, que então repassariam os valores às concessionárias através da conta do Bilhete Único.

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A questão fica, novamente, sobre as diferentes versões das empresas envolvidas no que se refere à ocorrência ou não de repasses e dos respectivos valores.

A Abasp afirma que, para receber repasses do TOP, basta se associar, mas não respondeu com quanto é preciso contribuir.

Metrô e CPTM pagaram mais de R$ 270 mil de "contribuição associativa" até março de 2021, segundo a própria Abasp explicou em um pedido de informações do Ministério Público de São Paulo.

Mas, como a Abasp é privada, tampouco dá para saber ao certo sua composição.

Segundo o site oficial, a associação é formada por "mais de 40" concessionárias de ônibus. Por outro lado, a assessoria de imprensa informou nominalmente 26 concessionárias — 22 delas integrantes do CMT.

Doria (centro) e Ricardo Nunes (dir.) na inauguração da estação João Dias, em novembro de 2021
Doria (centro) e Ricardo Nunes (dir.) na inauguração da estação João Dias, em novembro de 2021 Imagem: Ronny Santos/Folhapress
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A caixa-preta do TOP

Sem o contrato do TOP, não há como saber as condições do serviço, as responsabilidades ou a remuneração para a Autopass. O UOL descobriu que o acordo vale por 20 anos, até 2040.

Metrô e CPTM disseram que não têm autorização para compartilhar documentos. A demanda "foi arquivada, pois o governo do estado de São Paulo não é responsável pelos documentos, dados e informações solicitados", justificou a CPTM no SIC.SP, o portal paulista de transparência.

Executivos envolvidos na operação contam que o contrato não pode ser divulgado pois tem "cláusula de confidencialidade".

Entretanto, pondera o advogado Gabriel de Britto Silva, o documento deve ser público e apenas informações de sigilo justificado podem ser "riscadas".

Em fevereiro de 2022, o TCE (Tribunal de Contas do Estado) questionou o governo de São Paulo sobre a contratação da Autopass para fazer o TOP.

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Em abril de 2022, a STM respondeu, mas uma nova notificação foi feita, pois na análise do tribunal foi "estranho" o modelo adotado pelo governo — repassar a uma associação civil a responsabilidade de contratar outra empresa da iniciativa privada para explorar e executar serviços públicos.

Procurado pela reportagem, o TCE informou que não irá se manifestar porque o assunto ainda está sob análise técnica.

Questões do TCE à Secretaria de Transportes Metropolitanos sobre o TOP
Questões do TCE à Secretaria de Transportes Metropolitanos sobre o TOP Imagem: Reprodução

Uma nova jornada

Até agora, ficou a cargo da iniciativa privada uma série de decisões que direta ou indiretamente impactam o transporte público e os passageiros.

A Autopass pôde lançar uma versão "híbrida" dos cartões de transporte com uma bandeira de crédito (Mastercard) e escolheu um ponto para emiti-los (13 unidades das lojas Pernambucanas).

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Na maioria dos pontos de venda, reportou a Folha de S.Paulo, só se encontra a versão híbrida, empurrando cartões de crédito a passageiros.

Passageiros com direito a gratuidade no transporte vêm recebendo spam por email.

Email oferecendo cartão de crédito Mastercard para passageiro 65+, em outubro de 2023
Email oferecendo cartão de crédito Mastercard para passageiro 65+, em outubro de 2023 Imagem: Reprodução

"O Mastercard Surpreenda é um programa de benefícios repleto de ofertas especiais para quem tem o Cartão TOP Mastercard. Para participar, basta solicitar agora o seu Cartão TOP Mastercard", diz um deles.

Procurada, a Mastercard diz que não teve acesso aos dados desse público específico, pois a comunicação é feita diretamente pela Autopass.

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Segundo Rodney Freitas, CEO da Autopass, a ideia do TOP nunca foi ser "só" um bilhete de transporte. "Para nós, é uma ferramenta de inclusão", define ao UOL.

"Passa-se uma média de 1 hora e 52 minutos no transporte na região metropolitana de São Paulo. Então, queremos ofertar um audiobook, um streaming para ser consumido no trajeto, para mudar a jornada do passageiro."

O UOL apurou que a ideia das empresas é que o TOP um dia tome o lugar do Bilhete Único. Segundo o estatuto da Abasp, um dos objetivos da organização civil é buscar "políticas públicas que visem à gradativa unificação de sistemas de bilhetagem".

"O sistema precisa de integração e atualização, mas estão querendo dar tudo à iniciativa privada, que não precisa prestar contas", diz uma fonte do setor. "O sistema precisa ser controlado pelo poder público, para ter o mínimo de transparência."

Procurados, o ex-governador João Doria e o atual secretário Marco Antonio Assalve, titular da STM, não responderam aos pedidos de entrevista.

*Colaborou Tiago Dias, de São Paulo

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Ouça o episódio sobre a caixa-preta do Bilhete Único em São Paulo no podcast UOL Prime.

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