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Por que a falida Itapemirim ainda é disputada no mercado?

A Itapemirim faliu em 2022, após um processo tumultuado com acusações de golpe milionário, afastamento de administrador judicial (AJ), aposentadoria compulsória do juiz e um arrendamento alvo de investigação da Polícia Civil.

Ainda assim, o espólio da empresa, que chegou a ser uma das maiores transportadoras da América Latina, é disputado.

Assumir as operações da antiga Itapemirim é uma aposta promissora, dizem fontes do mercado. No auge, ela faturava mais de R$ 150 mil por dia.

Fundada em 1953 pelo empresário capixaba Camilo Cola (1923-2021), a Itapemirim pediu recuperação judicial (RJ) em 2016, com uma dívida de mais de R$ 2 bilhões.

O juiz Paulino José Lourenço indicou na época o advogado João Manuel de Souza Saraiva como AJ e fixou os honorários dele em 1% do valor da dívida.

3 amigos, 2 sócios e um 'golpe'

No fim de 2016, a família Cola decidiu vender ações da casa (que inclui as viações Itapemirim e Kaissara) para os empresários paulistas Sidnei Piva e Camila Valdivia.

Só que o teor do acordo teria sido feito sem a família. O juiz transferiu o controle da Itapemirim para Piva e Valdivia no dia 19 de dezembro de 2016.

A história degringolou não muito tempo depois. A família acusou Piva e Valdívia de "golpe" articulado junto de dois juízes e do administrador judicial.

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Camilo Cola endereçou o caso ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

Segundo consta no documento, ao qual o UOL teve acesso, o ex-juiz Rômulo Barros Silveira (aposentado por invalidez) e então diretor jurídico da Itapemirim seria amigo pessoal do juiz do caso (Lourenço) e do AJ (Saraiva).

Os três estariam agindo para favorecer os controladores, que estariam desviando dinheiro da Itapemirim.

Entre as operações está a contratação de uma empresa de tecnologia de informação, a Delta X, cujos sócios são Piva e Valdívia.

Conforme o documento, mais de R$ 1,4 milhão foram repassados à Delta X entre dezembro de 2016 e março de 2017.

"A 'família Cola', que hoje questiona tanto a gestão atual, tem memória muito curta, vez que esqueceu de todas as fraudes que acometeram a frente da empresa com a criação de caixa 2, lavagem de dinheiro, roubo", escreveram Piva e Valdivia, em nota à imprensa na época.

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Silveira se desligou e Saraiva foi afastado, em 2017.

Lourenço saiu do caso e depois foi punido com aposentadoria compulsória pelo TJES (Tribunal de Justiça do Espírito Santo), também em 2017. O caso migrou para o TJSP (Tribunal de Justiça de São Paulo).

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Imagem: Arte/UOL

2 sócios e uma pandemia

Sidnei Piva e Camila Valdivia continuaram na direção da empresa por mais um tempo, mas a amizade não duraria muito mais.

Piva teria desviado R$ 45 milhões da Itapemirim para fundar a companhia aérea Ita, durante um dos momentos mais graves da pandemia de covid-19, em 2020.

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Mais de 500 voos foram cancelados de repente no dia 17 de dezembro de 2021, às vésperas das festas de fim de ano.

"Não fui eu que tirei dinheiro de recuperação judicial para criar empresa aérea e não fui eu que deixei 43 mil pessoas na rua na semana de Natal", Camila Valdivia declarou ao site Congresso em Foco, em 2022.

Foram abertas investigações contra Piva e Valdívia.

Em setembro de 2022, a Itapemirim foi à falência. Em julho de 2023, foi a vez da Ita.

O juiz João de Oliveira Rodrigues Filho nomeou o escritório EXM Partners como AJ do que restou da empresa (a massa falida).

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Imagem: Alexandre Saconi/29.jun.2021
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1 lance x 3 propostas

Eduardo Scarpellini, sócio da EXM Partners, sugeriu à Justiça o arrendamento dos ativos da Itapemirim para a Suzantur, uma transportadora turística urbana de Suzano (SP), do empresário Claudinei Brogliato.

O juiz aceitou. A ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) não gostou, argumentando que uma linha de ônibus não é um "ativo" da Itapemirim.

"As linhas do transporte rodoviário interestadual não são ativos ou bens pertencentes ao grupo empresarial, mas compõem serviço público de titularidade da União", escreveu a ANTT, por volta da página 87.900 dos autos (o caso tem mais de 100 mil páginas).

Ex-funcionários e demais credores também questionaram o arrendamento.

Suzantur, a arrendatária, propôs assumir as 125 linhas e todos os guichês, pontos de venda e salas VIP pertencentes à Itapemirim por um ano, mediante pagamento de 1,5% do lucro líquido da venda de passagens ou um fixo mensal de R$ 200 mil para a massa falida (que ainda precisa quitar as contas com os credores).

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Para operar, a Suzantur precisaria emprestar a frota de ônibus da própria Itapemirim, diz um dos pontos da proposta, encaminhada por e-mail em julho de 2022, ao qual o UOL teve acesso. Depois desse prazo, se ocorrer qualquer alteração no acordo, a transportadora pede para ser "integralmente indenizada".

Outras empresas, que já têm ônibus e autorizações da ANTT, estavam interessadas nas operações da Itapemirim e mandaram à Justiça suas propostas.

Foram as viações Águia Branca (que propôs R$ 250 mil por mês, totalizando R$ 3 milhões, pelo controle de 28 trechos), Garcia (que propôs 1,65% do lucro líquido das 125 linhas, mas sem fixo mensal mínimo) e a Rio Doce (R$ 540 mil por ano, para operar apenas trechos entre São Paulo e Minas).

"De longe, foi 'premiada' a pior proposta, em prejuízo à coletividade de credores", registrou nos autos a AEFCGVI (Associação de Ex-Funcionários e Credores do Grupo Viação Itapemirim).

No fim, não teve concorrência e a Suzantur prevaleceu. A primeira viagem da Nova Itapemirim ocorreu na manhã de 4 de março de 2023, saindo às 7h de São Paulo com destino a Curitiba.

Até outubro de 2023, segundo a ANTT informou nos autos, a Suzantur só operou 29 das 125 linhas — deixou 96 trajetos paralisados.

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Ônibus da Suzantur
Ônibus da Suzantur Imagem: Divulgação

1 'laranja' e muitos negócios

Fundada em 1982, a Suzantur hoje é liderada por Claudinei Brogliato, um funcionário que, na década de 1990, recebeu 10% do capital da empresa.

Ângelo Roque Garcia Netto, sócio majoritário até então, saiu da sociedade em 2011. Brogliato então assumiu, com as ações dele.

Ângelo é irmão de José Garcia Netto, conhecido como Netinho, empresário que integra o "conselhão" do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Netinho é responsável pela Caruana Financeira, banco especializado no segmento de transportes, diz o site oficial.

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A Polícia Civil de São Paulo pediu informações à Justiça para instruir um inquérito policial sobre lavagem de dinheiro.

"Como se deu o processo da escolha da Transportes Suzano [Suzantur] para assumir as linhas da Itapemirim? Houve oferta pública?", pergunta o delegado Tiago Correia, em março, no ofício ao qual o UOL teve acesso.

O que se registrou nos autos, diz o ofício, é que Netinho seria sócio oculto da Suzantur. Brogliato seria então apenas um "laranja".

Até agora, nem juiz nem AJ se manifestaram sobre as questões nos autos.

Paralelamente, Netinho é investigado pela Polícia Federal, sob suspeita de fraude nas atividades da Caruana Financeira.

Quem notou transações esquisitas (empréstimos do banco a empresas que não tinham potencial nem para operar negócios nem para quitar compromissos entre 2017 e 2019) foi o Banco Central, que passou os dados para a Polícia Federal, que investiga o caso.

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Em agosto de 2023, a assessoria Setape indicou em um laudo, ao qual a reportagem teve acesso, que o espólio da antiga Itapemirim está na casa de apenas R$ 97 milhões.

É uma bagatela, dizem fontes do mercado, que estão esperando os leilões.

Outros lados

Discussões sobre o arrendamento da Suzantur ou sobre a avaliação da Setape sobre os ativos da Itapemirim não avançaram.

A história ainda espera um desfecho.

O UOL procurou Claudinei Brogliato, José Garcia Netto, João Manuel de Souza Saraiva e Sidnei Piva, mas não obteve resposta. Paulino José Lourenço foi procurado via TJES e Amages (Associação dos Magistrados do Espírito Santo). A EXM Partners foi procurada via assessoria de imprensa, mas não retornou.

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A reportagem não conseguiu localizar Camila Valdívia.

Rômulo Barros Silveira afirma que nunca atuou como advogado no caso e que não é amigo do então juiz Paulino José Lourenço.

Ele diz que pediu para se desligar da Itapemirim assim que soube do negócio que estava sendo discutido por gestores (a entrega de bens da empresa a antigos sócios).

"O processo de venda foi todo intermediado por dois advogados de São Paulo que declararam de maneira inequívoca serem os verdadeiros intermediadores de um negócio por mim reputado como inexequível", diz.

O UOL analisou 37 recuperações judiciais e falências de empresas com dívidas de mais de R$ 100 milhões — a da Itapemirim foi uma delas. As dívidas dessas empresas, juntas, ultrapassam R$ 250 bilhões.

*Após a publicação, a EXM Partners procurou a reportagem e afirmou que as propostas de arrendamento foram apresentadas nos autos. "Portanto, houve concorrência. A empresa vencedora, Suzantur, foi a única que estabeleceu em sua proposta um pagamento mínimo mensal, além da participação no faturamento", diz.

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