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Se voltar, morre: ameaçado por policiais de SP vive há 11 anos fora do país

Há 11 anos, o advogado Wesley Pereira Fuganti, 47, fugiu do Brasil para não ser assassinado a mando de policiais civis.

Mas a proteção humanitária concedida pelo Reino Unido em 2021 vence em dezembro de 2024, e ele não sabe o que fazer.

Se não conseguir revalidar o documento, poderá ser deportado e correrá risco de vida.

A fuga começou quando Diogo Rodrigues Macedo, um cliente de Fuganti, denunciou um caso de extorsão policial em Salto (SP).

Um mês depois, Macedo foi assassinado com 12 tiros em frente à sua casa. Um tenente envolvido com a investigação o avisou: o advogado seria a próxima vítima.

A única saída era um abrigo de proteção a testemunhas de crimes, na capital paulista, supervisionado pela própria Polícia Civil —a mesma instituição a qual seus algozes estavam ligados.

Com medo, Fuganti juntou as economias, pegou a mulher e os dois filhos e se mudou para o Reino Unido, onde vive até hoje, e passou a pleitear um visto de permanência ou o status de refugiado.

Fuganti pediu documentos, solicitou traduções e endossos junto ao governo brasileiro e apresentou seu pedido junto ao Reino Unido - não sem intercorrências.

Em 2021, por fim, os britânicos indeferiram o pedido de refúgio, mas concederam proteção humanitária, com validade de três anos.

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Na justificativa, as autoridades britânicas disseram não considerar o medo de voltar ao Brasil argumento suficiente para conceder esse tipo de visto.

Não haveria, para eles, uma "perseguição por motivo não convencional" —causado pela raça, religião ou opinião política, por exemplo.

Palácio do Itamaraty, em Brasília
Palácio do Itamaraty, em Brasília Imagem: Foto: Ana de Oliveira/AIG-MRE

Limbo diplomático

Fuganti diz viver com uma espécie de "Bolsa Família" do Reino Unido - cerca de 1.000 libras por mês para uma família com dois adultos, o equivalente a R$ 6.000.

Até 2021, quando foi concedida a proteção humanitária, nem ele nem a mulher tinham documentação regular, e por isso não podiam trabalhar.

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"Usei minha reserva e tivemos ajuda familiar. Depois da proteção, poderia trabalhar, mas sem saber inglês direito não consegui", diz Fuganti ao UOL.

Ele afirma que virou um "pedinte" do Estado, solicitando ajuda das autoridades brasileiras para que intercedam e recorram da decisão junto ao governo britânico, alertando sobre o perigo que corre caso tenha de voltar.

A movimentação brasileira para interceder por ele começou em 2013, com encaminhamento de ofícios assinados pela promotora Maria Aparecida Rodrigues Mendes Castanho, do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado de São Paulo). Os documentos circularam entre Ministério da Justiça, Itamaraty e Provita-SP.

Em janeiro de 2020, o Ministério da Justiça enviou documentação à Embaixada do Reino Unido em Brasília com o "intuito de instruir pedidos de Wesley Pereira Fuganti perante às autoridades estrangeiras", segundo ofício enviado à Defensoria Pública da União obtido pela reportagem.

"Estes documentos buscaram demonstrar, para as autoridades competentes do Reino Unido a situação de Wesley, a qual enquadrava-se na de testemunha a ser submetida à programa de proteção e que [...] seria viável preservar sua situação social atual", afirma o ofício encaminhado pelo Ministério Público.

Com a decisão de 2021, negando o pedido de refúgio, o Ministério da Justiça brasileiro entendeu que "a situação de Wesley já teria sido avaliada pelas autoridades do Reino Unido e que eventual recurso em face da decisão de indeferimento do pedido de refúgio cabe ao interessado executar, perante a autoridade competente".

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Segundo o ministério, "não se identifica outra medida de cooperação jurídica internacional que possa ser adotada em face da situação de Wesley".

Fuganti se queixa de não ter havido nova movimentação. "Fiquei à deriva", diz.

Ele pede que o Brasil formalize tratativas de acordo internacional com o Reino Unido para estabelecer uma proteção internacional mais abrangente do que a oferecida atualmente.

O advogado diz ainda que não lhe foi dada oportunidade, por exemplo, de troca de nome. "Preciso disso, pois vivo até hoje com medo."

O Ministério da Justiça não respondeu ao pedido de entrevista da reportagem.

Burocracias e diplomacias

Os advogados Ernesto Pessoa Rodrigues e Ramon Carlos Pereira de Souza, de Brasília, assumiram o caso de Fuganti de maneira voluntária há três meses, após saber da situação dele por conhecidos em comum.

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Solicitaram uma reunião com o Ministério da Justiça, que foi aceita e está marcada para 10 de julho, intermediada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.

A conversa será com o secretário nacional de segurança pública, Mário Luiz Sarrubbo.

Sarrubbo já esteve envolvido com o caso. Em julho de 2023, era procurador-geral de Justiça no MP-SP (Ministério Público de São Paulo) e encaminhou um pedido de apoio a Fuganti à Comissão de Direitos Humanos da Câmara.

Nessa mesma época, foi produzido um documento pelo Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado), reiterando que há "manifesto risco à vida da testemunha caso ela retorne" ao país.

Para Rodrigues, o Brasil tem obrigação de interceder por Fuganti e garantir sua segurança, uma vez que a perseguição contra ele é feita por agentes do próprio país, a polícia.

"Vamos discutir o que o governo brasileiro pode e deve fazer no sentido burocrático, além de avaliar a possibilidade de pedir asilo em outro país. Não há como Wesley voltar."

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Especialistas na área ouvidos pelo UOL concordam que o brasileiro está em um limbo diplomático e jurídico.

A proteção, como vítima e testemunha, só é garantida se ele estiver no Brasil. Mas o Provita tem o dever de "promover toda e qualquer articulação institucional" e "parcerias nacionais ou internacionais" para "desenvolver e aperfeiçoar a atividade de proteção", segundo o Conselho Deliberativo do órgão.

Um diplomata que já trabalhou na área de imigração e refugiados reforça que é decisão soberana de um país permitir a um estrangeiro permanecer em seu território.

Afirma, porém, que dificilmente o Reino Unido aceitaria uma solicitação de refúgio.

"Seria uma decisão política, pois estariam implicitamente dizendo que a polícia de São Paulo é quase uma organização criminosa", diz.

Fuganti não pediu proteção de outro país, uma vez que é preciso estar na nação para solicitar refúgio. "Eu não tinha e não tenho como me mudar com minha família."

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Demétrius Cesário Pereira, professor de Relações Internacionais da universidade ESPM, de São Paulo, reforça que a obrigação brasileira é proteger o cidadão em território nacional, mas o caso de Fuganti é mais complexo do que o que abrange a lei.

Imagem aérea da cidada de Salto (SP), banhada pelo rio Tietê
Imagem aérea da cidada de Salto (SP), banhada pelo rio Tietê Imagem: Getty Images/iStockphoto

Como tudo começou

O imbróglio em Salto (SP) começou, segundo o advogado relata, quando o policial Hamilton Antônio de Matos apreendeu uma moto de Diogo Macedo e exigiu pagamento de um valor para devolvê-la.

O veículo estava em situação regular e o caso configurava extorsão.

Macedo pagou a primeira parte e, dias depois, foi cercado por policiais em um posto de gasolina. Eles esperavam que pagasse o resto.

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Naquele momento, Macedo ligou para Fuganti, que o auxiliava em outro processo, e pediu ajuda.

O advogado acionou a Corregedoria da Polícia Civil de Salto, e a consequência foi a prisão do assassino de Macedo — Eduardo de Góes, condenado a 21 anos de prisão — e dois agentes de segurança no posto.

Desuílio dos Santos foi condenado em 2019 a dois anos de prisão em regime aberto por extorsão e Hamilton Antônio de Matos, a nove anos pelo mesmo crime e preso no Presídio Especial da Polícia Civil de São Paulo.

Entretanto, conta Fuganti, "na Corregedoria, após a prisão, o policial denunciado chegou em mim e no meu cliente e disse: 'Eu estou preso, mas os meus irmãozinhos vão conversar com vocês'. Um mês depois, o Diogo foi executado".

Naquela mesma noite, um tenente ligou para o advogado com o recado: "Doutor, arruma as suas coisas e sai da sua casa, eles vão te matar".

Procurada, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo afirmou que a Corregedoria da Polícia Civil investigou os dois policiais mencionados.

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"Como resultado, um dos policiais foi demitido da instituição e o outro teve a aposentadoria cassada", explicou, em nota.

 Wesley Fuganti
Wesley Fuganti Imagem: Arquivo pessoal

O que dizem os envolvidos

A reportagem procurou todas as entidades envolvidas com o caso: Gaeco de Sorocaba (SP); Provita-SP; DPU (Defensoria Pública da União), Ministério da Justiça; Ministério das Relações Exteriores; Procuradoria Nacional de Defesa das Prerrogativas da OAB; e Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.

A DPU, entre outros pontos, reconhece que Wesley deseja o estabelecimento "de uma proteção internacional mais abrangente do que aquela oferecida pelo Reino Unido (proteção humanitária) e que contemple a ele e sua família, em solo britânico".

Mas afirma que "a Defensoria Pública da União não dispõe de meios para obrigar dois Estados soberanos a formalizarem tratados internacionais".

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Porém, empenhou-se junto aos órgãos e instituições nacionais referidos pelo senhor Wesley, a fim de avaliar aquilo que já havia sido feito ou que ainda poderia ser alcançado dentro dos limites jurisdicionais brasileiros.

À reportagem, em nota, o Provita diz que "acolhe pedidos de proteção [...] sendo essencial que o interessado e sua família aceitem, sem reservas, as normas restritivas de proteção (o que não foi aceito pelo interessado até o momento)".

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