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ONGs pagaram R$ 5 mi a peixeiro dono de empresas criadas do dia para noite

Presente em feiras livres do Rio de Janeiro, a peixaria Monteiro Barcelos se define nas redes sociais como "a melhor barraca de peixe da zona norte".

À frente do negócio está João Paulo Monteiro Barcelos, 34, que toca as vendas pessoalmente. Ele também é dono de duas empresas que nada têm a ver com o ramo da peixaria.

De janeiro de 2023 a maio passado, essas duas firmas receberam R$ 5 milhões de ONGs que desenvolvem projetos de esportes e qualificação profissional. Essas operações são suspeitas de desvio de dinheiro público.

Esse é mais um capítulo da série de reportagens "Farra das ONGs", que revela indícios de superfaturamento, serviços fantasmas e uso de laranjas em projetos de uma rede de ONGs no Rio de Janeiro.

Os projetos são custeados por emendas parlamentares que somam quase meio bilhão de reais direcionadas nos últimos três anos.

Essas empresas, a JPB Serviços Empresariais e a JPB Comércio Serviço e Gestão Empresarial, foram criadas em janeiro e junho de 2023, respectivamente.

Os negócios entre elas e as ONGs começaram a ser fechados entre um e dois meses após essas datas.

As firmas foram contratadas pela ONG Con-tato e pelos institutos Realizando o Futuro e Carioca de Atividades.

A finalidade do vínculo era fornecer serviços de treinamento, monitoramento, publicação de resultados e realização de eventos para projetos esportivos e de qualificação profissional.

Barcelos firmou R$ 5,6 milhões em contratos com as três ONGs.

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A maioria dos recursos pagos às empresas de Barcelos (R$ 3,3 milhões) provém de dois contratos de eventos com indícios de irregularidades.

No fim de março, o UOL encontrou o peixeiro em uma feira livre da Cidade de Deus, na zona oeste. Ele se recusou a dar informações sobre as empresas.

"Tenho esse negócio de feira, mas tenho outros também. Tenho galpões...", limitou-se a dizer Barcelos.

Por email, as ONGs ICA e Con-tato defenderam a legalidade das contratações das empresas (veja a íntegra das respostas).

O Instituto Realizando o Futuro também defendeu os procedimentos que realiza (leia a íntegra das respostas).

A Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), responsável pelo acompanhamento dos projetos, informou que "irá averiguar e adotará as medidas cabíveis".

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A universidade também disse que "não tem ciência da formação profissional, ou mesmo de outros ramos de atuação, dos sócios-administradores das empresas contratadas diretamente pela OSCs [Organizações da Sociedade Civil], sem participação da universidade" (leia mais).

Empresas do peixeiro João Paulo Monteiro Barcelos receberam R$ 5 milhões de ONGs
Empresas do peixeiro João Paulo Monteiro Barcelos receberam R$ 5 milhões de ONGs Imagem: Reprodução

Relação com enteada de chefe de ONG

Sem histórico de negócios nos serviços fornecidos para as ONGs, Barcelos abriu as duas firmas no endereço da sua própria casa, no bairro de Brás de Pina, zona norte do Rio.

Foi lá que a reportagem tentou encontrá-lo pela primeira vez em 5 de março. Uma mulher informou que o peixeiro não se encontrava em casa. Ela disse que Barcelos "concilia as atividades" da peixaria com as das duas empresas.

A mulher que mora com o empresário é Ingrid Costa de Souza, 29, enteada do presidente de uma das ONGs que contratou o peixeiro.

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O ICA (Instituto Carioca de Atividades), comandado por Nicodemos de Carvalho Mota, padrasto de Ingrid, assinou três contratos com a JPB Serviços no valor total de R$ 358 mil.

Conforme mostrou o UOL, Ingrid era dona, até fevereiro, da empresa ArtPlural Produções e Eventos, que assinou contratos de R$ 10,6 milhões com ONGs entre 2021 e 2023.

Desses contratos, R$ 7,6 milhões foram assinados com o ICA, que pertence a seu padrasto.

'Vou pra lá'

Cerca de 20 dias após a reportagem procurar Barcelos em sua casa, as empresas do peixeiro trocaram de endereço.

A mudança foi para uma sala comercial em um condomínio na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio, conforme registro na Junta Comercial.

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Quando o UOL esteve com Barcelos na feira livre, em 27 de março, ele informou que um representante dele falaria com a reportagem no novo endereço.

"Assim que eu acabar aqui, vou pra lá. Vai lá que vão te receber bem."

O empresário não sabia, contudo, o endereço da sala e precisou consultar o WhatsApp para informar ao UOL.

Naquela tarde, a reportagem esteve duas vezes no local indicado. Em 16 de abril, foi feita uma nova tentativa. Nas três vezes, ninguém estava no local.

Em documentos de propostas de preços enviados pela JPB às ONGs, foram inseridos telefones incompletos. A falta de dados impossibilita a localização de representantes da empresa

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Imagem: Reprodução
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O site da JPB Gestão também contém telefones e email que não funcionam.


R$ 2 milhões sob suspeita

O Instituto Realizando o Futuro pagou mais de R$ 1,4 milhão a uma das empresas de Barcelos para a realização de 80 formaturas do projeto Gera Rio antes de os cursos profissionalizantes serem concluídos.

Jurisprudência no TCU (Tribunal de Contas da União), que analisa contratações com dinheiro público, condena a prática de pagamentos antecipados, a não ser em casos excepcionais, mediante justificativa.

A ONG pagou R$ 717 mil por 40 cerimônias de formatura em 19 de setembro (quase R$ 18 mil por evento). Foi a terceira nota emitida pela JPB Comércio.

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O Gera Rio foi lançado oficialmente pela Unirio uma semana antes desse pagamento (12 de setembro).

O plano de trabalho da ONG previa que cada curso deveria ter duração de dez semanas, o que levaria as primeiras turmas a se formarem no fim de novembro.

No entanto, em 16 de outubro, a JPB Comércio recebeu novo pagamento: R$ 717 mil por 40 formaturas. O mesmo ocorreu em 4 de dezembro, totalizando R$ 2,1 milhões.

Apesar de o Gera Rio ter relatado 20 núcleos, a ONG pagou por 120 formaturas.

A empresa de Barcelos também recebeu R$ 252 mil em janeiro por um "evento de encerramento do Gera Rio".

Nas redes sociais, o UOL localizou apenas uma cerimônia de formatura, feita em abril, que reuniu diversas turmas do projeto.

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Ao todo, o Gera Rio custou R$ 8,3 milhões e foi bancado com recursos de uma emenda parlamentar do ex-deputado bolsonarista Gurgel (PL-RJ).

Entre 2021 e 2023, o ex-parlamentar injetou R$ 28 milhões em projetos das ONGs suspeitas de desvios -o maior volume destinado por emenda individual.

Gurgel foi procurado por WhatsApp e email, mas não se manifestou.

A Unirio afirmou que "a contratação antecipada permite maior previsibilidade, segurança e eficiência na realização dos eventos".

A universidade disse ainda que "essa mesma contratação antecipada é prevista no cronograma de desembolso, item 6 do plano de trabalho do projeto [documento que traz o planejamento feito pela ONG]". Esse item, no entanto, só previa pagamentos de formaturas a partir de dezembro.

Em nota, o Instituto Realizando o Futuro não comentou especificamente sobre o projeto, mas afirmou que atua "conforme as rígidas determinações do MROSC [Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil] e da Lei de Licitações".

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R$ 1,2 milhão por eventos misteriosos

Em outra contratação da mesma ONG, a empresa de Barcelos também foi paga por eventos antes do começo oficial do projeto e com um agravante: não há nenhum detalhe sobre o que está incluso nos pagamentos em documentos públicos enviados à Unirio, parceira da ONG no projeto.

Em 5 de janeiro, o Instituto Realizando o Futuro pagou R$ 714 mil para a JPB Comércio por 44 eventos no projeto de atividades esportivas Fazendo Arte, que segue em andamento no estado do RJ. O Fazendo Arte só foi, contudo, lançado oficialmente no dia 23 daquele mês.

Em 7 de março, a JPB Comércio recebeu mais R$ 536 mil por 33 eventos.

Cada um dos 77 eventos saiu por pouco mais de R$ 16 mil. O site da ONG mostra que o projeto só tem 17 polos.

Ao todo, o projeto custará R$ 4,8 milhões, vindos de emenda da ex-deputada Clarissa Garotinho (União Brasil-RJ).

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Clarissa disse que cabe à Unirio fiscalizar as empresas contratadas, mas afirma acreditar na execução correta do projeto.

"Tenho certeza que o projeto sempre foi executado e que fez a diferença na vida de muitos jovens e idosos que foram beneficiados durante todo esse tempo."

A Unirio afirmou que "o plano de trabalho do projeto Fazendo Arte prevê a realização de cinco eventos em cada um dos 22 núcleos, totalizando 110 eventos a serem realizados, ou seja, menos de R$ 6.000 para a realização de cada evento".

Os dados citados pela Unirio divergem do número de núcleos do projeto (atualmente são 17 com inscrições abertas no site criado pela ONG) e das notas fiscais da JPB, que comprovam o pagamento de R$ 16,2 mil por evento.

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