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Canabidiol até em bala de goma: o que a febre do produto nos EUA nos ensina

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Imagem: Divulgação

Luiza Pollo

Da agência Eder Content, em colaboração para o TAB, de São Paulo

23/08/2019 04h01

Três letrinhas vêm ganhando as prateleiras e os cardápios de diversos lugares cool dos Estados Unidos há mais ou menos um ano: CBD, decanabidiol. Por lá, é possível encontrar a substância extraída da maconha em configurações inusitadas, como balas de goma, chocolates, óleos, bebidas e até produtos.

Com propriedades benéficas para tratamento, por exemplo, de epilepsia e esclerose múltipla, o canabidiol é um composto presente na Cannabis sativa, a planta da maconha -- mas não confunda CBD com THC, a outra molécula da erva que é responsável por dar 'barato'.

O CBD é a nova estrela da indústria do bem-estar: usuários relatam benefícios como controle da ansiedade e ajuda na concentração em uma época em que falar de autocuidado e saúde mental é tendência.

A farmacêutica Sâmia Regiane Lourenço Joca, professora da FCFRP-USP (Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da USP), observa que canabidiol não é sinônimo de maconha medicinal. A cannabis possui mais de 500 substâncias, dentre as quais aproximadamente 100 são canabinóides, como o canabidiol, muitos com potencial efeito farmacológico. "O uso da planta pode ter efeitos e consequências para a saúde que são bem diferentes do uso de substâncias isoladas, como o canabidiol", afirma.

Desmistificar e regulamentar

Especial Maconha Medicinal - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
Imagem: Ricardo Borges/UOL

"Eu acho que tudo é legítimo, inclusive esse caminho do bem-estar", defende Camila Teixeira, CEO da INDEØV, primeira empresa especializada em acesso à cannabis medicinal no Brasil. "Mas desde que haja clareza no posicionamento das marcas ou dos produtos. A comunicação precisa ser favorável à desmistificação", pondera.

Balinhas com formato da folha de maconha, por exemplo, não ajudam no tratamento sério do tema, diz Camila, que trabalhou com o posicionamento de uma marca de produtos comestíveis nos Estados Unidos em 2013. O foco era explicar aos médicos os benefícios do CBD.

"Como você desmistifica? Com uma apresentação séria. É natural que as pessoas recebam de uma maneira diferente quando veem que você está colocando o produto dentro de uma linha, por exemplo, de bem-estar, com a qual ela compactua." O mais importante, defende, é que o tema entre em pauta e, consequentemente, fomente mais pesquisas para compreender os efeitos do CBD.

Sâmia, da USP, concorda que o benefício desse hype dos produtos com CBD é colocar o assunto em discussão. Mas ela faz uma ressalva: o CBD não é uma substância inerte, e ainda se sabe pouco sobre ela para que o uso seja indiscriminado. "Até mesmo o uso de vitaminas segue recomendações específicas e não se pode tomar à vontade", compara.

Margarete Brito, primeira brasileira a conseguir aval da Justiça para plantar maconha com fim medicinal em casa e coordenadora executiva da Associação Apoio a Pesquisa e Pacientes de Cannabis (Apepi), defende o modelo implementado no Uruguai. "Fica na mão do Estado, mas as pessoas têm o direito de cultivar individualmente, se filiar a clubes. É um mercado sério, com determinações para uso medicinal, recreativo e na indústria. Não tem esse capitalismo doido que tem nos Estados Unidos, em que o objetivo é vender de tudo", explica.

Objetivos claros

Mudas da Abrace da variedade de Cannabis CBD God, que produz 6 vezes mais CBD que THC - Tarso Araújo/Agência Pública - Tarso Araújo/Agência Pública
Imagem: Tarso Araújo/Agência Pública

Mas essa separação só vem a partir da regulamentação da substância. Por enquanto, o CBD ainda está em uma área nebulosa. Aqui no Brasil já é permitido importar o canabidiol, com prescrição médica e autorização da Anvisa, e algumas pessoas têm a permissão para plantar em casa, como é o caso de Margarete.

A história dela com o CBD começou em 2013, quando ela descobriu que a erva poderia ser o remédio para a epilepsia da filha. Hoje, ela própria também faz uso medicinal da cannabis para controlar a ansiedade. Margarete prepara o óleo a partir da planta e se tornou especialista e ativista do assunto após vivenciar os benefícios em casa. Agora, quer ajudar outras pessoas, desmistificando a cannabis e lutando pela regulamentação no país.

"O que atrasa a regulamentação é a falta de conhecimento geral. Fica parecendo cachorro correndo atrás do rabo: é proibido porque não tem informação, e não tem informação porque é proibido", afirma.

Pesquisa

Mesmo assim, já tem muita gente empreendendo com a planta no Brasil, e um estudo da New Frontier Data (empresa de pesquisa e análise de dados do mercado da cannabis) em parceria com a The Green Hub aponta que o país tem potencial de movimentar R$ 4,7 bilhões anualmente com a flexibilização na legislação para fins medicinais, numa perspectiva de três anos após a flexibilização para o mercado já estabelecido. Nos Estados Unidos, essa indústria já emprega mais de 210 mil pessoas apenas na manipulação das plantas e vale mais de US$ 10 bilhões, segundo relatório (em inglês) da consultoria Whitney Economics.

"Melhorou muito. Hoje não temos a mesma dificuldade para trabalhar com derivados canabinóides que tínhamos dez anos atrás", diz Sâmia. "No entanto, existe falta de conhecimento da população sobre os riscos e benefícios associados ao uso da planta, e talvez ainda preconceito", avalia.

A farmacêutica integrou uma equipe de sete pesquisadores brasileiros e dinamarqueses que estudou os efeitos do canabidiol na redução dos sintomas relacionados à depressão em ratos. Os resultados foram positivos. "Mostramos, pela primeira vez, em 2010, que o CBD em animais tinha um perfil farmacológico semelhante a drogas antidepressivas", relata.

Posteriormente, a equipe descobriu que o efeito que o canabidiol tinha nos animais era ainda mais rápido que os remédios já conhecidos. Quando combinados, CBD e antidepressivos poderiam ser administrados em doses menores, com potencial para que essa combinação diminua a incidência de efeitos adversos na clínica. "Mas ainda precisamos de estudos em humanos para entender se o mesmo ocorreria em pacientes deprimidos, que tipo de paciente pode se beneficiar, quais são as doses indicadas, entre outros fatores", alerta Sâmia.

Lubrificante de maconha - iStock - iStock
Imagem: iStock

Esta reportagem da Quartz (em inglês), traz uma revisão de alguns dos estudos mais importantes sobre o tema -- inclusive o da equipe de Sâmia--, indicando até que ponto conhecemos as propriedades do CBD. Spoiler: não é muito.

"Ainda não se sabe quais são as consequências do uso repetido do canabidiol, então acho perigoso que o seu uso irrestrito seja considerado seguro", afirma Sâmia. "Talvez daqui a alguns anos a gente chegue a este ponto, mas o fato é que hoje ainda não temos essas evidências. E por isso a regulamentação adequada e o apoio a estudos que abordam o assunto são tão importantes."

A Anvisa encerrou nesta segunda-feira (19/8) uma consulta pública sobre o tema, e deve se posicionar até o fim de 2019 sobre o cultivo da maconha para fins medicinais e científicos. A regulamentação encontra resistência no governo de Jair Bolsonaro.

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