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O que é imortal: com silêncio e mistério, começa campanha para vagas na ABL

Candidatos já confirmados para as eleições de quatro vagas da ABL - Arte/ UOL
Candidatos já confirmados para as eleições de quatro vagas da ABL
Imagem: Arte/ UOL

Mateus Araújo

Do TAB, em São Paulo

12/09/2021 04h01

Pode parecer deselegante — se não pecado — querer saber o futuro da ABL (Academia Brasileira de Letras), a depender de quem recebe a pergunta. "Prezo muito pelo meu direito de voto secreto", disse uma escritora quase octogenária, ao telefone, recusando-se a dar entrevista. Era segunda-feira à tarde, véspera de feriado, e nem deu tempo de questionar nada: ela logo presumiu que seria sondada sobre predileção. "É um colégio eleitoral muito pequeno, não me sinto à vontade para falar."

A recusa faz parte do rito iniciado em setembro entre os frequentadores do palacete Petit Trianon, sede da ABL, bem próximo à Cinelândia, no Rio. No próximo dia 24, encerram-se as inscrições para candidaturas a novos imortais da academia, e, até novembro, quem está no pleito corteja os eleitores atrás de votos — por isso, muitos dos veteranos evitam ao máximo falar.

Os atuais membros da ABL vão escolher quatro novatos. Eles ocuparão as cadeiras dos falecidos Affonso Arinos de Mello Franco (diplomata morto em março de 2020), Murilo Melo Filho (em maio), do professor Alfredo Bosi (em abril de 2021) e do ex-vice-presidente Marco Maciel (junho de 2021).

O regimento da ABL define regras para as inscrições. Para cada membro que falece é realizada uma "Sessão da Saudade" e, assim que acaba a homenagem, os interessados em ocupar aquela cadeira têm até 30 dias para enviar uma carta — ou telegrama, ou e-mail — ao presidente. A notificação deve ser repassada internamente, junto a livros ou obras da autoria do candidato. Quando se encerram as inscrições, começa a campanha, que dura meses. Em 5 de agosto, em encontro online, os imortais abriram a primeira vaga, e nas três semanas seguintes, as demais. Ainda há inscrição disponível para duas cadeiras (uma delas, até dia 17, e a outra, até dia 24).

"Não se sabe quem vai entrar, mas a perspectiva é de que os acadêmicos votem, sempre, optando pelo nome que consideram mais adequado para fortalecer o quadro da Casa, aliás bastante multifacetado", explica o crítico literário Antonio Carlos Secchin, titular da cadeira 19. "Importa sobretudo a qualidade da candidatura, mas também se considera o fato de que o eleito desejavelmente enseje um convívio harmônico, pois será vitalício."

Entre os 12 candidatos já confirmados estão Fernanda Montenegro, Gilberto Gil, o professor e escritor Daniel Munduruku, o jornalista Edney Silvestre, o jurista e escritor José Paulo Cavalcanti Filho e o poeta Salgado Maranhão.

Quem é imortal?

A última vez que uma eleição da ABL chamou atenção foi em 2018. Naquele ano, a escritora Conceição Evaristo lançou-se candidata à cadeira 22, no lugar de Nelson Pereira dos Santos. A possível entrada da primeira mulher negra da academia movimentou uma campanha na internet, mas expôs também a fragilidade do caráter diverso da instituição.

Evaristo recebeu somente um voto, contra 22 para o cineasta Cacá Diegues. "Foi um erro de condução de campanha", justificou, dois anos depois, a escritora Nélida Piñon, em entrevista ao "Roda Viva" (TV Cultura). Segundo ela, a colega deveria ter "contatado, visitado os acadêmicos" para apresentar-se. "Nunca recebi um telegrama dela", comentou a decana, primeira mulher a presidir a instituição, em 1997.

Ao TAB, o escritor Ignácio de Loyola Brandão, eleito em 2019 para a cadeira 11, diz que o caso de Conceição Evaristo foi "atípico". "Ela forçou sua candidatura, não cumpriu nenhum ritual, nada de nada, como se fosse necessário dar-lhe um lugar", afirma.

Procurada pela reportagem, Evaristo não respondeu. Mas no "Roda Viva" de 6 de agosto, disse que a academia pode perder o "bonde da história" se não tomar cuidado. "Outras mulheres negras, outros homens negros, sujeitos indígenas, outras representações literárias deveriam se candidatar. O que eu tinha de fazer eu já fiz", ressaltou.

O que Evaristo fez foi mexer com a instituição, reforçando a divisão de imortais entre um grupo mais conservador e outro a favor de "novos ares", como comenta uma funcionária da ABL que não quis se identificar.

"A representatividade é bem-vinda, mas não pode ser pré-requisito, pois não há cotas", pondera Antonio Secchin. "Na história da ABL, registram-se acadêmicos negros, gays, registra-se, muito tardiamente embora, a presença de mulheres. Convivem representantes de todos os gêneros literários. Esperamos que essa representatividade ainda se amplie, não por gesto paternalista de benevolência, mas pela qualidade intrínseca dos candidatos."

Para o primeiro e único candidato indígena nas atuais eleições da ABL, o professor e escritor Daniel Munduruku, é necessário, porém, que a instituição leve em consideração a diversidade de expressões e de linguagens do país. "É fundamental que também se leve em conta a diversidade étnica, pois isso a tornará ainda mais representativa", destaca ele, postulante à cadeira 12, de Alfredo Bosi.

Em 2018, a escritora Conceição Evaristo se candidatou à ABL; ela teve apenas um voto.  - Joyce Fonseca/Divulgação  - Joyce Fonseca/Divulgação
Conceição Evaristo
Imagem: Joyce Fonseca/Divulgação

A grande atriz

A aproximação da ABL com a sociedade pode vir através de dois "notáveis", como são chamados os não literários. Fernanda Montenegro é a única concorrente à cadeira 17.

A indicação de uma das mais importantes atrizes brasileiras para o posto era defendida nos chás e reuniões dos intelectuais havia um bom tempo. Com a publicação de sua autobiografia, há três anos, habilitou-se ao pleito.

Fernanda Montenegro é a única que não vai precisar fazer campanha mais intensa, além de enviar a carta de interesse. Com o aumento de casos da variante Delta do coronavírus no Rio de Janeiro, a atriz, que tem 91 anos, saiu da capital e foi para o interior do estado cumprir nova quarentena. Na casa onde se isolou, sinal de internet é ruim e o telefone falha com frequência, como conta a secretária dela ao TAB.

Em maio, à Folha, o imortal Zuenir Ventura, também membro da ABL, garantiu a escolha da atriz. "Só não vai se não quiser". Os demais candidatos esperaram, inclusive, a abertura das outras três vagas para se inscrever — só para não concorrer com ela. É o caso de Gilberto Gil, segundo nome cuja eleição é dada como certa, candidato à cadeira 20.

Foi a mulher dele, Flora Gil, quem confirmou à imprensa a candidatura. O baiano divide a disputa com outro nordestino, o maranhense Salgado Maranhão, que preferiu não responder às perguntas de TAB.

Fachada do palacete Petit Trianon, na região central do Rio de Janeiro. - Mathilde Missioneiro/Folhapress - Mathilde Missioneiro/Folhapress
Fachada do palacete Petit Trianon, na região central do Rio de Janeiro.
Imagem: Mathilde Missioneiro/Folhapress

Operação Cale-se

Durante dias, tentamos contato com candidatos e integrantes da ABL. Dos imortais que falaram, dois pediram para não ser identificados. Outros dois compararam a corrida à eleição de um papa: cheia de mistérios e silêncio. "Escusas, espero que compreenda, mas quero distância das notícias. Até a eleição. Depois, talvez", escreveu um deles, em mensagem.

Um dos que aceitaram conversar foi o jornalista e escritor Edney Silvestre, que pleiteia a cadeira 39. "Algumas vezes, lá dentro, alguns acadêmicos vinham falar comigo para considerar a possibilidade [de se candidatar]. Eu achava que dois escritores brasileiros contribuiriam muito para a academia, porque reúnem erudição e têm textos maravilhosos: Milton Hatoum e Alberto Mussa. Mas eles não querem, e, então, propus minha entrada", explica. "Há pessoas lá dentro que são fabulosas de se conversar. É uma convivência com algumas das mentes mais interessantes do país."

Uma funcionária e um imortal da ABL confidenciam, no entanto, que o favorito à cadeira que Silvestre concorre é o jurista pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho, especialista na obra e biografia do escritor português Fernando Pessoa. A entrada dele para a instituição foi apadrinhada por outro conterrâneo, Marcos Vilaça.

Após contagem de votos, em cerimônia fechada para os membros da ABL, as cédulas são queimadas.  - Julio Cesar Guimaraes/UOL - Julio Cesar Guimaraes/UOL
Após contagem de votos, em cerimônia fechada para os membros da ABL, as cédulas são queimadas.
Imagem: Julio Cesar Guimaraes/UOL

'Nunca digo nada'

A socióloga Michele Fanini, doutora pela USP (Universidade de São Paulo), desenvolveu uma pesquisa sobre as mulheres na ABL. Para ela, o grupo tem pela frente grandes desafios. Os principais deles são "as questões relacionadas à representatividade e a busca por uma maior aproximação e interação com a sociedade".

No caso específico das mulheres, explica Fanini, a academia ainda precisa desconstruir o "ambiente marcadamente androcêntrico" que ergueu e reflete o interior do campo literário brasileiro. "É como se cada novo ingresso feminino atestasse e também ritualizasse sua excepcionalidade", critica.

No final da tarde de quarta (8), a escritora Nélida Piñon retornava uma ligação do repórter. Explicou, no entanto, que sobre o tema usaria como resposta algo que já havia dito a outro jornalista — sobre outro assunto: "Sei muito, porque nunca digo nada", parafraseou. "A academia de certo modo preza pela reserva, discrição. Estamos cumprindo os rituais. O importante é que os brasileiros amem-na e queiram fazer parte dela", completou.

Os 40 imortais se reúnem duas vezes por semana, mas, com a pandemia, as atividades presenciais foram suspensas. Os encontros só voltaram a acontecer recentemente, nas "Sessões da Saudade", em formato online — até então inédito entre eles. Além das reuniões, os membros participam de debates e palestras sobre variados temas das artes e das letras.

Ser imortal também tem valor financeiro: cada um recebe R$ 3 mil por mês e "cachês" pela presença semanal. Quem vai ao chá da terça-feira, conta uma funcionária, ganha R$ 800, e na reunião da quinta, mais R$ 1 mil. A principal fonte de renda da ABL é o aluguel de salas comerciais do prédio anexo à sede — muitas, porém, foram desocupadas durante a pandemia. Mas falar disso também é um tabu.

A primeira votação para novo integrante da Academia Brasileira de Letra será em 4 de novembro. As outras, cada uma numa semana seguinte. Depois da contagem de votos, as cédulas de papel serão queimadas. Como no conclave, uma fumaça branca sinaliza resultado: os imortais estão escolhidos. Ou, como acrescentou, rindo, um entrevistado: "Mas é bom dizer que primeiro você entra, depois você é eleito. Tudo é convívio".