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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Casas de 15m² retratam país que normalizou viver abaixo do direito mínimo

Área das minicasas de 15 m² em Campinas (SP) - Ranieri Costa/UOL
Área das minicasas de 15 m² em Campinas (SP) Imagem: Ranieri Costa/UOL

Colunista do UOL

23/06/2023 04h00

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No Brasil, a confusão entre direitos e privilégios é tanta que já nem causa assombro ouvir alguém chamar de "conquista" a possibilidade de morar com a família em cubículos de 15m².

Este é o tamanho das casas construídas pela Prefeitura de Campinas (SP) para abrigar moradores de uma ocupação da maior cidade do interior paulista.

Para os futuros moradores, os "embriões" são uma possibilidade de sair de barracos construídos com pedaços de móveis, lonas e telhas velhas. A residência de alvenaria, por menor que seja, ao menos garante que a casa não será escoada junto com a água dos temporais - daí a comemoração.

Foi essa lógica que levou integrantes de outras comunidades a reivindicarem, segundo uma reportagem da Folha de S.Paulo, a construção de outras minicasas do tipo na cidade.

A demanda explica como o direito à moradia adequada, assim como tantos outros, tem sido enxovalhado no país. Ele deveria assegurar que as famílias tivessem, em suas casas, espaços para fazer suas refeições, higiene e também descansar — e não só se proteger de temporais ou outras calamidades.

É impossível não colocar esses espaços em contraste com o avanço do mercado imobiliário nas regiões mais abastadas do espaço urbano brasileiro. Campinas não é nem de longe a capital desse contraste.

A 90 quilômetros dali, na cidade mais rica do país, especialistas apontam uma série de retrocessos em curso em meio às discussões sobre o novo Plano Diretor de São Paulo.

Em artigo recente, o professor titular de planejamento urbano da USP Nabil Bonduki alertou para riscos de "verticalização dispersa e sem limites" que tendem a elitizar ainda mais os eixos de transporte coletivo da metrópole. Isso significa mandar para longe quem não consegue bancar o custo de vida em espaços vitimados pela gentrificação.

Um substitutivo proposto pelo vereador Rodrigo Goulart (PSD) prevê a ampliação da zona de verticalização sem limite no entorno das estações de trem e metrô (a ideia era ampliar para 1 quilômetro, mas a faixa deve ficar em 700 metros). Essa mudança impactaria essas áreas com mais carros e a construção de mais apartamentos caros, que chegariam a 120m² mediante pagamento de outorga onerosa mais elevada, segundo Bonduki.

Em outras palavras: em cada superapartamento dos prédios autorizados a serem construídos em área valorizada caberiam oito residências como as construídas em Campinas.

A autorização para os futuros superapartamentos seria um oferecimento dos vereadores apoiados em campanha pelo setor imobiliário. Segundo outra reportagem da Folha, executivos da área foram responsáveis por quase a metade (46%) das doações privadas aos parlamentares eleitos em 2020.

Dos 55 vereadores paulistanos, 26 receberam verbas do setor naquele ano, num total de R$ 2,8 milhões.

Dinheiro de pinga diante dos montantes que o setor deve movimentar com as novas regras para construções na capital.

Como pontuou Nabil Bonduki, o substitutivo da Câmara acata a maioria das sugestões dos representantes de incorporadoras e ignora o que tem a dizer os especialistas e as associações de bairro. É assim que desigualdades se ampliam e são incorporadas à paisagem urbana.

Muito em breve os condomínios horizontais poderão chegar também aos Jardins, que trocarão os valiosos casarões dos quatrocentões por prédios e muros ainda mais valiosos dos novos-ricos. Quem não puder que se contente, pela região, com microapartamentos do estilo "smart living".

Nas propostas das incorporadoras para quem financiamos uma vida para poder viver, um dos muitos argumentos para adquirir imóveis na planta é a possibilidade de a região se valorizar num futuro próximo. A conversa é tentadora: nossas casas, afinal, não são lugares onde exercemos um direito à moradia, criamos histórias, vínculos e raízes, como eram as casas dos nossos avós. São ativos que se valorizam (ou não) com o tempo e podem ser vendidas na alta, como uma ação.

Isso para quem tem condições mínimas de jogar o jogo dos que têm a força da grana para erguer e construir coisas belas, em qualquer rua de qualquer cidade.

Para boa parte da população brasileira, a única ambição ao entrar numa casa, mesmo que ela tena 15m², é que ela não suma pelos ares na próxima ventania.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL